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Outros

Gosta que se Pela

Engoli toda minha fobia social para concretizar meu sonho de ser um pornógrafo.

Ilustração por Diego Medina

"Gosta que se pela" é uma expressão que a minha vó usa. Nunca a ouvi por outra pessoa ou conheci alguém que fosse familiar com a afirmação. Lá estou eu, oito anos, enchendo uma humilde piscina de mil litros no pátio de casa e ela diz: "Tu gosta que se pela de uma água". O que faz sentido. "Gosta que se pela" é prezar tanto por algo a ponto de ficar nu, e para se banhar naquela água que mal batia nos meus joelhos eu de fato me livrava das roupas, me limitando apenas a uma confortável cuequinha de algodão. Mas aí, em outro dia dedicado a jogar videogame, não falo com ninguém e nem abro a janela. Lá vem minha vó, puxando a persiana para entrar uma luz enquanto fala: "Gosta que se pela de um jogo, esse Vinícius". E agora? Será que é ter tanto apreço por algo a ponto de estar disposto a ficar desnudo por essa coisa? Um clima ritual de iniciação de fraternidade: ou você tira a roupa ou nunca mais assiste Seinfeld. "Mas eu gosto tanto. Ok, vou me pelar. Vou me pelar", diz o rapaz que usa foto do George Constanza como avatar nas redes sociais enquanto tira as calças. Enfim, eu gosto que me pelo de pornografia.

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Gosto tanto que foi com uma notável inveja branca que recebi a notícia que meu amigo 42 (é o apelido dele, eu não tenho mais que sete amigos, quiçá quatro dezenas) havia sido chamado parar traduzir pornografia. Cerrei os olhos, bati o punho na mesa, amaldiçoei a família dele e mandei um e-mail: "Eu também quero, 42! Também quero!". E consegui. "O cara quer ter uma reunião contigo antes", alertou ele. Engoli toda fobia social e topei para concretizar meu sonho de ser um pornógrafo.

Lá estou eu, 20 minutos adiantado, no lugar combinado. É um café pretensioso, desses com armários cheios de livros, desenhos do Chaplin na parede e nada no menu que custe menos de oito reais. Fico encarando minha Coca com limão e gelo (tô com a boca seca de nervosismo de ter que falar com um estranho, tu tá louco se acha que eu vou beber algo quente, um café marroquino, né?) quando ouço um "Vinícius?". Levanto os olhos e encontro uma abelhinha sorridente falando "Bee my friend!". Levanto mais os olhos e vejo que o dono da camiseta com tal estampa é um rapaz sorrindo com a mão estendida. Ele é muito branco e cabelo raspado, sem bigode, pele laranja ou qualquer outra marca registrada dos profissionais da indústria pornô. E ele está trajando uma camiseta com uma abelhinha falando "Bee my friend!" serigrafado, veja bem.

Começamos aquela conversa fiada diplomática que se tem ao conhecer alguém: "Ah é mesmo? Seus pais moram na mesma cidade onde os meus passavam os verões? Que peculiar, que curioso". Percebo que ele é tão nervoso quanto eu. Os dois tremem, medem palavras demais e dão umas risadas sem contexto. Fico mais confortável: ele deve estar ocupado demais se autocriticando para julgar meus jeitos. "Então, vou te mostrar mais ou menos como é o trabalho", diz ele, encerrando o embaraçado papo descontraído e puxando um notebook da mochila. Meu coração acelera de leve. "Ele vai entrar em um site pornô?", eu penso. Um par de seios aparece na tela e responde minha pergunta. Eu olho para os lados, analisando o resto dos clientes do local. À minha frente, uma menina de boina mexendo no celular. Ao meu lado direito, ninguém. Ao meu lado esquerdo também.

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Atrás de mim, logo o melhor ângulo para ver a tela do computador, uma família almoça. Uma família completa: papai, mamãe, o filhinho bebê e a menina de uns oito anos inquieta na cadeira. Olho novamente para a tela do computador e sinto saudade da vergonha sentida quando eram apenas seios: agora um travesti com seu membro rijo segura um anão no ombro. "Mas também, olha a ideia, trazer criança pra almoçar num café desses. Depois elas crescem e querem fazer artes cênicas na faculdade, querem estudar clowning, e eles não sabem porquê. Que vejam a pornografia então, pra aprender que lugar de refeição em família é churrascaria, rodízio de pizza."

"O trabalho é basicamente traduzir o título e a sinopse. Descrever algumas cenas também. Tu viu o que eu fiz aqui?". Eu fazia sim com a cabeça sem conseguir ler de fato, só esperando que ele rolasse a página para baixo e aquele anãozinho vestido de jogador de basquete sumisse da minha frente. Então ele me mostra a capa de um filme chamado Teeny Indian Pussy. "E esse, Vinícius? Como tu traduziria?" Um golinho na Coca. Uma coçadinha na garganta. "Bucetinha Indiana?" Ele faz que sim com a cabeça, fechando os olhos de satisfação como quem diz "Isso é bom, rapaz. Isso é muito bom".

