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Diga Somente a Verdade: Três Documentários Sobre a Liberdade de Informação

“Todo jornalismo é uma forma de ativismo”, disse Glenn Greenwald para Bill Keller, o ex-diretor de redação do The New York Times. “Cada escolha jornalística implica necessariamente em afirmações subjetivas — culturais, políticas ou nacionalistas — e visa o interesse de alguma parte.”

Greenwald não está dizendo que o jornalismo partidário é superior ao jornalismo não-partidário — ou que a Fox News e a NBC são mais honestas e responsáveis que o Times por serem sinceras sobre suas afiliações políticas. Ele está falando sobre o que é a “objetividade”, e as formas sutis nas quais as opiniões são expressas, mesmo dentro de uma voz institucional e “objetiva”.

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Nas discussões sobre assuntos políticos, a escolha de palavras diz muito. Qual termo deve ser usado, “tortura” ou “técnica de interrogação avançada”? As casas israelenses na Cisjordânia são um “acampamento”ou uma “ocupação militar”? É melhor descrever Edward Snowden como um “delator”, “espião”, ou simplesmente “ex-contratado da NSA”? O que acontece quando um repórter passa a acreditar, seja por sua pesquisa ou por sua experiência, que “tortura” é a palavra correta?

O problema da objetividade na mídia me chamou a atenção depois que assisti três documentários recém-lançados (apesar de esse não ser o tema central de nenhum deles). O que me interessou foi como eles rejeitam o conceito de objetividade. Diferente da escrita, onde o autor é responsável por cada palavra [ah, jura? — nota do editor], um documentário envolve tanto a perspectiva humana e pessoal quanto uma realidade objetiva: um diretor filma e edita o material, mas existe uma realidade sendo captada pelas lentes e microfones. A experiência me fez perceber que o cinema pode dizer coisas que a escrita não pode.

Os filmes em questão — “Hacker Wars”, “Silenced” e “Citizenfour”— me fizeram pensar sobre esse assunto por causa de seu tema comum: cada um lida com a questão de como dizer a verdade em situações arriscadas. (É um desafio que ambos cineastas e jornalistas tem que enfrentar, e que problematiza a ideia de objetividade). Mas eles também me interessaram na forma com que lidam com os entrevistados; curiosamente, devido à uma mistura alquémica inesperada de intenção e coincidência, a cinematografia de cada filme reflete seus objetos de estudo.

“Hacker Wars” narra a história de três hackers ativistas e seus atos de desobediência civil com muita música barulhenta, gráficos ridículos e energia adolescente. “Silenced” captura o testemunho de três delatores de segredos de segurança nacional com um ar de revolta e coragem que se assemelha aos dos próprios informantes. Em “Citizenfour”, a obra-prima de Laura Poitras sobre Edward Snowden, a história se desenrola com a mesma simplicidade, confiança e graça que o protagonista exala.

A homenagem: Hacker Wars

Barret Brown em um momento de descanso. Crédito: “Hacker Wars”

“Hacker Wars,” a ode comemorativa de Vivien Lesnik Weisman ao movimento hacker como ferramenta de desobediência civil, destaca as graves punições ministradas pelo governo dos Estados Unidos àqueles que hackearam instituições poderosas em nome de uma sociedade mais livre. A lente de Weisman, focada em heróis do movimento do “hackativismo” como Barrett Brown, Jeremy Hammond, Greenwald, o informante do NSA Thomas Drake, e o jornalista Chris Hedges, é prejudicada pelo seu maior protagonista: Andrew Auernheimer, também conhecido como Weev, um cara que se auto-intitula como troll e indagador socrático, que acredita que foder com tudo é uma forma de praticar o bem e diz coisas como “os judeus da Alemanha mereceram o que aconteceu”.

Weisman segue Weev durante seus dias de glória, quando ele estava expondo falhas de segurança da AT&T e da Apple, e durante sua acusação, julgamento e período de farra logo antes de ser preso, e sua promessa pós-prisão de seguir na carreira de ativista. É difícil não se deixar seduzir pela ideia do que é certo que Weev defende, mas, ao mesmo tempo, ele não é o acusado que um promotor gostaria de levar para a Suprema Corte para discutir essas questões.

Em seu caso e em outros, os adversários são as grandes empresas, a grande mídia e o governo. Leis usadas para acusar hackers, como o Ato de Fraude e Abuso Digital, são muitas vezes vistas como medidas paliativas e inefetivas, utilizadas de forma draconiana para cercear a liberdade de expressão. (Aaron Swartz é um dos mártires dessa causa.)

