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Vida e morte depois do cerco do ISIS a Kobani

Esta matéria apareceu na edição impressa de junho da revista VICE US.

Este ensaio foi adaptado de To Dare Imagining: Rojava Revoltuion, editado por Dilar Dirik, Autonomedia, Brooklyn, janeiro de 2016. Fotos da série “On the Route to Kobani” de Giacomo Maria Sini, tiradas entre fevereiro e setembro de 2015.

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1.

Em Kobani, os mortos no campo de batalha são trazidos para a Casa dos Mártires, o sangue é lavado, as feridas costuradas. Aí a família vem, e o cadáver é enterrado.

O prédio é uma sala de teto alto do tamanho de um pequeno campo de futebol com apenas uma mesa de madeira no centro para receber os corpos.

No meio desse imenso nada fica a mesa, carregando o peso de todos que vieram antes e que ainda virão.

Os familiares do morto pagam um subsídio de $200, todo mês, para sempre. Parentes e conhecidos formam grupos que se encontram toda semana. Além disso, duas mulheres e dois homens da casa visitam cada casa da família dos mortos uma vez por semana, perguntando se há problemas e tentando resolvê-los.

O cerco de 120 dias da cidade pelo Estado Islâmico, que acabou com uma retirada no final de abril de 2015, é comparado ao cerco de 1936 de Madri pelos fascistas na Guerra Civil Espanhola, devido a desproporção Davi vs. Golias das forças e por causa dos desconcertantes princípios envolvidos. Kobani, pressionada contra a fronteira com a Turquia, desde 2011 se tornou um enclave feminista, antipatriarcal e, alguns dizem, anarquista junto com outros dois cantões da Síria que os curdos chamam de Rojava, significando “oeste” ou “onde o sol se põe”. A cidade é de um desenvolvimento surpreendente no Oriente Médio, e é incrível que o caso não seja mais conhecido no Ocidente.

Depois do cerco, foi sugerido que as três áreas pesadamente bombardeadas da cidade permanecessem como estavam, e que certos bairros seriam rebatizados com nomes de mártires. Os prédios e áreas seriam escolhidos pelo heroísmo da luta ali, não pela estética.

Terríveis e sublimes, as ruínas são de fato monumentais. Mas não é estranho negar a mão do artista em favor da mão da história?

Agora os donos desses lugares querem suas propriedades restauradas.

Aí vem os cães, antimonumentos que fazem seu sangue gelar.

Eles apareceram do nada, nos disseram, esses cães da guerra, e comeram os cadáveres. Eles engordaram. Ficaram loucos e depois foram mortos. Eles se tornaram selvagens.

As pessoas repetiam essa história. Às vezes, essa parecia ser a única história. Era como se isso resumisse o cerco, mas, na verdade, ela resiste a interpretação. Você coça a cabeça, patinando no pathos. Inconcebível. Cães. Os melhores amigos do homem.

Havia outra história de monstro que os locais contavam. Desesperados quando encaravam os veículos blindados e tanques do ISIS, os combatentes de Kobani transformaram retroescavadeiras em veículos de combate, soldando placas de aço de ¾ de polegada ao redor deles. Uma coisa Mad Max. Em seus celulares, eles ouviam as vozes incrédulas do ISIS (como a história continua): “Alguma coisa está vindo!”

Os locais dizem que ainda dá para sentir o cheiro dos corpos dos combatentes do ISIS vindo das ruínas à noite. Mas eu nunca senti, e fiquei imaginando, quando relia minhas anotações mais tarde, se isso não expressava a convergência da história política com a história natural de que Walter Benjamin fala em “A Origens do Drama Trágico Alemão” — a convergência que se torna sobrenatural junto com a morte passando pela paisagem petrificada e sem tempo.

2.

Para chegar a Kobani, fiquei esperando pela liberação na fronteira turca. Era maio de 2015. Apesar de o governo turco supostamente ter permitido que combatentes do ISIS passassem, a fronteira estava oficialmente fechada. Minas terrestres pontuavam a terra de ninguém, e contrabandistas mandavam suas mulas na frente para testar a rota. Como estrangeiro, eu poderia passar para a Síria legalmente, mas sem permissão do governador de Suruç (uma cidade de fronteira de maioria curda) apontado por Ancara, eu teria a reentrada negada.

