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Em defesa de ‘Clube da Luta’

Fotograma de Fight Club

Esta semana faz 20 anos que Clube da Luta de David Fincher chegou às telonas, explodindo com as bilheterias, dividindo a crítica e se tornando um clássico cult com suas citações pseudofilosóficas coladas nas paredes de toda casa de universitário do mundo. Assisti o filme quando estava no colegial e imediatamente me apaixonei, mesmo sem nunca conseguir articular realmente por quê. Você tinha um filme sobre homens brancos raivosos liberando raiva masculina branca, e eu era uma feminista asiática americana de 16 anos que desprezava violência, queria que convocações de guerra nunca existissem, e fechava os olhos em filmes slasher. E mesmo sabendo a primeira (e segunda) regra do Clube da Luta (Não fale sobre o Clube da Luta), duas décadas depois, ainda estou tentando entender por que um filme de homens saindo na porrada pareceu tão necessário e importante pra minha eu adolescente.

Mesmo que poucos heróis do cinema parecessem comigo na época, eu não poderia ter me identificado menos com a história do funcionário de escritório insone (Edward Norton), que frequenta grupos de apoio em porões de igreja porque são os únicos lugares onde ele pode chorar, faz sexo com uma mulher que rouba calças jeans em lavanderias e as revende em brechós (Helena Bonham Carter), e começa clubes da luta undergrounds com um vendedor de sabonete maluco (Brad Pitt). Na estreia, Roger Ebert chamou Clube da Luta de “pornô macho” e argumentou que mulheres que “a vida inteira tiveram que lidar com moleques fazendo pose, iam instintivamente ver isso”. Como alguém que geralmente não tem paciência pra essa pose de machão, também sei que clubes da luta na vida real e criminosos juvenis já mencionaram o filme, perturbadoramente, como uma inspiração. Ainda assim, assisti umas doze vezes.

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Em Best. Movie. Year. Ever.: How 1999 Blew Up the Big Screen, Brian Raftery escreve que um produtor levantou questões sobre a viabilidade comercial de Clube da Luta no começo, dizendo a Fincher: “Homens não vão querer ver o Brad Pitt sem camisa. Isso vai fazer eles se sentirem mal. E as mulheres não vão querer ver ele todo ensanguentado. Então não sei pra quem você fez esse filme”. Mas depois de assistir de novo o filme em 2019, acho que esse produtor não entendeu nada, pelo menos na parte das mulheres: Talvez eu goste de ver homens brancos descontentes e atraentes sem camisa – e talvez eu goste de vê-los tirando sangue um do outro também. Tem algo estranhamente satisfatório em ver homens mostrarem sua raiva de um jeito que é em grande parte fora dos limites para as mulheres, enquanto demonstram a natureza autodestrutiva dessa violência.

“Estamos muito putos”, o vendedor de sabonete Tyler Durden conclui em um de seus grandes discursos antes das lutas. Clube da Luta é um filme preocupado principalmente com a raiva masculina, e sem surpresa, muitas vezes a culpa dessa raiva é da mulher na vida deles. “Somos uma geração de homens criados por mulheres”, Tyler diz para o Narrador de Norton no começo. A única personagem mulher principal é a Marla de Bonham Carter, que é retratada como uma louca destituída pela maior parte do filme. O Narrador se refere a ela como a fonte de todos os seus problemas; Tyler, enquanto isso, a vê apenas como um objeto sexual. Quando Marla pergunta sobre o Clube da Luta, o Narrador responde “É só pra homens”.

Mas enquanto a história se desenrola, ficamos sabendo que as razões dos personagens para se juntar ao Clube da Luta (e depois, ao Projeto Mayhem) tem pouco a ver com mulheres diretamente. Tyler é um inquieto que anseia pela adrenalina, e o Narrador está buscando paz de sua insônia e uma fuga do tédio da vida no escritório. Os homens que se juntam as operações deles também estão descontentes com quem se tornaram. Mas quando você olha mais profundamente, eles não estão realmente com raiva de seus supostos opressores – que parecem ser empresas de cartão de crédito e outras corporações. Em vez disso, eles estão meramente buscando alguma aparência de controle em suas vidas de colarinho branco, que eles incidentalmente encontram através de criar o caos para outras pessoas. Eles estão ansiosos para ter uma nova diversão e loucos para provar sua masculinidade dando de ombros para insultos sobre ser velho demais, gordo demais – ou, no caso do Jared Leto, loiro demais. Bob, um sobrevivente de câncer nos testículos que o Narrador conhece em um de seus grupos de apoio, se junta ao Clube da Luta porque quer se sentir mais tradicionalmente masculino de novo depois de perder as bolas.

