Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US .
Como todos os estados pós-soviéticos, os ucranianos têm uma relação complicada com suas raízes comunistas. Por décadas, estátuas de figuras revolucionárias como Karl Marx, Friedrich Engels e, particularmente, Vladimir Lênin foram erguidas no país. Em 1991, já eram 5.500 só na Ucrânia. Até o final de 2015, em alguns casos, o rosto severo de Lênin ainda pairava sobre praças e centros de cidades no país, servindo como um pilar literal da ideologia.
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Depois que a União Soviética desmoronou e a Ucrânia se levantou de seus próprios escombros, as estátuas se tornaram menos objetos de reverência e mais lembranças desconfortáveis dos sofrimentos do passado. Elas começaram a desaparecer, discretamente no começo, depois em ondas desencadeadas pala Revolução Laranja de 2004. E finalmente, em 2015, como parte do processo oficial de descomunização, o Parlamento Ucraniano aprovou uma lei proibindo esses monumentos, gerando um fenômeno conhecido como Leninopad, a queda em massa de estátuas de Lênin. Hoje, oficialmente, não sobrou nem um busto de Lênin pra contar história na Ucrânia..
Ainda assim, alguns vestígios continuam ali, e o fotógrafo Niels Ackermann e o jornalista Sébastien Gobert foram procurar por eles. A dupla, que trabalha em Kiev, documentou os destinos inglórios dos ídolos caídos da Ucrânia num novo livro chamado Looking for Lenin, lançado pela Fuel Publishing. As complexidades políticas e culturais da descomunização parecem aliviadas quando confrontadas com a imagem de uma estátua decapitada de Lênin derrubada entre arbustos, outra vestida como Darth Vader ou espreitando de dentro de um armário de limpeza. Este ano comemora-se o centenário da Revolução Russa, e é uma coisa bizarra ver um busto solitário de Lênin — líder bolchevique, farol do Comunismo, pai da revolução — num armário de bagunça, meio enterrado entre brinquedos velhos, como um entulho comum.
Com esse projeto, Ackermann e Gobert queriam ilustrar a aura ainda sinistra que paira sobre essas relíquias desgraçadas. Combinadas a relatos de testemunhas, as fotos lançam um tragicômico elemento intrigante na discussão sobre o jeito como os ucranianos percebem sua própria história — e o que o futuro pode trazer. Me encontrei recentemente com a dupla para falar sobre nostalgia soviética, a relação entre arquitetura e poder, e se monumentos como esses podem realmente ser separados de sua história política.
O vilarejo de Korzhi está tentando vender essa estátua por US$15 mil para reformar o jardim de infância e a escola locais. O preço é alto, e eles ainda não receberam ofertas. O mecânico responsável pela venda acha que vai acabar vendendo a estátua como sucata por menos de US$3 mil. Imagem de 3 de junho de 2016.
VICE: Como surgiu a ideia de fazer esse projeto?
Niels Ackermann: A gênese do projeto aconteceu nos primeiros dias da Revolução Maidan, em 8 de dezembro de 2013, quando manifestantes nacionalistas derrubaram o monumento de Lênin na Praça Bessarabska, no centro de Kiev. Foi o primeiro sinal de fraqueza do regime, e começou um movimento viral chamado Leninopad. Procure “#Leninopad” no Google, YouTube ou Twitter e você vai achar muita coisa interessante. Eu estava lá e vi como os manifestantes estavam batendo com toda força naquela rocha sólida. Para destruí-la, mas também para levar um suvenir para casa. Foi como assistir à queda do Muro de Berlim. Mas a estátua de quartzito vermelho — o mesmo material do mausoléu de Lênin em Moscou e da tumba de Napoleão em Paris — era muito resistente e apenas pequenos fragmentos eram quebrados. Mas na manhã seguinte, ela tinha sumido. Então, com o Sébastien, comecei a investigar para encontrar a estátua. Uma busca difícil que ainda está em andamento, mas nos levou a descobrir vários outros monumentos.
Sébastien Gobert: Foi um jeito que achamos de esquecer a revolução e a guerra que estávamos cobrindo, e lidar com questões ucranianas de uma maneira diferente. Algo interessante e menos sangrento. Mas a coisa ficou séria rapidamente.
Por que vocês decidiram focar na Ucrânia especificamente?