No Centro Cultural de Suruç, um especialista em contrabando me contava sobre os riscos de cruzar ilegalmente. Havia uma chance em mil de ser preso ou levar um tiro na volta para a Turquia, ele disse. Mas aí ele faz uma ligação e revisou sua estimativa. “Não! É uma em cem.” (Dois meses depois, um homem-bomba do ISIS atacou esse centro cultural e os voluntários que trabalhavam nele, que estavam a caminho de Kobani.)

Enquanto esperava uma audiência com o governador, dirigimos até a fronteira e olhamos a paisagem. Centenas de refugiados curdo-sírios assistiram o cerco daqui. Dois vagões antigos estavam mais a frente no lado sírio, lembranças da ferrovia otomana construída pelos alemães no começo do século 20 para ligar Bagdá e Berlim (imagina!). Um tanque montava guarda junto a uma enorme bandeira turca, fazendo um pastor seguindo cabras negras parecer um anão. A colheita de trigo no lado turco da fronteira continuava num ritmo alheio à guerra.

Depois de dois dias, o governador nos classificou como “trabalhadores de direitos humanos” e nos deu permissão para passar. Um “carimbo” da polícia era necessário. Cochilei num banco na delegacia, esperando. Um homem apareceu com um pedaço de papel rasgado do tamanho de um dedo, me pedindo para escrever o nome do meu pai. Ele foi embora. Dormi mais um pouco. Parecia que horas se passaram. Ele voltou com outro pedacinho de papel esperando pelo nome da minha mãe. Dormi de novo. De repente estava tudo pronto — supostamente passado pelos celulares do funcionalismo público.

3.

A metade oriental de Kobani era uma gigantesca ruína envolta em calor e silêncio. Graças ao ISIS e aos bombardeios americanos que mudaram a maré da guerra, os prédios, todos os tijolos de concreto, pareciam sepulcrais. Eles te mergulhavam em seu sofrimento silencioso e suas histórias nunca contadas. Ao saber que eu era do Ocidente, um idoso me agradeceu em lágrimas.

Outro homem carregava um balde de cimento para consertar um muro baixo do que tinha sobrado de sua casa; paciente, ele trabalhou na Turquia alguns meses e com o dinheiro comprou o cimento. Reconstrução. No ritmo de uma lesma, tijolo por tijolo, com o brilho laranja das árvores de romã em flor ao fundo. Ele não usava os tijolos espalhados pelas ruínas porque eles pertenciam a outros. A cinquenta quilômetros dali, o ISIS estava lutando. Talvez mais perto. Rumores. Cinquenta mil oliveiras queimadas pelo ISIS naquela semana. Combatentes curdos mortos ontem. Minas são um grande problema. Água? Uma velha bomba para sugar água de um poço, movida a gasolina (contrabandeada da Turquia). Um homem jovem mostrava suas duas mesas de bilhar, o feltro verde coberto de poeira da destruição. O ISIS tinha levado as bolas.

Dependendo de tradutores, e pego nas situações mutantes e na complexidade de uma guerra em andamento, eu anotava tudo furiosamente no meu caderno, pasmo com a estranheza dos arredores — com a sinceridade das pessoas, sua generosidade louca e o esplendor de seu caso, o primeiro na história do Oriente Médio, se não da história mundial.

Quando encontramos os combatentes, vi a insígnia dos homens no braço esquerdo entre a camuflagem do uniforme, uma estrela num fundo amarelo; a das mulheres era verde — “pelo meio ambiente”, me disse uma combatente. Ela disse que eles lutam pelo feminismo, por pluralidade étnica e pela terra. Em volta da cintura, de mulheres e homens, geralmente havia um cinto tradicional curdo de material estampado, que servia para arrastar os corpos. Mas eles usam um cinto mais fino por cima desse, carregando granadas, cada uma com grande anel de metal para dispará-las. Uma mulher serena de uns 30 anos, com óculos sem aro, contou como eles se matavam quando a morte nas mãos do ISIS parecia certa.

Como?

Com um dedo, ela extraiu uma granada do cinto.

