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Desistir pode ser a atitude mais corajosa para deixar de ser “Café com Leite”

Morte, relacionamentos e homossexualidade guiam o enredo do primeiro curta do diretor Daniel Ribeiro.

Na Mostra de Curtas "Respira e vai", uma parceria da Halls com a VICE, apresentamos uma seleção de seis curtas-metragens feitos por diretores brasileiros. Seja uma comédia, um drama ou um romance, todas essas obras têm algo em comum: um personagem que precisa de um fôlego extra para enfrentar uma situação na vida.

Frame do curta "Café com Leite". Imagem: Reprodução

Existe realmente a "coisa certa" a se fazer? Esse conflito para alinhar nossas vontades com nossas obrigações está em Café com Leite, primeiro curta do diretor Daniel Ribeiro. O protagonista Danilo não tem muitas preocupações na vida além da hora que vai voltar para casa, mas, após a morte dos pais, ele precisa rever todos os seus planos para poder cuidar do irmão mais novo, Lucas. Uma nova relação se desenvolve entre eles, mas também entre Marcos, seu namorado, que também tem dificuldade de se adaptar à nova realidade.

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Tentando encontrar seu lugar entre a criação do irmão e a companhia do namorado, Danilo precisa tomar uma decisão. Num momento "respira e vai", ele desiste de uma viagem romântica com Marcos para se dedicar ao caçula. Parece um final um pouco triste, mas o diretor avisa que a história fica em aberto: "Se você é um cínico, você acha que ele vai embora e eles não ficam mais juntos; se você é um romântico, você acredita que ele volta e os três conseguem viver juntos". Leia a conversa que tivemos com Daniel Ribeiro sobre o filme, que fala de morte, relacionamentos e homossexualidade com uma leveza única.

VICE: A história do filme é bem original, como surgiu a ideia do roteiro?
Daniel Ribeiro: A ideia do roteiro do Café com Leite surgiu na verdade quando eu estava escrevendo o TCC, e ele era sobre o retrato do personagem homossexual no cinema brasileiro. Eu fazia uma análise de como era esse retrato, e sentia falta de filmes em que existissem personagens homossexuais cuja história e os conflitos não passassem necessariamente pela questão da sexualidade. Ou seja, eu tava falando que queria ver personagens homossexuais retratados nos seus dilemas universais. Foi daí que surgiu essa história. Também queria fazer uma história sobre irmãos, aí juntei essas duas coisas. Quando um personagem gay tem um drama que é universal, sobre a perda, sobre tentar descobrir essa relação que o irmão tinha com o outro, o filme fica mais intenso. Porque a questão não é sobre ser ou não ser gay.

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Como foi a escolha dos atores, especialmente do Lucas, que ainda criança faz um trabalho tão bom?
Fizemos teste de elenco normalmente, chamamos vários atores para ler. Foi mais fácil achar os dois personagens mais velhos. Para a criança realmente era mais difícil, a gente precisava achar uma criança de dez anos que topasse fazer esse filme, que tinha um pouco… sei lá. Por exemplo, tinha uma cena em que ele subia na cama e deitava no meio dos dois namorados. É mais difícil você conseguir pais que topem que o filho participe desse filme. Ainda mais que era meu primeiro filme, ninguém me conhecia, então não sabiam exatamente qual era o tom desse filme. O Eduardinho a gente achou porque ele fez uma propaganda do Boticário, na época, a gente viu e ele era muito bom. Ele tinha uma naturalidade muito interessante, tudo muito genuíno. Chamamos ele para ler com a gente, já tínhamos os outros dois, então ele foi só lá ler com eles para vermos se existia uma química entre os três. Quando ele leu, fez muito sentido ali.

