Todas as fotos por Vitor Cohen
É cerca de 23h de um sábado na rua Marques de Itu, 284, na República, tradicionalmente ocupada por travestis, pessoas em situação de rua e por alguns perdidos na noite suja. Quase sob a sombra do Minhocão, imigrantes chegam caminhando, de táxi, Uber ou carona para curtir o último grito da moda latina na cidade: El Che, uma balada com a proposta de unir toda comunidade latina em um só espaço. São bolivianos, peruanos, colombianos e cubanos que deixam de lado os estereótipos de pobreza, isolamento e exploração para bailar ao lado de brasileiros e reforçar a cultura latino-americana, por meio da dança e da música.
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Com a proposta de levar os imigrantes latinos para o centro da cidade para se divertirem, nasceu uma balada com pegada revolucionária, como remete o nome do guerrilheiro argentino. Para sair dos guetos aos quais se confinaram, seja por decisão própria, falta de condições ou preconceito, os imigrantes têm avançado as barreiras invisíveis de São Paulo e ocupado novos espaços em regiões que, muitas vezes, eram apenas passagem de ida e volta do trabalho.
O nosso anfitrião é o boliviano de Sucre Antonio Andrade, 43 anos, que está no Brasil há 20 anos, e faz parte de grupos de divulgação da cultura boliviana e latina no geral, como o Bolívia Cultural e o site Planeta América Latina. Andrade desmonta qualquer preconceito dos que veem os bolivianos apenas como empregados de oficina de costura. Engajado, o descendente dos povos originários explica a concepção do nome da balada numa toada típica dos movimentos latino-americanos, marcados por lutas, guerrilhas e militâncias. “O brasileiro, o ser humano, deve ser revolucionário, não necessariamente em cima do ícone do Che Guevara, mas que seja uma revolução na economia, na sociedade, na filosofia, na educação. Um revolucionário para oferecer opções para a sociedade. É isso que fazemos ao juntar a comunidade num espaço seguro e que muitos nunca tiveram a oportunidade de frequentar.”
Mais do que outro produto na eclética noite paulistana, El Che traz uma marcante carga social de reforço das culturas dos povos e uma espécie de levante dos grupos de imigrantes latinos muitas vezes marginalizados e que não se veem representados nas casas noturnas de São Paulo.
É na pista que se traduz o apreço pela cultura latino-americana, só que agora numa pegada mais plural, contemplando artistas e ritmos de vários países. Nas picapes, Bruno Gadelha, DJ brasileiro especializado no swing latino que toca na night há 12 anos. Gadelha explica a diferença entre o El Che e as demais casas noturnas em que já discotecou com a mesma pegada. “As casas que temos são boas, mas são mais de temática latina do que de imigrantes latinos feita para latinos. São públicos diferentes.”
O que a galera curte na pista não se reduz a música típica, como a salsa e a bachata. Sucessos do mainstream comem solto nas caixas: Maluma, Nicky Jam e J Balvin são alguns exemplos de artistas que agitam as pistas. Mas isso é pra quem curte uma pegada mais pop. Na balada também rolam os clássicos latinos que atraem um público fiel e quase que maçônico, composto por brasileiros e imigrantes apaixonados por dança de salão.
O analista financeiro e professor de dança Rolando Miranda, de 39 anos, tirava uns passinhos nas pistas com a mulherada que bailava muito, deixando quem mal consegue gingar sozinho com receio de encarar tanto profissionalismo no meio de uma balada. Há 21 anos no Brasil, o boliviano de Cochabamba não perdeu o sotaque e nem o jeito com a salsa. Miranda dá aulas para os frequentadores que chegarem cedinho à casa, lá pelas 21h. “Outras baladas tem música ao vivo e são muito voltadas para a salsa e para o pop latino. No El Che tem salsa, bachata, merengue. A diversidade de cultura aqui é muito ampla, diferente do perfil das outras casas que frequento. A integração de cultura, de conhecimento e de costumes é muito interessante. Estar localizado no centro de São Paulo é mais um ponto positivo. Não existia antes um lugar como esse por aqui, além de ter um preço mais atraente. Outras casas cobram R$ 40 só para entrar e tem lugar que a água custa R$ 10. Isso está muito longe da realidade de muito imigrante latino.”
A casa não se diferencia em nada em relação à infraestrutura do que a classe média de São Paulo está acostumada a ver na noite. Lugar espaçoso, arejado, limpo e com segurança. Mas o que é uma mínima para alguns, para esses imigrantes é uma grande novidade.
Com as barreiras geográficas e financeiras vencidas, o El Che quebra mais um paradigma das baladas frequentadas por imigrantes latinos na cidade, a falta de segurança. Em bairros como o Bom Retiro e o Brás acontecem festas para esses públicos, porém sem estrutura mínima que garanta a integridade dos frequentadores. Antonio conta que esse cenário aliado ao alto consumo de álcool traz consequências danosas os imigrantes latinos, que, em sua grande maioria, estão longe de suas famílias. “É muita briga. Se olhar torto, sai até morte”, explica.
Quem viveu uma situação de terror numa festa de rua no Bom Retiro foi a peruana Cristina Bañares Chavez, de 49 anos. Acostumada a ir curtir salsa pela cidade, Cristina conta que ficou surpresa com as instalações do El Che e relembra o que já viu em baladas por aí. “Aqui eu me sinto segura. Já vi muita briga feia. Um lugar que eu ia dançar salsa era violento. Mataram uma pessoa esfaqueada na minha frente. Tiraram tudo do caminho e a festa continuou. Aqui é muito diferente. Os lugares por aí são muito pequenos e o público que frequenta menos diversificado. Geralmente, uma nacionalidade só domina o lugar. Aqui todos compartilham do gosto musical um do outro. É seguro e a localização ajuda. É perto do metrô. Eu moro no Tucuruvi. Posso ter companhia para voltar para a estação.”
Mesmo não sendo novidade para o paulistano ter uma balada com infraestrutura como essa, os brasileiros são bem vindos pelo motivo óbvio que muitos se esquecem: porque são membros da comunidade latina. Essa falta de reconhecimento das origens cria impasses e dificuldades que vão além da língua e tiram a chance de aprender sobre a cultura dos países hermanos. Quem quiser conhecer o rolê e até botar um óleo no espanhol, é só chegar todos os sábados, a partir das 22h, e ferver no suingue latino que anda enrustido em muita gente, regado a muito drink típico, como o mojito e piña colada.
Mas se acha que vai encher a lata até passar mal e passar vergonha achando que é um dançarino de salsa profissional, saiba que a casa promove o projeto “Yo Cuido a Mi Amigo”, como forma de estimular o consumo consciente de bebida alcoólica. Panfletos e até a bolacha de apoio do copo com informações sobre o assunto podem te deixar inibido na hora de se jogar sem freio no goró. Um das frases do material de divulgação diz: “También podrías hacer cosas de las que te arrepientas”. Quem nunca?
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