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O Abrigo Para Mulheres Controladas Mentalmente Por Grupos Criminosos

O Vielseits é o primeiro instituto da Europa a oferecer terapia e tratamentos a vítimas de "abuso ritual". Liguei lá para saber mais sobre isso.

Ilustrações por Craig "Questions" Scott.

Gaby Breitenbach deve ter visto e ouvido coisas bem horríveis. A psicoterapeuta alemã fala sobre como algumas mulheres, quando ainda bem jovens, são sistematicamente torturadas por pessoas que tentam cindir suas mentes em múltiplas personalidades. O objetivo é controlar essas vítimas, claro, mas também deixá-las com uma identidade que pareça perfeitamente normal para estranhos. Enquanto a identidade cotidiana da vítima não tem “memória” do trauma que experimentou, Breitenbach diz que os torturadores são capazes de “convocar” as outras identidades com vários gatilhos, que podem ser algo tão simples quanto um toque de celular, por exemplo.

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Esse método de controle da mente é conhecido como “abuso ritual”. Na maioria das vezes o abuso é sexual. Os torturadores podem estar atrás do poder, ou às vezes são apenas cruéis. Eles podem ser loucos pseudorreligiosos ou fascistas e, muitas vezes, são braços de uma rede de crime organizado. Às vezes, os torturadores usam suas vítimas para ganhar acesso a uma sociedade secreta. E eles podem ligar um interruptor em suas mentes para que as vítimas cometam suicídio. É, o mundo pode ser inacreditavelmente escroto.

Mês passado, Breitenbach abriu um porto seguro para tratar vítimas de abuso ritual na Alemanha. O Vielseits — que significa “versatilidade” — é o primeiro instituto do tipo na Europa e oferece terapia para qualquer pessoa que passar pela porta. Liguei para a psicoterapeuta para saber mais sobre isso.

Um desenho feito pela identidade infantil de uma vítima de abuso ritual.

VICE: Oi, Gaby. Primeiramente, por que projetos como o Vielseits são necessários?
Gaby Breitenbach: Porque sem um projeto como o Vielseits, não há como as vítimas saírem do círculo de abuso. As pessoas que cometem esses abusos têm conexões, as vítimas não. O Vielseits conecta, protege e oferece um espaço para a cura.

Você pode falar um pouco sobre o tipo de mulher que procura a ajuda do Vielseits?
Todas as mulheres que chegam a nós são vítimas de violência organizada, sádica e sexual que as sujeitaram a um controle mental. Há também organizações praticando abuso ritual numa espécie de superestrutura espiritual, quando certas ideologias entram em jogo, como grupos neofascistas ou pseudorreligiosos como a Cientologia ou cultos satânicos.

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Vendo de fora, essas mulheres aparentam levar uma vida normal — a personalidade do cotidiano não é consciente do abuso sofrido à noite, nos finais de semana ou feriados escolares. Essas experiências traumáticas são contidas em diferentes partes da identidade, então, elas são mantidas longe da consciência e a pessoa não tem conhecimento do trauma experimentado.

Como essas personalidades são criadas?
As vítimas são sujeitadas a uma situação de quase morte — com ajuda de eletrochoques, afogamentos simulados ou outras formas de tortura — quando ainda são muito jovens e, então, são “resgatadas” por seus torturadores. Em algum momento, a psique da vítima vai desenvolver uma resposta automática — ela vai se dividir, numa tentativa de sobreviver. Como consequência dessa tortura sistemática, as vítimas podem desenvolver uma variedade de identidades diferentes ao longo de suas vidas. Os criminosos que perpetram esse abuso têm a chave para esse sistema de identidades e podem convocar um conjunto específico de comportamentos usando gatilhos — que podem ser sinais com as mãos ou certos cheiros e sons, como um toque de celular.

E por que as pessoas querem incutir esses gatilhos em suas vítimas?
Em geral, há duas razões diferentes. Há perpetradores praticando abuso ritual para satisfação pessoal. Eles colocam as vítimas em experiências de quase morte com violência extrema por diversão. Outros apreciam o aspecto de poder da situação, o que também assegura a entrada em círculos exclusivos. O efeito colateral é que a vítima não tem outra opção a não ser fugir para dentro de si mesma, emocional e mentalmente, e criar identidades separadas.

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Por outro lado, há grupos de torturadores com planos elaborados para criar personalidades divididas e convocá-las como quem liga um interruptor. Eles querem vender os “programas” que usam para controlar suas vítimas e querem mostrar que são capazes de criar identidades separadas em certas pessoas.