Notei muitas “técnicas de corpo”: a magreza dos homens; como dormimos, homens e mulheres separadamente; tirar os sapatos para entrar numa casa; a privada no chão com formato de fechadura em que você precisa agachar (essa é uma “cultura de agachamento”, as pessoas têm quadris inacreditáveis!); a comida, especialmente os enormes pães chatos que servem de alimento, colher e prato (trigo e centeio foram domesticados pela primeira vez no leste da Turquia, ou Curdistão); comer sentado no chão com as pernas cruzadas; o número inacreditável de cigarros fumados pelos trabalhadores de saúde visitantes e um cirurgião turco (que estava operando durante o cerco); a falta de álcool e a falta do chamado para as preces. Mas aquele cinto largo com ou sem granadas, junto com a técnica de corpo conhecida como celibato, foi o que mais chamou minha atenção.

Eu, um garoto suburbano branco da Austrália, fui seduzido por essas combatentes com sua aura de celibato e suicídio?

Os visitantes prestam muita atenção nelas, inevitavelmente; mulheres combatentes não são exatamente lugar-comum fora de sessões de fotos picantes. Na verdade, unidades guerrilheiras femininas em qualquer parte do mundo levantam todo tipo de questão, medo, adoração e mitologias.

As mulheres falavam de suicídio coletivo quando o ISIS as cercavam. Elas falavam de deitar sobre o corpo de um camarada morrendo no campo de batalha e esperar morrer com ele, em se desculpar com alguém pelo telefone quando viam que iam morrer antes de se livrar de seus celulares, códigos e armas.

A ênfase em autoimolação me pareceu muito estranha e me deixava nervoso, ainda mais porque as mulheres eram muito calmas e confiantes.

Elas também me contaram sobre combatentes do ISIS falando principalmente inglês ou russo (chechenos), não árabe, e relataram conversas com eles. “Vamos te degolar”, eles diziam. “Vocês são infiéis e porcas.” Mas essas mulheres amedrontam o ISIS. É um medo visceral e místico, como o que Georges Bataille e Julia Kristeva chamam de “abjeção”. “Se forem mortos por uma mulher”, alguns membros do ISIS supostamente acreditam, “ele não vão para o céu”.

4.

Um dia estávamos sentados em volta de uma mesa, dez pessoas, quatro mulheres e seis homens sob uma árvore, num jardim num prédio de concreto de dois andares numa fazenda, a cerca de 30 quilômetros de Kobani, o mais perto do front do ISIS considerado seguro. Pomares e campos cheios de mato escondiam minas do ISIS e armadilhas nos cercavam. Para chegar lá, tivemos que passar por uma cidade deserta chamada Sexlere, que me assustou mais que as ruínas de Kobani. Fiquei imaginando por quê. Seria a falta de pessoas? Seria por que não havia ruínas? Por que “o front” era muito indeterminado?

Havia uma carreta estacionada cheia de colchões e móveis. As janelas de toda Sexlere estavam quebradas. Portas batiam com o vento. Uma sombra se moveu. Um guerrilheiro ou guerrilheira magro saiu por uma porta e acenou para o nosso motorista com seu cabelo cobrindo o rosto. (Nunca vi uma motorista mulher.) Nosso motorista tinha 19 anos, era muito sério e levava uma pistola no coldre, uma Kalashnikov no colo e uma M-16 nas costas. Ele dirigia como o vento. A Kalashnikov era para as trocas de tiros, me disse Ismet, um amigo curdo. A M-16 é a arma do franco-atirador.

Na fazenda, um fogão a lenha fervia água para o chá, sua fumaça se misturando com a dos intermináveis cigarros. Um minarete — o primeiro que vi na Síria curda — aparecia por cima de um muro em que vários pneus estavam empilhados. Uma ovelha enorme estava deitada como se estivesse morta num canto, sua lã manchada de laranja e preto, uma criatura de outro mundo.

Esse era um dos raros grupos “misturados” de combatentes mulheres e homens. Todos tinham 30 e poucos anos, todos estavam fatigados. Só as mulheres falavam, usando as calças baggy chamadas salvar. Uma mulher falava inglês e tinha dois irmãos estudando engenharia elétrica em universidades de Ivy League nos EUA. “O que eles acham da irmã louca deles?”, perguntei. Mas antes que ela respondesse, Nazan, minha colega turca, tinha uma pergunta mais importante para um dos homens silenciosos, cujos rostos desenhei por causa de seus sulcos profundos, mais sulcos que rosto, eu poderia dizer. Linhas de história. Linhas de sol. Linhas de perguntas.