Acho interessante a posição do Marcos na história, enquanto espectador às vezes a gente acha ele incompreensivo, mas esquece que ele também está passando por uma mudança na vida dele. Foi importante para você colocá-lo não só como acessório na história, mas parte dela também?
Apesar da história ser muito focada na relação dos dois irmãos, a verdade é que o filme é sobre esse triângulo. Essas três forças que puxam cada uma para um lado, com vontades e desejos e interesses específicos. De certa forma cada um tem que deixar alguma coisa para trás para conseguir o que quer. Então na verdade é meio que uma luta de forças, desse triângulo. Por isso que o Marcos é tão importante nessa história, ele não é um personagem secundário, de forma alguma, tanto que o título em inglês é You, me and him (Eu, você e ele), ou seja, tem os três personagens no título. Tem essa piada, né, porque You, me and him pode ser sobre qualquer um. Tem a ver com essa multiplicidade de olhares, de pontos de vista. Se você olhar a história do ponto de vista de cada um dos personagens, percebe que todos ali têm a sua verdade, têm o seu desejo, e que não estão errados. É uma situação que a vida criou e que cada um, como disse antes, tem que deixar para trás alguma coisa para conquistar o que quer. Acho que o Marcos acaba saindo perdendo nessa história. Ao mesmo tempo, é um filme com final aberto. Então não está dado que ele vai embora, e que acabou, e que não existe mais essa relação. Ele está indo viajar, sozinho, ele volta e depois eles vão resolver se ficam ou não juntos. Gosto de dizer que cada um forma o seu final. Se você é um cínico, você acha que ele vai embora e eles não ficam mais juntos; se você é um romântico, você acredita que ele volta e os três conseguem viver juntos.

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Pouco se fala sobre a coragem que é preciso para desistir de algum plano. Você acha que a escolha do Danilo também pode ser vista sob essa perspectiva?
Tem que ter coragem para desistir dos planos, sim, uma decisão difícil na vida. Cada um ali pesa suas questões. O Danilo tem que colocar tudo na balança, a independência dele, e o papel que a vida deu para ele naquele momento, mesmo que ele não quisesse. Ele poderia mandar o irmão ir morar com os tios, dizer que não tem como dar conta. Mas ele fala "isso é algo que eu tenho que fazer, não posso abandonar o meu irmão". O mesmo com o Marcos, que tem sua carreira ali, tá se desenvolvendo e sabe que não quer virar um pai na idade que ele tá. O filme é basicamente sobre isso, sobre essa coragem que tem que ter para desistir de alguma coisa que está planejado, e rever, na verdade, como os planos às vezes mudam, e tem certas surpresas e coisas novas que aparecem na sua vida e você tem que aprender a olhar.

O curta lida com temáticas como a morte, o fim de um relacionamento amoroso, os conflitos na aceitação da homossexualidade na família. Como conseguiu abordar tudo isso de forma leve? Teve alguma "estratégia" para não "pesar" demais o filme?
A leveza do filme vem um pouco da forma como os personagens são retratados. São personagens que por mais que queiram coisas diferentes, tentam olhar para o outro e respeitar o que o outro quer. É um filme talvez sobre tolerância, que hoje em dia é uma questão até mais complicada que na época que eu lancei, em 2008. Falar sobre tolerância hoje é até mais importante. Os personagens tentam compreender o que o outro quer, ao mesmo tempo tentando ver se o que o outro quer se encaixa, ou se equilibra, com o que a gente quer.

O filme foi feito em 2007. Como você o vê agora, após quase dez anos?
Era uma outra época, principalmente com a questão da sexualidade. A gente estava num momento muito positivo da sexualidade, da visibilidade da comunidade LGBT. Desde então sinto que, no Brasil por exemplo, teve uma resposta muito conservadora muito grande em relação a essa onda progressista que a gente teve nos últimos anos. Hoje em dia o filme tem até mais força do que teve na época. Esse valor da tolerância, porque o filme fala disso também, é mais relevante e importante hoje do que era em 2007. Em 2007 era como se o filme tivesse surfando na onda das questões LGBT, hoje ele é mais uma bandeira para lutar contra o conservadorismo que ganhou muita força.

Tem um momento na sua vida que você acha que deixou de ser "café com leite"? Que precisou parar e respirar para enfrentar uma situação na vida?Tem muitos momentos na vida que você deixa de ser café com leite. Muitas etapas, muitas conquistas. Quando você entra na faculdade é uma etapa de deixar de ser café com leite, quando você se forma na faculdade é outra. Na minha carreira, o curta Café com Leite foi o momento de deixar de ser café com leite. Foi quando fiz meu primeiro filme, que circulou em festival, que me deu muita oportunidade, que me fez conhecer o mundo viajando com o filme, que me fez entender melhor como funciona o mercado do cinema. Depois disso, nos outros filmes que fiz, senti que estava mais preparado. Café com Leite me ajudou nesse sentido.

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