Gobert: A Ucrânia é especialmente importante para esse projeto por duas razões. Primeiro: o governo aprovou leis de descomunização em maio de 2015, tornando símbolos que glorificavam a União Soviética ilegais — como [aconteceu com] os símbolos nazistas. Então todos esses monumentos tinham que desaparecer. E isso nos leva à segunda razão: a Ucrânia tem a maior densidade de Lênins por metro quadrado na Terra. Em 1991, eram cerca de 5.500 estátuas na Ucrânia contra 7 mil na Rússia. Mas a Rússia é 28 vezes maior. Agora, oficialmente, nenhuma estátua está mais de pé. Então nosso trabalho aqui era questionar esse processo de descomunização: como isso era percebido pelos moradores? Como era conduzido, e o que esse processo pode nos dizer sobre o país?
Os ídolos caídos foram fotografados de várias maneiras absurdas — um torço sem cabeça plantado num campo, um busto espiando por baixo de uma pilha de brinquedos. Como você abordaram o enquadramento?
Ackermann: Meu objetivo como fotojornalista — e que insisto ainda mais vendo todos esses escândalos sobre documentários encenados e retocados — é fotografar as coisas como elas são. Faço o melhor possível para capturar imagens fortes e belas, mas sem acrescentar ou mover nada. Muitas vezes tínhamos que pedir [para] que as pessoas não mexessem em nada quando nos mostravam suas estátuas. É importante mostrar essas obras como elas estão agora. Sem nenhum artifício, para mostrar as condições de decadência, abandono e, em alguns casos, glorificação. Acho fascinante ver como algumas dessas estátuas foram do centro de grandes cidades para um entulho irritante no quintal de alguém. É um pouco como o passado soviético da Ucrânia: essas pessoas não escolheram tê-lo, mas ele está lá.
Gobert: Outro elemento importante da nossa abordagem era nunca julgar. Não dizemos se o que vimos ou ouvimos é bom ou ruim. Não é nossa história. Somos estrangeiros e julgar a maneira como os ucranianos lidam com seu passado soviético seria inapropriado. O que queríamos era fornecer um panorama da situação e mostrar ao resto do mundo a complexidade dessa questão. Podemos achar que faz sentido tirar Lênin das praças. Mas nada é consenso. O mesmo vale para manter essas estátuas no lugar, transformá-las, preservá-las. Além disso, o ato de derrubar essas estátuas não resolve várias questões. Para onde Lênin vai? O que vem agora? Que memória disso vai restar? Essa é a filosofia por trás das fotos e das histórias. Mostrar que essa é uma questão ainda não resolvida.
Como foi o processo de seleção usado por vocês para determinar que estátuas procurar e quais fotografar?
Os dois: Sempre que havia oportunidade de fotografar uma estátua, íamos até ela. Às vezes isso exigia longas negociações; outras só uma conversa de cinco minutos. No geral, cada estátua levou uma semana de trabalho para registrar. A primeira encontramos passeando aleatoriamente pelo Google Image. Por exemplo, digitando “garagem Lênin” em ucraniano ou “Lênin [nome de uma cidade]”, depois escolhendo a imagem mais surpreendente que achávamos. Isso nos levou a matérias sobre a derrubada das estátuas, o que nos levava, às vezes, a informações sobre sua localização exata. Mas foi bem difícil, Lênin se move muito rápido para um cara morto. Seus monumentos são movidos, transformados, quebrados, roubados, vendidos… Às vezes perdíamos uma estátua por conta de um dia. Desenvolvemos uma rede extensa nas redes sociais. Pessoas interessadas no nosso trabalho nos diziam localizações de Lênins e nos ajudavam com contatos.
Às vezes as pessoas que encontrávamos começavam a falar, contar histórias, reclamar, gritar. O que todas tinham em comum era algo para dizer sobre Lênin. Você diz a palavra “Lênin” e as pessoas têm uma reação. Com outros monumentos soviéticos ou mosaicos, as pessoas geralmente precisam refletir por alguns segundos. Quando se trata de Lênin, todo mundo tem uma opinião pronta. Algumas pessoas desconfiaram de nós e não disseram nada, claro. O Lênin de Bessarabska, por exemplo, era de um colecionador particular — ele tinha pego a estátua ilegalmente. Então ele foi cauteloso e não quis falar, apesar de várias tentativas nossas.