Alguns já propuseram que o jeito para continuamos consumindo arte boa criada por homens problemáticos é gostando desses trabalhos privadamente. Mas essa nunca foi a questão com Clube da Luta; em vez disso, com Clube da Luta, a arte em si são homens problemáticos. Depois de ler o roteiro, Norton teria perguntado ao diretor David Fincher: “Você vai fazer esse filme como uma comédia, certo?”, e Fincher respondeu “Ah sim – esse é o ponto”. Clube da Luta é satírico, e é cínico mesmo com seu próprio cinismo, uma qualidade que deixa a bússola moral do filme meio que aberta para interpretações: Clube da Luta está zombando de homens raivoso, ou os glamorizando? Por isso acho que há um motivo aqui para gostar de um filme como Clube da Luta em público: falando sobre nossa apreciação por ele como mulheres, tomamos as rédeas e respondemos a questão por nós mesmas, destacando a idiotice de seus personagens e ações, e oferecendo uma contranarrativa para uma leitura do filme como simplesmente “legal”.

Em seu polêmico “Prazer Visual e Cinema Narrativo” de 1975, a teórica de cinema Laura Mulvey cunhou o termo “olhar masculino” para descrever o poder que os homens têm quando projetam suas fantasias em mulheres que encontram nas telas, e como os cineastas criam personagens mulheres de acordo com isso. Ainda assim, ela reconhece um jeito como as mulheres no público podem ter poder sobre esse olhar masculino: tirando vantagem da oportunidade de ver o mundo através dos olhos dos heróis homens de um filme, elas experimentam um vislumbre passageiro da liberdade e poder de que os homens desfrutam no mundo real.

Essa agência meta – poder sobre os homens que têm poder no filme – era exatamente o motivo para eu ter gostado tanto de Clube da Luta quando era mais nova, assim como filmes como Os Infiltrados e Poderoso Chefão. Onde o produtor de Fincher estranhou o que viu como algo impossível de ser vendido, vejo quão facilmente mulheres enraivecidas e sem privilégios – e particularmente mulheres enraivecidas não-brancas – podem encontrar em Clube da Luta um jeito de assumir a própria raiva. Então é apropriado que o aniversário do filme venha na era da raiva feminina, enquanto as mulheres reclamam seu direito de serem furiosas escrevendo mais e mais livros explorando a forma da raiva feminina na política, relacionamentos interpessoais e além. E não é só na literatura; é na ação social também. Desde Trump, desde Weinstein, desde Kavanaugh, e mais, mulheres estão tomando as redes sociais e as ruas e dizendo: Basta.

Mas aqui vai a coisa importante sobre essa questão: Enquanto as mulheres podem estar assumindo sua raiva mais agora, em grande parte elas não parecem escolher a violência para fazer isso. E é essa violência – um jeito de expressar raiva, mas não raiva em si – que está no centro de Clube da Luta. O mais engraçado é que muitos dos personagens homens do filme nem tem tanta raiva assim. Eles podem estar frustrados, entediados, inquietos ou envergonhados, mas as fontes de sua angústia não são nada perto de desigualdade de salários, violência sexual e os padrões hipócritas em geral com que as mulheres precisam lidar em suas vidas – e muitas vezes em silêncio.

Quando assisto Clube da Luta hoje, é um tipo diferente de raiva que surge em mim – não um sentimento como se algo que fosse meu por direito tivesse sido tirado de mim, como os homens do filme descreveriam, mas uma que vem de perceber que nunca tive essas coisas para começo de conversa. É uma raiva ainda mais enraivecedora porque nem sempre pode ser expressada, graças a como as mulheres são socializadas desde a infância para não expressar raiva ou ser muito emocionais. Quando assisto o Narrador arrebentando a beleza loira de Jared Leto ou os membros do Projeto Mayhem ameaçando castrar um comissário de polícia, são as palavras de Audre Lorde para mulheres enraivecidas não-brancas que me vêm na cabeça: “Tenho vivido com essa raiva, nessa raiva, abaixo da raiva, sobre a raiva, ignorando a raiva, me alimentando dessa raiva… Antes eu fazia isso em silêncio, com medo do peso dessa raiva. Meu medo de que essa raiva não me ensinava nada. Seu medo é que essa raiva não vai te ensinar nada também”.

A distinção de raiva e violência é importante. Isso me lembra que o patriarcado é uma coisa só com a violência, e que ele muitas vezes é empregado através da violência – uma mensagem que parece ainda mais relevante num momento em que movimentos pelos direitos dos homens estão ganhando impulso, atentados muitas vezes são ligados a misoginia, e mulheres de todas as indústrias continuam lutando contra a violência sexual.

Clube da Luta retrata esse relacionamento entre patriarcado e violência, mas também oferece um aviso: Olhe onde a violência te leva, homem idiota. Você achou que poderia derrubar o mundo porque mijou na sopa de alguém? Você achou que poderia impedir consumismo em massa fingindo cortar as bolas de outro homem? Violência só leva a amigos mortos enterrados no seu quintal e uma arma enfiada entre seus dentes.

Clube da Luta me mostrou que eu queria, que precisava, e devia expressar minha raiva – mas também gerou em mim um senso vívido de como não expressá-la. Mesmo sempre tendo gostado muito da trilha do Pixies no final do filme, da iluminação e o tamanho da noite cercando Paper Street, Clube da Luta sussurrava algo ainda mais importante para a eu de 16 anos: enquanto você espera por filmes que contem as histórias que você precisa e quer ver, fique com esse.

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