A prisão do Goma foi um golpe duro na cultura do pixo em BH
Foto: Lucas Buzatti

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A prisão do Goma foi um golpe duro na cultura do pixo em BH

Considerado um dos maiores pixadores da cidade, Goma foi preso em casa, na última terça-feira (3), durante operação conjunta entre as polícias Militar e Civil e o Ministério Público.

"Prender pixador é fácil, quero ver prender é o dono da Samarco", gritavam cerca de 100 pessoas que protestaram contra a guerra ao pixo em Belo Horizonte, na última quinta-feira (5). Balançando freneticamente latas de spray, os manifestantes concentraram-se na praça Raul Soares, no Centro, de onde saíram caminhando até a porta da Promotoria de Defesa do Patrimônio Histórico Público. De lá, o bonde rumou para a praça Sete para finalizar o ato, que rolou com tranquilidade. Intitulada "Justiça só contra nós não é Justiça, é Ditadura", a manifestação foi convocada pelo Facebook e reuniu pixadores e simpatizantes que ficaram revoltados com a mais recente investida contra a cultura do pixo em BH: a prisão de João Marcelo Ferreira Capelão, o Goma. Considerado um dos maiores pixadores da cidade, Goma foi preso em casa, na última terça-feira (3), durante operação conjunta entre as polícias Militar e Civil e o Ministério Público, que pediu, por meio da tal promotoria, sua prisão preventiva.

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Cartaz no protesto de pixadores em BH. Foto: Lucas Buzatti.

A denúncia enquadra Goma por pixação, apologia e incitação ao crime e associação criminosa, tendo como base seu suposto envolvimento com a pixação feita por Mário Augusto Faleiro Neto, o Marú, na Igreja de São Francisco de Assis (patrimônio histórico conhecido como Igrejinha da Pampulha). O pixo foi marcado na madrugada do dia 21 de março deste ano, sobre os azulejos do painel de Cândido Portinari e na lateral da igreja. Dez dias depois, as paredes já tinham sido totalmente limpas, trabalho que, segundo a prefeitura de Belo Horizonte, teria custado R$ 8 mil. No entanto, na época, ao apresentarem a denúncia, os promotores afirmaram que o prejuízo foi de R$ 34.500. A operação associa, ainda, uma terceira pessoa ao pixo da Igrejinha: Marcelo Augusto de Freitas, o Frek, de 20 anos, que está foragido. As autoridades alegam que o trio faz parte de uma "quadrilha", que na verdade é o antigo bonde de pixação Banca Nervosa, que já nem existe mais, segundo o Goma. Além disso, apenas o nome do Marú, que confessou o crime e disse tê-lo feito sozinho, foi assinado no patrimônio.

Pixação de Marú na Igrejinha, a Igreja de São Francisco de Assis, sendo apagada (Reprodução/YouTube).

"É muito estranho ver o Goma ser preso por formação de quadrilha por uma pixação que não foi ele quem escreveu. Fica evidente que se está satisfazendo o capricho de um promotor. Fazer isso com o Goma, nesse momento, é uma agressão à cultura de rua", afirma a psicóloga Ludmilla Zago, que é militante e pesquisadora da questão do pixo em BH. Ela lembra que, antes de o Goma ser preso, a polícia apreendeu todos os materiais vendidos na Real Grapixo, a loja dele, alegando que as latas de spray e camisetas com referências ao pixo configuravam apologia ao crime. "Primeiro, retiraram o trabalho dele, confiscando os produtos da loja. Depois, tiraram seu direito de fala. Você vê que nas matérias todo mundo fala, a polícia, o MP. Mas quando o Goma vai falar, retiram sua voz", afirma, referindo-se à reportagem da TV Globo. "Isso tem a ver com o peso que o Goma tem na cidade. É um cronista dos direitos, da política, um cara muito antenado e incorporado na cidade, que protestou por várias causas. Um cara que já tinha sido preso por formação de quadrilha. Ou seja, que já tinha passado por uma penalização em razão de um artifício jurídico, porque a pixação não leva a condenações como a que a gente está vendo em BH. Estão pegando uma pessoa como exemplo, mas cometendo injustiça. O pixo da Igrejinha só tinha o nome do Marú. Porque incluir o Goma nisso?", questiona.

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Manifestantes em Belo Horizonte. Foto: Lucas Buzatti.