Então o emprego era meu. Decidi caminhar até em casa, como quem volta de um velório, de um começo de namoro ou qualquer uma dessas experiências que fazem tudo ao redor mudar e ter significado, aquela coisa do vento gelado cortando rosto e você pensando baixinho "É isso aí, me sinto vivo". Queria subir no topo de um prédio e gritar: eu sou um tradutor pornô! Um tradutor pornô! E só não o fiz, pois estava muito eufórico para chegar em casa e começar a traduzir. "Nurses of the Inner City Unity". Enfermeiras Assanhadas? Nha.Enfermeiras do Sexo? Nunca. "Nurses of the Inner City Unity" só pode ser UTI da Putaria, enquanto a sinopse "They'll come to heal the sick and suck some dick" virava "Elas não têm medo de injeção e estão cheias de tesão". Manter a rima infame na tradução me dava o tipo de satisfação profissional que um neurologista deve sentir ao desentupir alguma veia no cérebro de alguém em uma cirurgia de oito horas. E os e-mails do contratante, me parabenizando por manter as rimas do original, eram como a gratidão dos pacientes que temeram perder a vida, mas agora, graças a mim, iam poder ver suas filha crescerem, beijar suas esposas e conhecer o Cairo.

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Homenagens aos meus filmes favoritos foram gradualmente aparecendo. O conto de jogadores de futebol americano que faziam amor feroz no vestiário era naturalmente batizado de Se Minha Saqueira Falasse enquanto a eletrizante história da ninfomaníaca que telefona para amantes do seu quarto de hotel recebia o nome de Disque T para Transar. Foi ali, encarando uma moça de biquíni verde limão sob Hot Jizz on My Face escrito em uma fonte que emulava sêmen e fuçando com força na minha fraquíssima bagagem cultural que conheci a verdadeira masturbação mental. A satisfação dos chefes com a, digamos, liberdade poética que eu tinha só me incentivava a continuar: Crazy 4 Cock virava Elas Querem Pica a Granel enquanto eu citava a Vênus de Willendorf na sinopse de um filme com gordinhas (que, pelo que lembro, batizei Tâmo Nessas Carrrne).

Depois das primeiras levas de filmes, fui convidado para uma reunião na casa do chefe. Estranhei. Ele sempre pagava em dia. "Tá traduzido, chefe", eu dizia no e-mail. Cinco minutos depois o dinheiro estava na minha conta. Foi a primeira vez que eu vi tanto profissionalismo e isso me fazia pensar: só pode ser crime organizado. É o que falam, pagam em dia, são muito gentis, mas ao menor deslize eles te apagam. Reli minhas traduções atrás de alguma troça ou gracinha com facções, famílias, clãs ou sociedades secretas. Tudo em ordem. Me acalmei e fui para a reunião. A decoração meio Psicopata Americano e o fato dele pedir para tirar os sapatos ao entrar na casa me fez voltar a ter um pouco de medo, mas percebi que o meu apartamento também passaria um quê de homicida a um estranho e me acalmei novamente. A reunião era tranquila: ele queria apontar uns erros de português aqui e ali, falar do futuro do site e mostrar um glossário de termos que ele estava fazendo. "Inclusive, adorei quando tu traduziu POV como simulador de foda", dizia ele enquanto mostrava o domínio que havia comprado para o site: www.pornografia.com.br. Pornografia ponto com ponto br. Que profissional — embora eu acredite que um punheteiro com o mínimo de expertise use palavras-chave mais criativas que 'pornografia'.

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A parceria continuou por mais alguns meses até a leva inicial ser completamente traduzida, o site ir para o ar e a Vida Real (essa eterna mãe que volta mais cedo  pra casa e nos força a trocar de canal com uma mão e levantar as calças com a outra) desviar minha atenção para outros trabalhos. Capitão Benga e A Liga dos Caralhos, Gozando na Chuva, Ela É Um Chafariz, Um Índico das Vadias, Charutos de Carne e outras dezenas de filmes foram traduzidos. Algumas vezes eu me perguntava se era saudável essa brincadeira de ficar, as quadro da manhã, descrevendo a genitália de um rapaz negro enquanto comia doce de leite direto do pote, enrolado em um cobertor e tentando lembrar algum sinônimo para pênis que ainda não tenha sido usado. Mas eu lembrava da existência de contadores ou diretores de marketing e ficava claro como traduzir pornografia estava longe de ser uma profissão insalubre. E, com um sorriso no rosto, eu falava em voz alta, sozinho em casa: “Piroca! Piroca não foi ainda”.

Gostou? Claro que sim. Então leia o que o Vinícius Perez fez anteriormente por aqui:

Ele é autor da HQ Meu Nome Não É Selton

E integrante da Equipe Todo Dia um Look:

A Vida se Repete na Estação

Um Weekend Com Você