A visita do ditador norte-coreano Kim Jong-un ao Museu Sinchon das Atrocidades de Guerra dos EUA, na terça-feira passada, forneceu um vislumbre raro de como o Reino Ermitão transforma grãos de verdade em propaganda e paranoia.
Como reportado pela Agência Central de Notícias da Coreia (ACNC), a visita parece ter sido a primeira de Kim ao museu desde que assumiu o poder depois da morte de Ki Jong-il, seu pai e ex-ditador do país, três anos atrás.
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O evento pode ter sido uma tentativa de combater a má publicidade que Kim recebeu semana passada, quando a Assembleia Geral das Nações Unidas pediu ao Conselho de Segurança para denunciar o ditador e sua corte ao Tribunal Internacional por crimes contra a humanidade. Essa decisão veio depois de a ONU apontar que a Coreia do Norte mantém 120 mil pessoas em campos de concentração, onde trabalho forçado, estupro, infanticídio e tortura são rotina.
“Eles são canibais e homicidas, que buscam prazer na matança.”
O museu relembra o massacre de Sinchon, em que soldados norte-americanos teriam matado 35 mil civis e começado a Guerra da Coreia, em 1950, além de documentar outros exemplos de imperialismo norte-americano, como a campanha para acabar com o isolacionismo coreano no século 19, visando a impulsionar o comércio dos EUA com a Ásia, e o esforço de missionários norte-americanos para converter coreanos ao Cristianismo.
Não está claro se 35 mil pessoas foram realmente mortas em Sinchon em 1950. Mas não há dúvida de que os coreanos sofreram terrivelmente durante a guerra e que a política externa dos EUA na Ásia no século 19 foi, muitas vezes, exploradora e desrespeitosa. Mas Kim tira lições estranhas das exposições do museu, que apresenta um cemitério onde, segundo a ACNC, “400 mães e 102 crianças” estão enterradas.
A invasão da Coreia do Sul pelo avô de Kim, Kim Il-sug, foi o que desencadeou a guerra que deixou a Coreia do Norte empobrecida e isolada. Mas seus herdeiros omitem esse pedacinho da história, preferindo focar no sofrimento e na violência causados pelos EUA durante o combate.
“O massacre cometido pelos agressores imperialistas norte-americanos em Sinchon mostrou que eles são canibais e homicidas, que buscam prazer na matança”, afirma o líder supremo, segundo a ACNC.
Esses comentários ilustram bem o estilo de propaganda norte-coreana, disse Blaine Harden, jornalista americano que tem escrito extensivamente sobre a Coreia do Norte.
“A Guerra da Coreia ainda faz parte da vida dos norte-coreanos”, Harden contou à VICE. “Eles aprendem que Kim Il-sung e sua genialidade como líder permitiram que os norte-coreanos vencessem a guerra. Mas que eles sofreram muitas atrocidades no processo.”
Num período de três anos, os EUA bombardearam quase toda cidade, vilarejo e aldeia da Coreia do Norte, destacou Harden. Estima-se que as bombas mataram um quinto da população do país – aproximadamente 2 milhões de pessoas.
Harden aponta que essa contabilização de atrocidades é exagerada, mas que a mania de perseguição vinda da Coreia do Norte em relação ao estrangeiro – como muitas teorias da conspiração – se baseia, mesmo que de forma distorcida, num grão de realidade.
“Isso deu ao regime Kim – avô, pai e neto – uma narrativa baseada em fatos para dizer: ‘Os norte-americanos são bastardos. Eles mataram sua avó’”, atestou Harden. “Em muitos casos, isso é verdade.”
Kim parece estar apostando em manter essas memórias vivas. Ele acredita que o museu é um modelo de ensino de História.
“Intensificar a educação é ainda mais urgente hoje, quando a nova geração, que não experimentou a exploração, a opressão nem os julgamentos severos da guerra, emerge como a força motora da revolução”, informou a ACNC.
“É muito importante para um regime totalitário ter um arqui-inimigo”, teorizou Harden. “Mantendo vivas algumas coisas que aconteceram na Guerra da Coreia, o regime consegue alimentar sua legitimidade e dizer: ‘Claro, aqui é escuro e frio. Não há muita comida. Mas estamos te protegendo dos norte-americanos – e você lembra as coisas terríveis que eles fizeram na guerra, não?’.”
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Foto via Flickr.
Tradução: Marina Schnoor