Que tipo de identidades podem ser criadas com esses programas?
Vítimas jovens de abuso ritual são usadas em geral como prostitutas infantis e treinadas para tomar parte em imagens e filmes de abuso infantil. Essas mulheres serão prostituídas durante a maior parte de suas vidas, usadas para violência sádica e, às vezes, para espionagem. Muitas das identidades não conseguem sentir dor.

E como é um dia comum para as pacientes do Vielseits?
Elas têm rotinas diárias estritas em pequenos grupos supervisionados. O conteúdo do dia depende de questões atuais e oportunidades: esporte, autodefesa, diferentes tipos de atividades criativas, treinamentos, avaliações de risco, culinária, gerenciamento da vida diária, como lidar com autoridades, etc. Além disso, as mulheres também precisam de contato individual com terapeutas e muito apoio.

A fundadora do Vielseits e psicoterapeuta Gaby Breitenbach.

O que você sabe sobre esses torturadores?
As pacientes falam de pessoas de todos os níveis e ocupações. Eles vão da polícia ao judiciário, pessoas da administração pública, professores de faculdade, médicos, psicólogos, hipnólogos, políticos… Alguns nomes aparecem repetidas vezes. Por meio de outras pacientes e colegas ao redor da Alemanha, podemos cruzar e validar esses nomes. Alguns dos envolvidos são pessoas renomadas e premiadas.

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Você pode me dizer um desses nomes?
Bom, isso me colocaria numa posição legal muito instável.

É, provavelmente. Você ou sua equipe já chegaram a entrar em contato com alguns desses torturadores?
Essas pessoas pressionam nossa equipe, o instituto e os consultórios dos profissionais envolvidos. A pressão varia de ameaças verbais a incidentes que quase levaram a acidentes de carro. Os torturadores também colocam pressão nas pacientes — por exemplo, eles podem convencer uma das identidades que ela matou um membro da nossa equipe que, na verdade, saiu de férias. Esse é só um exemplo das muitas técnicas que os torturadores usam para retomar o controle sobre suas vítimas. Mais da metade de nossas pacientes ainda sai do Vielseits no final do dia dirigindo o carro de seus torturadores, provavelmente para enfrentar mais abusos.

Quão perto você chega das experiências das vítimas?
Vemos escoriações e cicatrizes recentes nos corpos das vítimas todos os dias. Temos uma abundância de nomes de torturadores, cenas dos crimes e experiências documentadas. Algumas mulheres têm fotos, documentos e outras coisas que comprovam o abuso.

Por que elas não procuram a polícia?
Essas mulheres estão sob muita pressão e sabem que vão pagar com a vida se fizerem isso. Há programas automatizados [na mente delas] que podem desencadear o suicídio. Com o passar dos anos, as experiências com a polícia provaram ter pouco sucesso. Lidar com mulheres que têm personalidades divididas, cujos processos de pensamento ainda estão sob controle do torturador, pode ser frustrante para a polícia.

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Você tem algum exemplo?
Muitas vezes, uma identidade que ainda é fiel à rede pode enganar propositalmente os investigadores, que depois descobrem que todas as alegações da vítima eram mentiras. Vítimas com transtorno dissociativo de identidade também têm crédito limitado num tribunal, assim como crianças abaixo de cinco anos e pessoas com deficiência. É um processo que não aconselhamos às nossas pacientes, já que as chances de sucesso são pequenas. Nossas pacientes estão mais interessadas em deixar o círculo de abuso e sobreviver.

Como a equipe lida com as identidades que ainda são leais à rede de abuso?
Principalmente entendendo por que elas são leais, explicando a elas que o círculo de abuso pode ser interrompido e pela construção da autoestima. Também trabalhamos nos gatilhos e iscas usados para fazer com que elas voltem. Há crianças ainda no grupo? Outras pessoas do grupo podem ser machucadas se certa pessoa não voltar? Os torturadores dizem às pacientes que o terapeuta do Vielseits só vai estar seguro se elas voltarem?

Em geral, é uma questão de examinar os truques e métodos usados pelos torturadores. Para tirar o programa que foi instalado em suas mentes, as pacientes precisam trabalhar seu trauma com os terapeutas. Então, é inevitável vivê-los novamente, o que é exaustivo fisicamente e muito doloroso para as mulheres.

Por último, o Vielseits pode ser infiltrado por um membro ativo de uma rede de crime organizado?
Certamente. É por isso que temos tanto trabalho em rede dentro da equipe, pelo menos uma hora de supervisão diária e intervenções de crise com pacientes quando preciso. Em geral, nosso trabalho exige muito exame de informação, testes e verificação como um time.

Bom, espero que você continue com o bom trabalho. Obrigada, Gaby.