“Você diz a palavra ‘Lênin’ e as pessoas têm uma reação. Quando se trata de Lênin, todo mundo tem uma opinião pronta.”
Tivemos uma história engraçada com a administração da cidade de Melitopol, no sudeste da Ucrânia. Sabíamos que eles tinham três monumentos, retirados e guardados em algum lugar. Pedimos para vê-los. Ligamos. Mandamos cartas. Pedimos ajuda a contatos de alto escalão. Fomos até lá duas vezes. Falamos com alguns servidores públicos. Nada funcionou. A única resposta que recebemos do porta-voz da cidade foi “Não podemos permitir que vocês vejam nossos Lênins. Seu projeto não retrata nossa cidade ou nosso país de um jeito positivo”. Isso também tem a ver com a visão estética soviética: tudo tem que ter uma fachada imponente e brilhante, mesmo que a realidade seja mais empoeirada e enferrujada. Dessa perspectiva, permitir que a gente tirasse fotos dos Lênins num barracão não era aceitável. Por outro lado, fomos contatados por pessoas querendo que a gente fosse até elas. “Tenho um Lênin aqui, venha me visitar, nós tomamos um chá e você tira uma foto!” Isso aconteceu recentemente em Kiev.
É interessante pensar na rejeição física de ideais políticos do passado que o Leninopad representa, mais ainda considerando o debate atual cercando a remoção de monumentos confederados nos EUA. Por que vocês acham que é tão difícil para algumas pessoas se desfazer dessas figuras?
Gobert: Primeiro, há fatores emocionais fortes que podem ir além de qualquer crença ideológica. Nostalgia de uma época melhor, quando o ambiente era mais seguro, as cidades eram limpas, as pessoas tinham empregos, quando as pessoas eram jovens. Vemos muitas dessas reações na Ucrânia, onde as pessoas passaram por vários períodos turbulentos numa única vida.
De modo mais geral, eu diria que a relação entre arquitetura e poder, e entre monumentos e cidadãos, é uma questão de senso coletivo de identidade — a simbiose de um grupo. Nos perguntaram o seguinte durante uma das nossas apresentações: “Por que os parisienses mantêm uma estação de metrô chamada Stalingrado, e algumas ruas e escolas com o nome de Lênin?” Não é uma questão de ideologia, é mais sobre representação política e intelectual. Para lembrar alguns nomes que, em algum ponto do passado, marcaram a história e contribuíram para o caminho que o mundo tomou. O mesmo é verdade para a Ucrânia. Lênin foi usado por gerações como marcador de identidade, um elemento de fala, como referência cultural. Derrubar Lênin é querer fazer ele desaparecer do espaço público, assim como do espaço mental. Isso obriga as pessoas a definir novas referências. É um processo difícil e doloroso.
Vocês acham que há um argumento sobre o valor artístico dessas estátuas? Ou sua história política é forte demais para permitir que elas existam numa capacidade objetiva?
Ackermann: Novamente, não há uma só resposta para essa pergunta. Entre os 5.500 monumentos erguidos na Ucrânia, muitos são cópias de concreto produzidos industrialmente com valor artístico limitado. Outras, feitas de material nobre, têm propriedades mais artísticas.
Um ponto interessante que foi destacado durante uma das nossas conferências é como alguns desses monumentos soviéticos perderam seu significado político. (O que foi dito principalmente sobre mosaicos ornamentais.) Eles eram vistos apenas por sua beleza, sua mensagem era percebida como bem neutra. Mas quando o processo de descomunização começou, de repente as pessoas passaram a vê-los como propaganda soviética porque foram criados durante aquela época. Associados novamente a seu significado político, para alguns agora eles tinham que desaparecer. Recentemente viajei para Yekaterinburgo, na Rússia. O Lênin deles está no centro da cidade. Mas vendo fotos da praça que as pessoas postam no Instagram, você acha menos de 1% delas mostrando a estátua gigante. Isso nem é mencionado na maioria dos mapas da cidade. Mas está lá, e ninguém se importa com ela. Enquanto na Ucrânia, às vezes imagino se, removendo o Lênin de suas cidades, os ucranianos não estão tornando o líder bolchevique mais central que nunca em suas cabeças.
Veja mais fotos abaixo.
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Looking for Lenin, de Niels Ackermann e Sébastien Gobert, está disponível pela Fuel Publishing.
Tradução do inglês por Marina Schnoor.