Em sua resenha de “Hacker Wars”, o The New York Times criticou a falta de objetividade do filme, que segundo eles seria necessária para transmitir a ideia do hackativismo para o público. É claro que os hackers, os trolls, os anarquistas e os radicais sem filiação retratados no filme discordariam dessa opinião; o próprio Times é muitas vezes visto nesses círculos como um porta-voz para a grande mídia “objetiva”.

NO UNIVERSO DO FILME, OS ATIVISTAS HACKERS SÃO OS HERÓIS, E NENHUMA PESSOA DISCORDA DELES

É bom notar que “Hacker Wars” não segue a receita de um bom documentário político: apesar de o cineasta que escolhe um certo tópico político ter sua própria visão política ou agenda, se o objetivo for fazer um filme sério, ele ou ela deve se esforçar para dar um peso igual ao argumento oposto, nem que seja para ganhar alguns pontos de persuasão ao parecer objetivo.

“Hacker Wars”, ao contrário, é parcial ao ponto de nem dar espaço para qualquer argumento contrário. No universo do filme, os ativistas hackers são os heróis e nenhuma pessoa discorda deles. Na minha opinião, é exatamente essa parcialidade que faz o filme valer a pena e o torna interessante. Consigo pensar em poucos filmes que retratam tão fielmente a visão que um certo segmento do “hackativismo” tem de si mesmo.

Suas manobras cinematográficas meio bregas — o uso de cortes rápidos, dubstep e memes da internet — aprofundam a história e revelam as mitologias criadas em torno do movimento de ativismo hacker. Esses hackers se acham fodas. Weisman acha os hackers fodas. A maioria dos outros entrevistados acha eles fodas. Já o público pode não achar eles tão fodas. Mas sem entender o quão fodas eles se acham, e o porquê, o público nunca irá entender porque eles fazem o que fazem, ou mesmo o quê eles fazem. E essas são as coisas que o grande público deveria se esforçar para entender, visto que a segurança informacional e suas brechas tem ocupado um espaço cada vez mais relevante em nossas vidas.

Devido à sua abordagem direta de uma subcultura revolucionária e por ter sido filmada por alguém que faz parte do movimento, “Hacker Wars” é um documento antropológico importante, independente da opinião política do espectador. Será que Weev e Barrett Brown são o Marat e o Robespierre dos nossos tempos? Só o tempo dirá. No meio tempo, a internet tomou parte da importância política que antes pertencia às ruas e à mídia impressa. Por mais que Weisman tenha tentado criar uma grande propaganda, ela falhou por causa das virtudes inerentes da obra documentária; quando ela nos mostra um pedaço da realidade, somos nós que decidimos o que pensar sobre aquilo.

No começo do mês,Weev chegou ao fundo do poço de seu comportamento de troll, escrevendo um texto horrível para um site racista e compartilhando uma foto sem camisa que revelava uma tatuagem enorme de uma suástica em seu peito. A Gawker caiu em cima, e o Twitter bombou. Joe Fionda, um dos produtores e maiores contribuidores do filme (sua alcunha hacker é subverzo) disse-me que os cineastas não estão muito preocupados com esses acontecimentos. “O cara pode ser o maior cuzão da face da Terra”, ele disse. “E ele provavelmente é. Mas isso não significa que ele deva ser tratado injustamente pelo sistema.”

Poderíamos usar essa mesma lógica para julgar “Hacker Wars”. Em vários aspectos, o filme é uma carta de amor hipster e nada sutil a um bando de babacas. Mas é um bom começo para quem quiser entender como esses babacas veem o mundo.

O documentário ativista: Silenced

John Kiriakou, ex-agente da CIA. Crédito: “Silenced”

“Silenced”, de James Spione, narra as histórias de três ex-membros do governo: Thomas Drake, John Kiriakou e Jesselyn Radack, e é o tipo de documentário bem-feito e impecável que o Times queria que “Hacker Wars” fosse. Em 2001, Radack era uma procuradora do Departamento de Justiça dos Estados Unidos quando recebeu uma ligação do Afeganistão. John Walker Lindh, um suspeito de terrorismo americano, havia sido preso, e os responsáveis por sua prisão queriam saber se ele precisava de um advogado. Ela disse que sim. Mas como ela logo descobriria, ele não teria direito a um advogado; sua preocupação só aumentou quando ela ouviu o Procurador Geral John Ashcroft afirmando para a mídia que o acusado estava sendo defendido. Ela foi tirar satisfações com seu chefe e recebeu ordens para esquecer o assunto.