De fato, a perseguição ao Goma é coisa antiga. Em 2010, quando a operação BH Cidade Limpa prendeu os Piores de Belô por formação de quadrilha, ele foi envolvido na denúncia e passou 117 dias preso. O detalhe é que o Goma afirma nunca ter pixado com esse bonde. "Sempre que rolava algum B.O. de pixação na cidade eles iam atrás do João, na loja dele, pra tentar saber o que pegava. Até quando pixaram 'Fora Dilma' na sede do PT foram atrás dele. Ele é perseguido mesmo. Por ser conhecido, por ser muito querido pela galera toda. Agora, ele tá revivendo o que rolou na prisão dos 'piores', em 2010", conta Stephanie Lorraine, 23, namorada do pixador. "Dessa vez, o lance é que eles foram lá querendo que o João entregasse o Marú. Ele não colaborou e começou a perseguição. Tentaram forjar contra ele, pularam na loja. Eu vi o desespero da polícia, de querer entregar um nome para a sociedade. E o João tava na dele, foi em todas as audiências, tinha tipo uma por mês", diz Lorraine. Ludmilla Zago faz coro: "O engraçado é que, quando ele começou a fazer grapixo autorizado, foi preso. Agora, estava quieto no canto dele, o cara pixou a Igrejinha, ele não quis entregá-lo e foi preso de novo. Foi preso por ser amigo da galera ", defende.

Protesto em solidariedade ao pixador Goma. Foto: Lucas Buzatti.

Pixador das antigas de BH, Bogus conta que a estratégia da polícia é velha. "A pixação em BH veio no começo dos anos 90, e tinha uma influência muito grande de torcida organizada. Antes era só a Polícia Civil, agora que o MP tá entrando. Os policiais iam na Máfia Azul, ameaçavam os integrantes e mostravam fotos de pixadores da Galoucura. Aí eles entregavam. Iam na Galoucura e faziam a mesma coisa com a Máfia Azul", conta. "Nos anos 2000, a coisa deu uma parada. Os pixadores antigos viraram pais, pararam de dar rolê. Só que uns anos depois o pixo voltou com força total, com uma influência muito grande de São Paulo, do discurso de revolta contra o sistema e sem essa influência das torcidas. E esse sistema de investigar ficou na cabeça da polícia. Mas aí, hoje, eles vão até o Goma pedindo pra ele entregar quem fez o pixo da Igrejinha e ele não quer dar", completa Bogus.

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Além da seletividade da justiça, os apoiadores do Goma denunciam a desproporcionalidade das condenações. "Infelizmente, a gente já se acostumou com o tipo de atitude jurídica do Ministério Público de Minas, sempre usando tipos penais bastante abertos, como a formação de quadrilha, a apologia e a incitação ao crime, para forçar a prisão de pixadores, uma vez que o tipo penal da pixação não permite prisão. Usam desses artifícios para conseguir prisão preventiva de pixadores e mostrar serviço para a sociedade", afirma Felipe Bernardo Furtado Soares, advogado e pesquisador na área do direito sobre pixação. "São prisões desnecessárias. Na semana anterior à prisão do Goma, ele foi a duas audiências. Ele está à disposição da justiça, não está se escondendo, assume seus atos. A mesma coisa com o Marú, que se apresentou à delegacia, confessou o crime e, uma semana depois, o MP pediu prisão preventiva", afirma.

Cartaz no protesto cobra resultados do desastre em Mariana. Foto: Lucas Buzatti.

A bronca recai sobre o promotor Marcos Paulo de Souza Miranda, que é um dos responsáveis pela apuração dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Bento Rodrigues, distrito de Mariana. Ocorrido em novembro de 2015, o crime ambiental, além de fazer vítimas fatais, soterrar de lama cidades mineiras e capixabas e dizimar o ecossistema do Rio Doce, também causou danos irreversíveis ao patrimônio histórico mineiro. "Esse combate à pixação é extremamente desproporcional, ainda mais tendo em vista que o promotor é o mesmo que atua no caso do crime ambiental da Samarco, que deixou o patrimônio histórico de Bento Rodrigues destruído e ninguém foi preso. Já com relação ao pixo, você vê casos como o do Morrou e do G.G., que pixaram a Bibiloteca Pública Luiz de Bessa. Uma pixação que durou 12 horas e foi limpa com detergente e bucha. E os pixadores estão presos há 12 meses, um para cada hora que a pixação ficou na parede. O G.G. foi condenado a oito anos e seis meses, sendo que a própria diretora da biblioteca confirmou que não houve dano, que nada foi destruído", explica.

