Música

O Documentário ‘Heaven Adores You’ Prova que a História de Elliot Smith Nem Sempre Tem que Ser Trágica


Todas as imagens que ilustram esta matéria foram retiradas de Heaven Adores You, exceto quando creditadas.

Uma câmera foca alguns corredores abandonados de uma escola – vemos um armário com uma meia pendurada, e o som de uma balada com início no piano começam a tocar. “I LOVE MY ROOM!” [EU AMO MEU QUARTO!], exclama uma voz adolescente suave; com uma obsessão descarada por Beatles tentando se esconder desesperadamente sob cada nota. “YEAH!”, continua, “I hope you like it too-ooo-YEAH!” [Espero que você goste també-éém-YEAH!] E vai crescendo, crescendo, crescendo, então para.

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A música é tão imbecil quanto charmosa – projetando perfeitamente na sua cabeça aquela dependência territorial exageradíssima que nossos “eus” adolescentes tinham com seus quartos em um momento ou outro. A cama desfeita. O guarda-roupas lotado. As pilhas de roupa suja no chão. O VHS de Hellraiser. Tudo no seu lugar. Não entre.

Esta é uma das primeiras cenas no documentário musical Heaven Adores You, e o garoto cantando é um Elliott Smith de 13 anos, o globalmente adorado prolífico cantor e compositor norte-americano que morreu em 2003, aos 34 anos de idade, cuja discografia ainda fascina pessoas ao redor do mundo – seus vocais frágeis, letras vívidas e ricas harmonias, tão potentes hoje quando Elliott estava vivo.

Mas esta música, “My Room”, tocada em alto volume no filme, não se encaixa no retrato do trovador suicida dolorosamente talentoso que esperamos após mais de uma década de aparição póstuma na mídia. Estamos familiarizados com os retratos com um quê de trágico de Elliott; como a fama, a depressão, o uso de drogas, a solidão e o alcoolismo moldaram a arte pela qual nos apaixonamos. Mas este garoto cantando soa mais como um pianista pubescente com a cabeça cheia de ideias e não preocupações.

Em essência, esta é a mensagem constante deste novo documentário, financiado por meio de crowdfunding e dirigido sobre Nickolas Rossi – que a sua história nem sempre tem que ser trágica, que sua música nem sempre precisa ser lembrada como obscura, que antes daqueles dias derradeiros de clima ruim, houveram anos e anos de luz emanando de um rapazinho esperto com o cérebro dedicado à música.

Claro que Heaven Adores You fala sobre a morte de Elliott, mas grande parte do filme foca na compreensão do que fazia Elliott especial, e não no que o levou a tirar a própria vida, por meio de declarações de amigos, familiares e músicos. Liguei para o diretor, Nickolas Rossi, cuja ligação com Elliott remete à época que este passou em Portland, fazendo faculdade, para conversarmos sobre o filme, a música envolvida, e as dificuldades em lidar com um legado como estes com sensibilidade.

Noisey: Oi Nickolas. Me conta, como você descobriu a música de Elliott?
Nickolas Rossi:
Foi um lance de estar morando na mesma cidade em que ele criava música na época. Eu morava em Portland em meados dos anos 90, e ele tocava em uma banda chamada Heatmiser. Era só mais um cara em uma banda que estava tocando na pequena joia que é a cidade.

Seu filme é um registro incrível de Elliott. A forma como você usou áudios dele foi muito inteligente, parece que o próprio está narrando a coisa toda. O que é meio sinistro, mas ao mesmo tempo, muito belo. Ele parece estar presente e não como objeto de uma homenagem apenas.
Bom, é meio que os dois, né? Foi uma escolha deixar claro logo no começo que esta é a história de alguém que faleceu. Claro que os fãs sabem que Elliott não está mais conosco. Para quem não o conhece, foi até mais fácil falar isso logo de cara: aqui está um cara que foi muito famoso e morreu, e esta é a história de sua vida. O que motivou isso foi uma entrevista da KCRW que encontramos que está presente por todo o filme. É nesta entrevista que lhe perguntam “por que você se mudou para Portland? Ouvi dizer que você ia para Nova York” e foi esse bate-papo incrível em que Elliott Smith contava a história de Elliott Smith. Decidimos que deveríamos deixar que Elliott narrasse tudo, em vez de ter um monte de gente falando sobre ele. Usamos tudo que encontramos dele falando sobre sua vida. Optamos por fazê-lo assim. No final das contas, ele era a melhor pessoa possível para contar a história.

Ficou bem óbvio no decorrer do filme que você gostaria de fazer um registro edificante da vida dele.
Claro! Veja bem, com o passar do tempo após a morte de Elliott, ele ficou conhecido como um cara tristonho que fazia músicas tristes e deprimentes, e por mais que haja algo de verdade nisso, a situação é bem mais complicada. Dorien Garry resume tudo no final do filme ao afirmar que Elliott ficaria de coração partido ao saber que as pessoas só pensam nele como um cara deprê, já que isso é uma parte tão pequena de quem ele foi.


