Durante uma aula de história da arte, na faculdade, me lembro de meu professor, ao citar os aprendizes de Caravaggio, dizer o nome de Artemísia Gentileschi e, de repente, parar de falar e virar-se à turma. “Faz cinco meses que eu estou dando essa aula, e esse é o primeiro nome de uma mulher que eu falo nesta sala”, ele disse, no momento. Prosseguiu dizendo que o curso era baseado em alguns livros didáticos dos mais clássicos sobre História da Arte (como o de Ernst Gombrich), mas somente um deles citava o nome de Artemísia.
O momento que meu professor usou pra falar da artista renascentista foi uma tentativa de ilustrar quão pouco a história da arte dá créditos às mulheres que também a formaram. A pesquisadora Linda Nochlin trata sobre os mesmos temas no artigo Por que não existiram grandes artistas mulheres?, em que conclui que a arte não é uma atividade autônoma e livre de um contexto, pelo contrário; o desenvolvimento e a qualidade da obra são mediados e determinados por instituições sociais específicas.
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Isso não significa, porém, que as mulheres não tenham uma contribuição significativa no processo de desenvolvimento artístico ao longo dos séculos – contribuição essa que tomou força a partir da década de 1980, quando obras como The Dinner Party, de Judy Chicago, e coletivos como as Guerrilla Girls começaram um manifesto feminista dentro do mundo da arte. Durante todo este ano de 2019, o Museu de Arte de São Paulo presta homenagem a esse movimento com exposições dentro do eixo temático “Histórias das mulheres, histórias feministas.”
Seguindo os temas contemporâneos e identitários que o museu tem tratado nos últimos anos com as exposições “Histórias da Sexualidade” e “Histórias Afro-Atlânticas”, o MASP realiza uma mostra coletiva e algumas exposições monográficas de artistas como Djanira da Motta e Silva, Tarsila do Amaral, Lina Bo Bardi e Anna Bella Geiger, entre outras. Para as mostras, o museu contará com duas curadoras adjuntas que atuarão nas áreas de arte moderna e contemporânea: Julia Bryan-Wilson, professora de história da arte na Universidade da Califórnia, nos EUA, e María Inés Rodríguez, curadora que foi diretora do Museu de Arte Contemporânea de Bourdeaux, na França.
Para este Dia Internacional da Mulher de 2019, Bryan-Wilson falou à VICE sobre sua relação com a arte, a relevância de uma curadoria feminina e feminista e a importância de espaços como o MASP discutirem temas como misoginia e racismo. Leia abaixo e, se você é mulher, aproveite para ir ao MASP nesta terça (8) e aproveitar uma entrada gratuita no museu.
VICE: Como foram seus primeiros contatos com arte? Como você decidiu fazer disso uma carreira?
Julia Bryan-Wilson: A primeira obra que me lembro de ter visto foi The Dinner Party, da Judy Chicago, com minha mãe e minhas irmãs feministas quando eu era mais nova em Atlanta, na Geórgia. Mas fiz um longo desvio em relação aos meus interesses e passei muitos anos escrevendo poesia e estudando literatura. Foi só depois que me mudei para Portland, Oregon e me envolvi com um sistema de distribuição de vídeos feministas punk (do tipo “faça você mesmo”) com minha melhor amiga Miranda July que decidi cursar pós-graduação em história da arte.
Quando você já estava estudando e pesquisando arte, como o interesse em estudar a teoria feminista e queer começou a se formar?
Bem, como você pôde ver na resposta anterior, minhas experiências formativas foram justamente em torno da arte feminista! Me sinto muito grata por essa experiência bastante específica e especial, que, a propósito, era muito incomum para uma criança que não vinha de um contexto economicamente privilegiado e vivia, como eu, em lugares como o Texas e a Geórgia. Em termos da teoria queer, comecei a me interessar na faculdade, mas já tinha uma base sólida porque no ensino médio eu li muitos textos fundamentais de poetas que também escreviam uma espécie de teoria queer, como Audre Lorde e Adrianne Rich.
Pode-se dizer que a representação de mulheres e pessoas não-brancas no mundo da arte, por mais importante que seja, tornou-se uma tendência nos dias de hoje. Você acha que essas obras de arte ainda estarão nas galerias quando isso não se tornar tão lucrativo quanto é agora?
Bem, eu discordo fortemente que isso é apenas uma tendência, o que faz parecer uma moda passageira e temporária. É uma correção importante e necessária para os séculos de exclusão e desigualdade em torno de raça e gênero, e eu não poderia estar mais animada para ver isso continuar!
Qual é a importância de ter mulheres no processo de curadoria de exposições?
É importante, novamente, agir como um corretivo para o fato de que as histórias da arte patriarcais têm sido muitas vezes tomadas como garantidas.
Você sente que já teve dificuldades para realizar seu trabalho como curadora por ser mulher?
Eu sofro sexismo todos os dias. No entanto, eu também sou protegida por muitos privilégios, e é importante reconhecê-los – eles incluem privilégios raciais, privilégios educacionais, privilégios de ser uma cidadã americana, etc.
Qual é a diferença entre falar sobre arte feminista e arte feita por mulheres nos EUA e em países da Europa, que são desenvolvidos, e a feitos na América do Sul, onde há países subdesenvolvidos e, portanto, mais desigualdade?
É uma boa pergunta! Há todo tipo de especificidades e diferenças regionais que devem ser explicadas –eu falo frequentemente de feminismos no plural ao invés de feminismo no singular, porque nos ajuda a entender que as questões que as mulheres e as pessoas não-binárias estão experimentando não são idênticas em todos os locais.
Para você, quão importante é que temas contemporâneos como esse estejam presentes em espaços como o MASP?
O MASP é extremamente importante historicamente, não apenas por causa de seu edifício arquitetonicamente significativo por Lina Bo Bardi, e tornou-se uma instituição muito inovadora e de alto nível. É crucial que esses lugares importantes e de prestígio estejam na vanguarda da modelagem de formas de lidar diretamente com questões como racismo e sexismo.
Como você acha que o avanço da arte em novas mídias e tecnologias democratizou o acesso à arte para mulheres e outras minorias?
Não tenho certeza se essas tecnologias democratizaram muito as coisas, dada a divisão digital global. De que mulheres estamos falando e quais minorias? Quem tem acesso a computadores, eletricidade, softwares caros? Mas é claro que há muitas mulheres incríveis de cor que estão fazendo arte de mídia nova incisiva, como Sondra Perry e Martine Syms.
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