Ainda era sexta-feira quando liguei para o doutor Alberto Ferreira de Souza para marcar o dia em que eu poderia fazer uma visita ao Laboratório de Computação de Alto Desempenho, dentro da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) para falarmos sobre o IARA – o projeto de carro autônomo que é desenvolvido ali. Sim, aquele mesmo que atropelou a Ana Maria Braga, lembra?
Desde então fiquei pensando muito sobre esse lance de carros que se dirigem sozinhos. Logo lembrei de Rodão e do Wheels, do desenho Pole Position, e fiquei imaginando se um dia a gente pode ser vítima de uma distopia que seja uma mistura do filme Matrix com a animação Carros. Por fim um dia antes da visita sonhei que entrevistava a aterrorizante Christine, o Carro Assassino.
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Cheguei alguns minutos antes da hora marcada, olhei em volta do prédio procurando ao menos o carro e não vi nada. Talvez estivesse na oficina ou sei lá, não iria ter carona pra mim. Mas quando pontualmente o doutor Alberto (coordenador do projeto) apareceu e abriu as portas do laboratório, me deparei com o carro dentro da sala, em meio aos computadores e livros sobre redes neurais.
Depois de um bom bate papo, esperamos juntar quórum o suficiente para poder dar uma volta na universidade com o carro. Nas normas de segurança que eles formularam exige-se que, para cada passeio do carro, estejam presentes pelo menos três membros da equipe dentro do veículo, o que não demora muito para acontecer e estarmos prontos a seguir.
Um “piloto de segurança” fica ao volante para guiar o carro quando necessário, já que estamos dentro do campus com outros carros e pessoas transitando normalmente. O piloto tira o carro de dentro do laboratório, e então ligamos o modo autônomo – um equipamento montado em cima do carro dispara raios laser em todo o ambiente ao redor para fazer o mapeamento, como uma espécie de sonar que em vez de som se utiliza de luz.
O carro segue tranquilo pelas ruas, mas surge uma certa apreensão quando nos aproximamos de um quebra-molas. Ele freia um pouco mais bruscamente do que um bom motorista faria, mas segue a viagem. Mais a frente temos que passar por uma cancela, e os integrantes da equipe avisam que agora a freada vai ser total. O motivo: o sistema ainda não reconhece os objetos móveis. A cancela sobe, o carro retomaria sozinho, mas a equipe prefere fazer manualmente por conta de alguns detalhes do sistema.
Pouco antes de retornar ao ponto de onde saímos somos ultrapassados por outro carro, e como a rua é estreita, o sistema busca se afastar do centro da pista, e ao retornar acaba fazendo uma curva ligeiramente maior do que deveria. Nese momento, o piloto de segurança retoma o controle do carro apenas por precaução.
Claro, eu estou focando aqui nos pequenos incidentes, mas a pequena viagem foi bem da hora. Me imaginei muito bem tomando uma cerveja e fazendo hangloose pros guardas numa blitz. Para explicar melhor os detalhes do projeto, sentei para conversar com o doutor Alberto.
MOTHERBOARD: O nome do carro é Iara, vocês pensaram no nome e depois inventaram a sigla ou foi pura coincidência? Por favor não me engane!
Doutor Alberto Ferreira de Souza: [risos] Primeiro nós queríamos que o carro fosse “mulher”, depois pensamentos se teria alguma coisa da cultura brasileira para homenagear. Um aluno sugeriu a Iara, depois nós pensamos: “será que tem um sigla que coincide?”, e acabou ficando Intelligent Autonomous Robotic Automobile.
Você poderia me falar sobre o projeto de uma forma geral?
Nós somos um laboratório de pesquisa científica, e eu gosto de enxergar as as coisas divididas da seguinte forma: tem a parte científica, uma parte de desenvolvimento e inovação, tem a parte de protótipo e depois produto. O nosso foco é desenvolver ciência nova ou tecnologia nova, o que é muito importante, mas essa parte por si só não é ligada diretamente a grandes quantidades de empresas ou à sociedade. Depois dela vem o desenvolvimento e inovação, que é quando você aplica a ciência melhorando algo existente ou criando algo novo, e isso pode gerar um protótipo, mas o protótipo ainda não é um produto, e a gente também não sabe fazer isso, não é o nosso objetivo. Tem que atender uma série de outras normas técnicas além das que nós já estamos submetidos, e é difícil dentro do contexto da universidade dedicar tempo para essas coisas. Alguns outros projetos talvez possam ter esse foco no produto, mas não o nosso, por enquanto. As empresas que buscaram parceria com o nosso projeto ofereceram mais a parte material, mas o que a gente queria mesmo era poder desenvolver junto essa parte que a gente não tem conhecimento. Eles sabem as normas para fazer um farol novo por exemplo, dentre outras questões.
O projeto avançou consideravelmente de 2013 pra 2014?