“Como ter mulheres aqui afeta a moral de vocês?”, perguntou Nazan, direta e resoluta, como é o jeito dela. A resposta, numa tradução abreviada e tosca (que pode fazer a resposta dele parecer um monte de slogans), foi tipo: “Os homens estão tentando ver o mundo pelos olhos das mulheres, ser como elas. Mulheres veem o mundo diferente. Nos sentimos mais fortes com elas. Sempre lutamos juntos. Às vezes temos uma comandante. Elas podem ser muito cruéis. Outras vezes é um homem. Todo dia as tarefas são divididas igualmente. Mulheres são metade da sociedade. Elas não são mais escravas dos homens”.

Slogans? Talvez. Mas não do tipo que você ouve por aí.

Eles expressavam tristeza com suas perdas, alegria com o retorno dos fazendeiros vizinhos, apesar do problema das minas. Demoraria pelo menos um ano antes que eles pudessem começar a cultivar.

Obviamente havia uma grande necessidade de especialistas em detecção de minas. Não consegui entender por que não havia nenhum trabalhando ali e por que as pessoas com quem falei não pareciam preocupadas. Era como se as minas tivessem se tornado parte da natureza, inevitáveis.

Mais tarde, depois de voltar para Kobani, trombei com quatro figuras confusas com mochilas enormes, especialistas em demolição recém-chegados da Nova Zelândia, Reino Unido e França, trabalhando para uma ONG holandesa. Eles estavam mais preocupados com as armadilhas caseiras, me disseram. Ainda assim, quatro pessoas parecia um número insuficiente. Foi um alívio ouvir que eles também planejavam ensinar demolição para os locais.

5.

Eu tinha essa sensação em Kobani de que estava no meio de uma mudança menos ideológica e mais cósmica, às vezes sísmica.

Eu me perguntava: Mas e o ISIS? Ele não foi sísmico também?

Estamos encarando um “momento hegeliano”, em que dois competidores simetricamente opostos surgiram num mesmo momento da história? O Aufhebung hegeliano está acontecendo de novo no Oriente Médio, no centro de um grande drama histórico?

Quanto ao anarquismo e feminismo, as palavras que os estrangeiros aplicam a Rojava, eu gostaria muito de colocar aspas nesses termos, numa tentativa vaga de revigorar seu poder e estranheza. Eu queria perguntar quanto essas ideias tinham se espalhado entre as pessoas “comuns” de Kobani e das outras duas cidades (livres) curdas da Síria. Mas para mim é difícil saber ou fazer afirmações, especialmente sobre o trauma do cerco.

Um dia, andando através da poeira soprada das ruínas, fui recebido entusiasmadamente por crianças bem-vestidas, bem alimentadas e felizes, junto com uma mulher de 40 e poucos anos usando um vestido amarelo longo, que falava efusivamente sobre a resistência ao cerco sem nem parar para respirar. Era como se ela realmente precisasse — tivesse — que falar, e as crianças acompanhavam cada palavra. Um garoto de uns dez anos tinha uma câmera de brinquedo, que ele segurava de cabeça para baixo. Ele queria nos fotografar fotografando Kobani. A mulher relatava as histórias de maneira seca e factual (pelo menos pela tradução), como Heródoto ou Heidegger sobre “a plenitude e particularidade dos fatos”. As meninas sempre dormiam de sapatos, a mulher me disse. Aqui ficava uma loja esplêndida de joias destruída pelo ISIS. Quando o dono viu o que tinha acontecido, ele ficou louco. E assim por diante.

Mas quando nos encontramos com seu marido ferido, numa grande casa de concreto semidestruída, ela se sentou silenciosa como uma ostra entre as meninas, numa varanda cercada de flores rosas, enquanto ele falava o tempo todo. Uma garotinha de dez anos cantou uma lindíssima canção de guerra curda, numa voz gritada que parecia o vento soprando por fios de alta-tensão retesados.