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"É muito estranho. Em Belo Horizonte, a gente vive uma situação de quatro promotorias estarem juntas e de terem um setor de investigação de crime ambiental no MP que é comandado por um policial. Então, a nossa justiça é militarizada, é policializada, e esse promotor é exemplo disso", diz Ludmilla Zago. "Ele quer prender, já falou que vai acabar com o pixo em BH, como se isso fosse possível. Só que ele está acabando com as pessoas. É um caprichoso que se juntou com o caprichoso do prefeito para esconder a podridão política que a gente vive em BH. Acho estranhíssimo o pixo ter virado um inimigo da cidade. Primeiro vimos os Piores, depois a Suellem e os PE (Pixadores de Elite, bonde que teve integrantes presos pela Operação Argos Panoptes, no ano passado), as tornozeleiras, os pixadores sendo expostos em praça pública. Eu acho mesmo que tem uma coisa de disfarçar os crimes que vêm de cima, o descaso com o pobre. Ninguém tá preocupado se na favela tem praça, tem cultura, tem esporte, tem lazer. Querem saber é de criminalizar o jovem, o periférico", completa a psicóloga.

Policial filmando manifestantes durante protesto em Belo Horizonte. Foto: Lucas Buzatti.

O advogado Felipe Bernardo Furtado Soares lembra que a pixação está prevista na Lei de Crimes Ambientais, no artigo 65, cuja pena é de três meses a um ano, quando não há restrição da liberdade. "O que estão fazendo é dizer que a pixação é crime de dano ambiental e material ao patrimônio público, cuja pena é de até três anos. Só que não se provou, em nenhum caso, o dano da pixação. Ninguém está defendendo a impunidade, ainda que a gente possa discutir se a pixação é crime ou não. O fato é que as pessoas devem ser julgadas de acordo com a lei. Esse punitivismo é o que está sendo questinado", afirma.

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"As pessoas se ressentem porque leem o pixo e dizem: 'Não entendo, não é pra mim'. Porque têm essa coisa do controle até na leitura. A mensagem tem que atender a determinados anseios estéticos. Nossas cidades seguem o ideal da limpeza, da ordem, da beleza. E a pixação não passa por nada disso. Ela agride porque tem a ver com o prazer e a liberdade de quem faz, e as cidades querem limitar isso cada vez mais. Querem todo mundo em casa, quieto, todas as paredes brancas. Aí vem o pixo e se apropria do que quer, do jeito que quer e com um código totalmente próprio", reflete Ludmilla Zago. "BH está se tornando extremamente elitista. Isso tem a ver com conservadorismo, com hipocrisia, com desconhecimento, com uma imprensa que só fala da pixação de forma criminalizatória, que só respalda o discurso oficial ", pontua.

Policiais observam protesto de pixadores em Belo Horizonte. Foto: Lucas Buzatti.

Para Bogus, a capital mineira vive, realmente, uma política de Estado higienista de caça aos pixadores, amparada por boa parte da sociedade. "Nossa cultura é de reprimir, né. O que tá dentro de um padrão eu sigo, o que não tá eu recrimino. O que é belo é limpo, branco, igual hospital. O que não é, está fora de padrão", diz, analisando o futuro da cruzada anti-pixo. "Acho que a tendência é que essa perseguição continue. Todo ano fazem uma operação e prendem quem eles querem. Pegam um pra Cristo e assim vai. Aí você vê o que aconteceu na Ditadura, né. Colocaram preso político com bandido junto e surgiu, na cadeia, no meio do regime militar, o Comando Vermelho. Que tá aí até hoje, com um histórico de décadas de crime. Claro que colocar pixador na cadeia, exposto ao ócio, vai ter algum impacto", defende. "Os projetos sociais também não ajudam. São sempre a mesma coisa, de transformar pixador em grafiteiro. Porque o cara não pode aprender uma caligrafia artística e arrebentar de ganhar dinheiro fazendo convite de casamento?", questiona.

Sobre a situação de Goma, Felipe Bernardo Furtado Soares afirma que os horizontes jurídicos não são dos melhores. "Já tivemos algumas vitórias, como a retirada das tornozeleiras, mas infelizmente as expectativas não são boas. No caso do Goma, o que eu posso afirmar é que as usar camisas da Real Grapixo não é crime, como já decidiu o STF no julgamento da Marcha da Maconha (em 2011), e que o Goma não faz parte de nenhuma quadrilha", sublinha. Segundo a Polícia Civil de Minas Gerais, até o mês de março deste ano foram registradas 88 ocorrências de pixação em Belo Horizonte. No ano passado, o total foi de 396 ocorrências, e ainda ficou atrás de 2014, com 486 ocorrências registradas.

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