Ah, o projeto avançou bastante desde então. Nós temos duas grandes metas: a primeira é dar a volta [completa] na UFES. essa meta a gente já cumpriu várias vezes, mas a gente ainda quer resolver todos os pequenos problemas do ponto de vista técnico e científico. A outra meta é a ida de Vitória até a cidade de Guarapari, que já envolve a presença de outros carros, pessoas, semáforos, placas de trânsito, e também o posto policial [risos], e isso ainda é muito difícil. Outro quesito para a ida à Guarapari é fazer com que o carro possa andar a 60km/h, por conta da velocidade dos seus “reflexos”, mas as questões do semáforo, por exemplo, já resolvemos com o trabalho de mestrado de um dos alunos esse ano. O reconhecimento das placas nós resolvemos ano passado. Nas nossas metas no papel nós temos até o ano que vem para concluir essas etapas, mas acho que até agosto podemos estar prontos.
Como é a preocupação de vocês a respeito de segurança?
Nós temos uma preocupação grande com segurança. Por exemplo, aquele episódio ocorreu com a Ana Maria Braga porque a gente não seguiu nossas próprias regras de segurança. O carro funcionou perfeitamente, já tinha chegado ao seu destino, a Ana tinha saído do carro tranquila, aí ela quis ver os computadores atrás do carro e nessa hora eu mudei o modo automático para o modo humano. A gente faz isso aqui o tempo todo, mas lá nós estávamos num plano inclinado e então mesmo colocando o carro no modo de estacionar, ele não parou. A gente aprendeu a ser mais rígido com as normas, a inspiração para isso também veio da NASA, que a cada evento de falhas grandes monta uma comissão de segurança. A equipe que a princípio iria à Lua morreu num acidente dentro da NASA devido a uma falha no teste da cápsula, então nós estudamos esses relatórios e buscamos fazer algo parecido aqui. O risco que a gente corre de acidente aqui é bem menor que o da NASA, mas o pequeno acidente que a gente teve acabou tendo uma certa repercussão. Ainda bem que não foi negativo, claro que para Ana Maria foi ruim, ela se machucou, nós não queríamos isso, no entanto não foi nada trágico, foi mais uma “videocassetada”, no fim das contas, e trouxe muita atenção ao projeto. Gostei muito do trabalho da imprensa que foi balanceada ao mostrar o incidente, mas também mostrou o projeto de forma certa.
Vocês pensam a respeito de hackers invadirem os carros no futuro?
Eu acho que o carro do futuro vai ser hackeável. Não estou dizendo que as pessoas devem hackear, mas vai acontecer, e é natural que os carros venham a ser totalmente computadorizados. A solução seria não disponibilizar os códigos usados pelas empresas, mas sabemos que isso não iria impedir os hackers. A questão de ele se conectar em rede vai ser algo arriscado, é claro, mas acho que todos estarão dispostos a correr um pequeno risco em prol dos benefícios de estar conectado. Mas isso tudo eu estou chutando só apenas.
Como é o funcionamento básico do carro?
O carro funciona com um LiDAR (fusão das palavras light e radar), que é uma espécie de radar que funciona com raios laser. Ele dispara 32 lasers numa direção e vai girando e criando os dados que alimentam o sistema que vai criar o mapa. Agora estamos implementando também uma câmera que é como faremos o reconhecimento de placas e semáforo que falei anteriormente.
As técnicas que vocês criam têm sido utilizadas em outras áreas?
Sim, um dos alunos recentemente foi contratado por uma empresa que agora utiliza essa tecnologia de modelagem do ambiente para poder carcular o volume de pilhas de minério, madeira, cereal, várias coisas. Algumas das tecnologias também vão ser usadas em aplicativos de celular que não posso falar agora.
O código do projeto é aberto?
A gente praticamente só trabalha com código aberto, mas abrir esse código não é fácil, tem que disponibilizar nos portais dedicados a isso, tem que dar uma ajeitada nos comentários do código, tem que ter um manual, alguém disponível para dar suporte.
Vocês se comunicam com outros grupos de pesquisa sobre carros autônomos, como o Google, Nissan e outros?
A gente tem contato com o Google, com projetos da Rutgers (The State University of New Jersey), da Universidade do Chile, uma da Austrália. Nem todos estão avançados quanto a gente, porém cada um vai utilizando técnicas diferentes, o que é até mais rico para o meio acadêmico, ter essa diversidade de testes.
O Brasil está com moral nessa área?
O Brasil avançou demais na área de ciência e tecnologia. Vários grupos estão num padrão mundial, não deixam a desejar em relação aos melhores grupos de outras grandes universidades do mundo. O que ajudou bastante nisso foi o apoio do governo, através de grupos como FAPES, FINEP, CNPQ por exemplo, que ajuda pagando bolsas para os alunos, material para pesquisa etc. Mas uma coisa que falta ao Brasil é que a gente não tem técnicos fixos no laboratório, o nosso projeto por exemplo é feito pelos alunos, é claro, mas depois que ele cria a tecnologia no TCC, mestrado ou doutorado dele, ele vai embora – alguma empresa grande contrata, o que é muito bom se você pensar que nosso papel enquanto universidade é formar as pessoas para isso mesmo, mas para a continuidade do projeto de pesquisa isso acaba atrapalhando. A presença contínua de um técnico ajudaria a resolver isso.