O ministro de Relações Estrangeiras chegou num carro modesto e se juntou à conversa. E se sentou calmamente, um homem bonito e elegante, de semblante pensativo e uns 50 anos, que tinha investimentos na Somália, em petróleo, acredito, mas que abandonou ou vendeu tudo para retornar à sua cidade natal e lutar contra o ISIS.

Os oficiais políticos são chamados vezir, uma palavra árabe usada pelos curdos que significa “ministro”. As posições administrativas na Síria curda supostamente são distribuídas entre os gêneros e rotacionadas, mas mesmo tendo conhecido combatentes mulheres confiantes e sorridentes, nunca encontrei uma mulher trabalhando como oficial no governo em Kobani, apesar de ter encontrado uma tradutora de inglês (não muito habilidosa) e secretárias. Não havia mulheres nos carros pretos de luxo dos ministros de Kobani que passavam para a Turquia quando estávamos indo embora. E com todas as celebrações das mulheres, é sempre a foto de um homem, Adbullah Ocalan, o líder curdo preso, que adorna os espaços “oficiais”. Ocalan insiste no feminismo e confederalismo. Claro, é um feminismo que significa mais que um foco nas mulheres; ele salienta reconstruir os homens.

6.

Numa conversa com um homem cruzando a fronteira, cujas duas filhas eram combatentes, fiquei imaginando como deve ser “perder” suas filhas para a guerrilha. Eles dizem que quando alguém se junta às forças de defesa curdo-sírias ou ao PKK curdo, é muito improvável que ele ou ela veja sua família de novo e é preciso manter o celibato, o que significa, entre outras coisas, não ter filhos, e acho que isso se aplica tanto a homens como mulheres.

A justificativa para o celibato é que ele diminui as ansiedades das famílias das mulheres, a honra das garotas fica intacta, envolvimentos românticos atrapalham o trabalho, e sua capacidade de amar é transmutada para o amor pelo grupo.

Então as guerrilhas curdas dão aos homens e mulheres uma nova “família”, misturando algo como uma nação-estado que também é antiestado com algo que não é uma família, mas uma antifamília?

As forças de guerrilha são castas de seres serenamente distantes da carne, como freiras e monges na igreja cristã, mas com M-16s e lançadores de foguete?

O celibato é o rito de iniciação numa sociedade secreta de guerreiros, homens e mulheres, paralela ao que o antropólogo Pierre Clastres viu como o papel da tortura entre os povos indígenas do Missouri, essa tortura (se essa é a palavra correta) institucional é uma proteção, se não uma garantia, contra a coagulação do poder e a formação de um estado?

Seja como for, a formação de combatentes mulheres (cerca de 40% das guerrilhas curdas) é um fenômeno único tanto no Oriente Médio como no mundo em geral. Em Israel, um exemplo sempre citado quando se fala de soldadas, o número de mulheres em papéis de combate é de 3%, a maioria das mulheres no Exército Israelense servem em postos tradicionalmente femininos, como balconistas, enfermeiras e motoristas – junto com mulheres atraentes segurando fuzis em fotografias para a internet.

Todos os exércitos de guerrilha, escondidos em florestas, montanhas e cidades do Oriente Médio, existem física mas não espiritualmente fora da sociedade, e são dotados de um grande potencial místico (em que o epíteto “terrorista” acaba se misturando). Mas aqui no Curdistão, sua aura é aumentada com as características sexuais que derivam do poder mágico negativo sempre associado às mulheres sob o patriarcado como “o segundo sexo” — o sexo da mão esquerda e do olho maligno, o horror da menstruação e da magia negra — e portanto, protegida por tabus (honra, o véu, etc.). Por isso, um dos grandes pensadores pioneiros da etnologia, o grande Marcel Mauss, apontou mulheres e a morte como as grandes fontes de poderes mágicos perigosos da história humana.

A ideia genial, a alquimia, é transformar o negativo em positivo, mantendo o negativo como uma ameaça, um poder escondido (que se torna evidente com as armas e granadas). Em Kobani, o patriarcado treme, por assim dizer, enquanto o demônio que ele mesmo criou se ergue das cinzas, e o ISIS teme mais que qualquer coisa ser morto por uma mulher.

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