Portland, Oregon

Quem era Elliott Smith, então?
Conversando com seus amigos, familiares e colegas músicos, descobrimos que havia muitas outras histórias sobre como Elliott era um cara engraçado, sagaz, culto e extremamente generoso. Era importante focar nas coisas positivas e não no lance previsível do cara deprimido que fazia música deprimente. As músicas de Elliott não são apenas sofrimento, ele é um contador de histórias e observador excelente, e muito do que ele escrevia não era sobre si mesmo. Ele cantava temas universais com os quais todos se identificam, de forma que as pessoas entendiam exatamente do que estava falando. Por que sempre dar atenção à tristeza em Elliott quando há toda essa parte bonita de sua vida antes disso?

Por que você acha que essa se tornou uma associação tão duradoura quando se fala de Elliott?
Acho que para algumas pessoas, se você não o conhecia da época de Portland, provavelmente só o conheceria depois de sua presença no Oscar de 1998 [quando “Miss Misery” foi indicada à Melhor Canção Original]. Foi aí que muita gente o viu pela primeira vez, e tudo fica bem mais obscuro dali em diante. É uma vergonha pensar que essa é a única parte de Elliott que algumas pessoas conhecerão, quando tudo ficou pior. Houve uma época em que sua vida era bem tranquila, e essa história me interessa muito mais. O objetivo aqui era se despedir de Elliott de uma forma muito mais leve do que a mídia tem feito desde sua morte.

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Você faz isso no documentário por meio de entrevistas incríveis, mas são disponibilizados também alguns trechos de músicas e fotos muito especiais que nunca nenhum de nós viu ou ouviu. Ao correr atrás disso tudo, alguma coisa te marcou mais?
Quando paramos para conversar com Larry Crane [amigo próximo de Elliott e também músico] e começamos a ouvir umas coisas que Elliott gravou na adolescência foi um momento bem “meu Deus”. Você pensa em Elliott como aquele cara de vinte e tantos anos compondo, mas ele já gravava umas paradas com 13 anos, e era tudo bem bom. Fiquei chocado ao perceber que ele já era talentoso e proficiente desde cedo, fazendo tudo isso anos antes de saberem o quão bom ele era.

Uma espécie de prodígio, então. E todas as fotos que você encontrou?
A maior parte delas são de seus amigos e pessoas que entrevistamos. Todo mundo parecia ter algumas fotos dele na estrada ou em Portland. As pessoas foram muito generosas ao fornecerem suas fotos do tempo que passaram com Elliott. Elas estavam dispostas a compartilharem estes limitados, porém muito valiosos momentos no tempo, conosco.

É, as fotos do Elliott tocando em Portland tem um quê de icônicas. Você estava lá, certo? Como era morar naquela cidade?
Àquela altura, Seattle já tinha explodido por conta do Nirvana, Soundgarden, e todo o esquema grunge. Portland era mais de boa, uma versão quase oposta daquilo. Tinha uma ceninha rolando, anos antes de eu chegar. Parecia ser uma grande cidade pequena quando cheguei lá. Era o local perfeito para se viver com 20 anos de idade; para a vida em geral e pra música.

O Elliott que você viu tocar no Heatmiser era muito diferente do artista solo que todos conhecemos?
O Heatmiser tinha outra pegada. Na época, a banda fazia parte daquele som novo meio pós-punk, pós-grunge. Elliott gritava e tocava guitarra. Aquilo ficava na cabeça. Mas um ano ou dois depois, quando ele começou a fazer esses shows sozinho com um violão, o som e o clima eram outros. As pessoas o ouviam em silêncio. Acho que as pessoas estavam, não confusas, mas não esperavam que ele fizesse aquilo, ainda mais naquela época, com todas aquelas bandas fazendo o que faziam.


Nickolas Rossi, diretor de Heaven Adores You

Você diria que tinha sido uma atitude artística chocante?
Alguns diriam se tratar de uma atitude punk rock. Um monte de bandas fazia riffs com três acordes bastante enérgicos, aí vem esse cara, Elliott Smith, cantando com um violãozinho direto da alma sobre temas universais de amor e tristeza.

Brilhante. Falando de forma mais ampla sobre o documentário… Muita gente tem falado sobre Kurt Cobain: Montage of Heck e o futuro documentário sobre Amy Winehouse, sobre como muitas vezes estes filmes podem se tornar invasivos e voyeuristas, expondo coisas que os artistas não queriam que fossem expostas. Este pensamento sempre esteve na sua mente?
Sim, ainda mais ao trabalharmos com músicas que ele havia composto quando mais jovem. Aquela música “I Love My Room” fez com que eu pensasse se ele ficaria envergonhado de saber que esta canção composta aos 13 anos seria tão amplamente divulgada? Ele curtiria isso? Todas aquelas fotos de pré-adolescente e da infância o envergonhariam? Mas acho que há um limite quando se quer retratar alguém de forma honesta, e você precisa se certificar de que está sendo respeitoso com a sua vida e as coisas que eles sempre divulgaram. Então havia alguma preocupação sim, mas estávamos certos de que esta música guiaria o filme. Toda a parte pessoal era pessoal mesmo, mas o que importava era a música.

Você está em uma posição única como fã de Elliott, ao tê-lo visto amadurecendo em Portland, e então o acompanhando a partir dali. O que você diria aos milhões que o descobriram postumamente?
Espero que haja algo no filme que faça você apreciar de verdade de onde a música veio. Não acho que houve nenhuma experiência dramática ou explosiva ligada a Eliott Smith como sempre nos mostram. Era só um cara apaixonado por música e que encontrou uma forma de fazê-la. É isso.

Obrigado Nickolas.

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Tradução: Thiago “Índio” Silva