A mulher negra é a que mais sofre no Brasil com violência no parto

Foto: Paulo Ermantino/VICE

Foram muitas as tentativas de Lorena Ifé na sua busca por um atendimento mais humanizado durante a gestação. No seu pré-natal, a jornalista e empreendedora soteropolitana passou por um médico particular, partiu para um segundo obstetra via Sistema Único de Saúde (SUS) e, após mais uma consulta com outro médico da rede pública, percebeu que encontrava o que procurava. Insatisfeita, ainda escutou de um enfermeiro: “Se quer um bom atendimento vá procura-lo em outra cidade”. Na saída do hospital, entre lágrimas, decidiu que não faria parte das estatísticas de violência no parto no Brasil, que atinge cerca de 25% das gestantes no país, dado que incide ainda mais no caso de mulheres negras grávidas, como Ifé.

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A jornalista, depois que ouviu boas recomendações sobre uma enfermeira chefe numa Unidade Básica de Saúde em uma cidade interiorana da Bahia, saiu de Salvador em busca de um acompanhamento digno. Lá, recebeu orientação sobre amamentação, mudanças no corpo, exercícios físicos, preparação para a chegada do bebê e outros cuidados. 

No Brasil, uma a cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto.

Antes mesmo de chegar aos hospitais para o parto, as grávidas negras enfrentam uma dura realidade no Brasil. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), apesar de uma melhora nos índices entre 2000 e 2010 em relação à população afro-brasileira, o analfabetismo entre as negras ainda é o dobro se comparado com as brancas. Em relação à taxa de desemprego, em 2015 foi registrado que 17,4% das mulheres negras com ensino médio estava sem emprego, contra 11,6% da média feminina. 

A violência obstétrica, por sua vez, afeta boa parte de mulheres no país, como aponta o levantamento da Agência Pública. Segundo dados de 2010 da Fundação Perseu Abramo, uma em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto como gritos, procedimentos dolorosos não autorizados ou informados, ausência de anestesia e negligência. Há também queixas de assédio sexual durante o pré-natal. Com as mulheres negras a incidência da violência é mais presente, como na experiência de Lorena Ifé, que a fez questionar qual a relação do sistema de Saúde Público Brasileiro e a mulher negra — e partindo da sua própria dúvida iniciou uma pesquisa jornalística e pessoal.  
Em suas investigações, Ifé concluiu algo revelado pelo próprio SUS: mulheres negras são as que mais morrem por complicações no parto, aborto e demais situações no Brasil. Relatos e desabafos de outras mulheres tornaram-se parte de sua rotina. “O que percebi é que ainda passa na cabeça das pessoas, tanto profissionais como pacientes, que o atendimento do SUS nos é um favor”.

“O que percebi é que ainda passa na cabeça das pessoas, tanto profissionais como pacientes, que o atendimento do SUS nos é um favor”. — Lorena Ifé

Assim como Lorena Ifé, outras mulheres negras também sofreram com a violência obstétrica. Segundo dados lançados em 2014 na campanha “SUS sem racismo”, do Ministério da Saúde: 60% das vítimas de mortalidade materna no país são negras; somente 27% das mulheres negras tiveram acompanhamento durante o parto, enquanto do lado das mulheres brancas esse número chega aos 46,2%. 
Os dados da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, por sua vez, revelam que em 2011 a taxa de mortalidade materna era de 68,8 a cada 100 mil crianças nascidas vivas no caso de mulheres negras e de 50,6 para brancas. 

Entre as mulheres negras, as principais causas de morte materna são hipertensão, hemorragia e infecção puerperal, registrados na hora do parto ou posteriormente o nascimento do bebê. O ministério recomenda ao menos seis consultas médicas durante o pré-natal, medida cumprida por 74,5% das mulheres brancas, 55,7% das negras e 54,2% entre as pardas.

Foto: Felipe Larozza/VICE

Para a enfermeira e ativista do movimento negro Emanuelle Goes, doutoranda em Saúde Pública na Universidade Federal da Bahia, o tratamento encarado por negras no sistema público de saúde brasileiro encontra suas raízes na escravidão. “As desigualdades raciais determinam o acesso aos serviços de saúde e limitam o cuidado”, explica ela. “Por intermédio do racismo, as desigualdades são causadoras de doenças e agravos que resultam nas iniquidades raciais em saúde. E, para as mulheres negras, outros fatores agregados, como o sexismo, expõem as mulheres a uma situação de vulnerabilidade e violam o direito à saúde e ao acesso qualificado”, escreve Goes em Mulheres Negras e Brancas e os Níveis de Acesso aos Serviços Preventivos de Saúde, tese de 2013 em que é coautora ao lado da pesquisadora Enilda Nascimento. 

“Esta população vem sendo vítima de severa discriminação tendo sua voz silenciada ou abafada dentro do sistema político e seu espaço marginalizado no modelo econômico. Para as mulheres negras isto é ainda mais verdadeiro”, acredita a socióloga norte-americana Laura Carlsen da Universidade de Stanford, especialista em violência contra mulheres. Para Carlsen, “políticas públicas dos altos escalões não resolverão esta crise, aqueles que sofrem com racismo e práticas patriarcais devem ser incluídos na reforma do sistema que atualmente os excluem como agentes”.

Foto: Felipe Larozza/VICE

Quando lançada, a campanha “SUS Sem Racismo” foi rechaçada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), via seu então secretário Sidnei Ferreira que afirmou em 2014: “com esta campanha o Ministério da Saúde insinua que o médico e os outros profissionais diferenciam [pacientes] pela raça, fazem um apartheid, diferenciando o negro do branco. Morrem negros, brancos, morenos e amarelos porque o governo não cuida da saúde pública”. 

Ainda de acordo com Goes: “o Conselho Federal de Medicina não quer reconhecer a campanha porque são os profissionais médicos que realizam o racismo institucional, então se eles reconhecem a campanha também reconhecem serem racistas.” 

Durante os dias 15 e 17 de novembro de 2016, aconteceu em Porto Alegre o 1º Simpósio Internacional de Saúde da População Negra. O encontro, uma ação da Década dos Afrodescendentes promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU), procurava discutir a implementação da Política Nacional de Saúde da População Negra. Para a professora Laura Carlsen “tendo a ONU realizado uma conferência no país, isto traz atenção para  a grande disparidade nos índices de serviços e desenvolvimento humano entre as raças no Brasil”. Ela ainda lembra que devido o “tamanho da população afrodescendente e o fato de o país ter obtido alguns avanços nas últimas décadas indicam a necessidade de um olhar mais próximo quanto aqueles que ganham ou perdem e o papel do racismo (neste cenário).” 

Após um ano, a pesquisa de Lorena Ifé virou um texto desabafo publicado em seu site “Preta é a Mãe!” sob o título “A Mulher Negra e o Acesso à Saúde”, que serviu de grande ajuda para esta matéria. Nas palavras de Ifé: “minha contribuição enquanto mulher negra e atualmente gestante é mostrar que nós somos fortes o suficiente não para aguentar uma violência obstétrica, mas para sermos as protagonistas do nosso parto”.

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