Uma das sequências mais memoráveis de “Silenced” ocorre alguns meses depois. Radack ouve de alguém do Departamento de Justiça que só existem dois emails escritos por ela na pasta do caso John Walker Lindh. Ela sabe que ela escreveu mais do que isso, e resolve dar uma olhada na pasta. Em um corredor mal-iluminado, ela abre algumas gavetas, acha a pasta, abre-a e vê que todos os emails, salvo dois, foram retirados. É um momento extremamente tenso. Radack percebe que há algo de errado, e o público percebe o mesmo.

É claro que a cena é reencenada. O filme não mente para seu público sobre isso, e as reencenações são muito bem feitas, em preto-e-branco, com gestos comedidos como uma mão pegando um telefone, ou com pessoas reencenando suas próprias vidas. Essas reencenações também são importantes para a narrativa: muito do que é mostrado em “Silenced” — a acusação de Thomas Drake após sua denúncia de práticas do NSA, a perseguição que John Kiriakou sofreu pelo governo e o agente da CIA que foi o primeiro a denunciar publicamente as torturas conduzidas pela agência — já havia acontecido quando Spione começou as filmagens. Como resultado, todas as gravações seguiram uma tese pré-estabelecida; existem poucas cenas que não foram colocadas lá para corroborar com o que o diretor está querendo dizer.

CONTAR UMA HISTÓRIA DEPOIS DOS EVENTOS RETRATADOS TEREM OCORRIDO TORNA MAIS DIFÍCIL EXPOR O ESPAÇO NEBULOSO ONDE A VERDADE, E NÃO A POLÊMICA, SE ESCONDE.

“Silenced” é um filme inteligente, cheio de suspense e com um objetivo claro: informar o público acerca do tratamento que os traidores da pátria recebem, considerado ultrajante pelo cineasta. É uma obra que informa de um jeito responsável e sem propaganda. É um bom exemplo do crescente gênero do documentário ativista. Com exceção de uma longa sequência anterior à prisão de Kiriakou, que beira ao sentimentalismo, o filme é persuasivo e razoável do início ao fim.

Mas a falha de “Silenced” é exatamente sua falta de falhas. Spione não poderia defender sua objetividade, e é bem provável que ele não fizesse isso: o filme segue mais a linha de revolta de Greenwald do que a curiosidade de Keller. Além do mais, contar uma história depois dos eventos retratados terem ocorrido torna mais difícil mostrar o espaço nebuloso onde a verdade, e não a polêmica, se esconde. A verdade que o repórter não espera é sempre a mais convincente, e quando um filme é construído de traz para frente, essa realidade inesperada desaparece. A verdade fica vulnerável.

A abordagem realista: Citizenfour

Pronto para o close. Crédito: Radius / TWC

“Citizenfour”, de Laura Poitras, é, entre outras coisas, um lembrete de quão raramente o universo conspira para colocar um ótimo documentarista no centro de uma história importante enquanto ela se desenrola.

Em uma das cenas principais de seu filme brilhante e envolvente — o terceiro de uma série sobre o mundo pós-11 de setembro— Poitras (que praticamente não aparece) e Glen Greenwald acabam de se encontrar com Edward Snowden e estão se escondendo em um quarto de hotel em Hong Kong. Eles estão prestes a lançar o maior furo jornalístico sobre vigilância governamental da história. Um alarme dispara no corredor. Será que alguém irá arrombar a porta, como Poitras pensou na hora? A câmera continua a filmar, capturando a ansiedade palpável (e ocasionalmente, a estranha leveza) do silêncio que precede a tempestade. No final, o som era só um alarme de incêndio sendo testado em má hora.

Alguns dias depois, após o time publicar o vídeo que revelou sua identidade, Snowden — subitamente o homem mais procurado do mundo — está no banheiro, passando gel no cabelo e colocando lentes de contato para mudar um pouco sua aparência, mexendo em um guarda-chuva que faz parte do disfarce e argumentando se deve ou não atender o telefone. (“Acho que você ligou para o número errado”, ele diz para a pessoa do outro lado da linha antes de desligar. “Era o Wall Street Journal“, ele diz.)

É o tipo de cena que você só esperaria ver em um filme de ficção, visto que as circunstâncias necessárias para que ela seja capturada em vídeo são muito improváveis: alguém no meio de um escândalo internacional tem que confiar em uma cineasta o suficiente para permitir que ela tenha total acesso à sua intimidade, justo no momento em que o drama está se desenrolando, no momento, como ele diz, que tudo pode acontecer.

É óbvio que isso é exatamente o que aconteceu entre Snowden e Poitras. As cenas reais são fascinantes por diversos motivos, e um deles é a banalidade de alguns dos momentos capturados. Mesmo no olho do furacão global, e mesmo com um protagonista tão carismático quanto Snowden, uma pessoa é uma pessoa — e bosta, será que eu devo atender o telefone?

Quando a porta finalmente fecha atrás dele — ele e um advogado local decidiram não fugir de táxi, mas sim ligar para um amigo — Poitras, a diretora, não faz ideia do futuro que espera Snowden, ou se eles irão se encontrar novamente. O público só entende isso depois de um pouco de reflexão; essas sequências não possuem nenhuma narração ou música, e, no caso das cenas com o Snowden, temos que fazer um esforço para lembrar que essas imagens só existem por causa da presença de Poitras. ( Snowden hesitou em aparecer em vídeo, mas ela o convenceu.)

POITRAS SE ESFORÇA PARA FAZER DE “CITIZENFOUR” UMA FONTE PRIMÁRIA. O FILME MOSTRA MAIS DO QUE DIZ.

É essa intimidade, e a escolha de não manipular esses momentos, que eleva “Citizenfour” ao patamar de obra de arte, a algo que interessa o público geral, independente de afiliação política. Quer você ame ou odeie Snowden, o filme te dá a oportunidade de ver como ele estava naquela manhã, logo antes de abandonar seu hotel e pedir asilo em Hong Kong.

É natural presumir que Poitras é uma diretora parcial. Ela é a única desses cineastas que também está envolvida no drama que ela filma — aparentemente, ela também é um alvo do governo. E não há como negar que o filme parece, em alguns momentos, uma homenagem à coragem de Snowden. Pontos de vista contrastantes não tem espaço no filme. Mas Poitras não tenta influenciar seu público. Ela se esforça para fazer de “Citizenfour” uma fonte primária. O filme mostra mais do que diz.

Na última cena, estamos em um quarto de hotel em Moscou, no início de 2014, um ano após os acontecimentos de Hong Kong. Greenwald está falando com Snowden sobre uma nova série de vazamentos (enquanto isso, Poitras filma). O filme não menciona The Intercept, a iniciativa jornalística da qual Greenwald e Poitras são editores, e onde eles têm publicado artigos sobre os documentos de Snowden, mas o filme deixa implícito que esse é só o início da história, e não o seu fim.

Mesmo que esse momento tivesse sido escrito por um roteirista de Hollywood, ele não seria capaz de retratar tão maravilhosamente a a rede de segredos e vigilância e os perigos de se denunciar os dois. Apesar desse ser um filme admirável por sua sensação de calma, o último momento do filme traz um pouco de diversão cinematográfica. Nós não sabíamos que isso ia acontecer desse jeito, o filme parece dizer, mas parece que os mocinhos ganharam no final. O grupo está todo junto, e há outra história no horizonte, uma história ainda maior do que a que acabamos de assistir. Fiquem ligados para a continuação. O filme termina com um arroubo musical, uma explosão inesperada e envolvente de Trent Reznor. Apesar de toda sua sutileza, o filme acerta nessa cena triunfante (e talvez um pouco incerta).

O filme cuidadosamente controlado de Poitras, que no final é uma obra sobre o desafio de narrar uma história, prova o que a arte já sabia há milênios: a subjetividade não é o mesmo que uma opinião, e quando tentamos capturar a verdade, uma abordagem subjetiva pode ser mais complexa — e mais cativante.

“Os humanos não são máquina movidas à objetividade”, como Glenn Greenwald disse à Bill Keller. “Todos nós percebemos e compreendemos o mundo através de prismas subjetivos”. Greenwald encoraja os jornalistas a terem mais consciência e serem mais responsáveis com as palavras que usam. No cinema, a câmera e as lentes podem dar mais espaço a essa discussão, mas esse conselho se aplica a toda forma de jornalismo. É um imperativo humano: os jornalistas não podem ceder às suas bússolas morais, mas sim deixar-se guiar por elas. Os três filmes nos ensinam uma lição: a verdade jornalística e a subjetividade não sao mutuamente excludentes; um jornalista precisa de um pouco de subjetividade para encontrar a verdade.

@lucyteitler

Tradução: Ananda Pieratti