Em Espanha, há casais que se encontram às escondidas nos supermercados

23672578160_cde874c2a4_o

Este artigo foi publicado originalmente na VICE ES.

“Combinámos encontrar-nos na fila do peixe e olhámos um para o outro umas quantas vezes pelo reflexo no vidro dos congelados” contou-me um amigo. “Ter que fazer tudo às escondidas fez-me sentir como se estivesse outra vez na escola, mas desta vez o professor tinha uma pistola e um distintivo de segurança”, continuou. “Mas não sou o único, sei de outras pessoas que fazem isto, o supermercado é sem dúvida o melhor sítio para combinar encontrares-te com alguém de quem tens demasiadas saudades”.

Videos by VICE

Esta quarentena forçada que estamos a viver está a provocar todo o tipo de reacções: há quem pareça que desde sempre que estava à espera de uma desculpa para trabalhar de casa e jogar PlayStation, quem agradeça ao senhor por estar fechado em casa com a ex e quem, de repente, se viu obrigado a não poder ver amigos, namorados ou amantes de quem nunca tinha imaginado ter tantas saudades.

Se, no princípio, a minha reacção foi o inevitável “és idiota”, à medida que mais amigos me iam contando que praticavam isto que eu já intitulei de #covidsuperdate, fui-me enternecendo. “Afinal de contas”, pensava eu para dentro, “o nosso estado anímico e a nossa saúde mental são tão importantes para lidar com esta situação como com qualquer outra.”

Um deles, o Lucas*, contou-me que teve que ligar à namorada para poderem conversar dentro do supermercado, “porque o segurança pareceu ter reparado”. “Estivemos uns minutos à conversa, a andar a mais de um metro e meio de distância entre a secção da fruta e dos legumes, a olhar um para o outro por entre os lacticínios e a tentar fazer piadas de toda a situação ao pé do balcão do talho”, conta-me. “Foi difícil não nos deixarmos roer pela tristeza da situação que estamos a viver” concluiu, “mas encontrarmo-nos no supermercado pareceu-nos a única maneira possível de nos vermos”.

A Maria* também partilhou comigo a sua história: “Conhecemo-nos no Nepal a trabalhar num documentário há mais ou menos três semanas, acho que nos apaixonámos aí. No regresso, ele foi para casa em Madrid e eu para a minha, em Barcelona”, explicou-me. “Quando tudo começou tive medo de não o poder ver tão cedo, por isso apanhei um comboio e fui ter com ele a Madrid. Mas não vivemos juntos, por isso desde o dia em que declararam a quarentena que a única maneira de nos vermos é combinarmos ir ao supermercado juntos: ele desce com o cão e eu com o saco das compras”, continua. “O pai dele é médico, por isso estamos muito consciencializados e evitamos todo o tipo de contacto. Gostávamos de alugar uma casa para estarmos os dois, porque numa altura destas ninguém nos acolhe, mas ainda assim é complicado. Disse-lhe que se conseguir umas luvas lhe dou a mão.”

“Pode durar mais que umas semanas, até meses ou anos”, diz-me o meu amigo paranóico que eu já não consigo ouvir. Entram-me os nervos e acendo o oitavo cigarro do dia na pequena varanda de casa. Ainda são 10 da manhã. Reparo numa frase de uma das minhas músicas preferidas do David Bowie, uma na qual nunca tinha reparado antes: “I never thought I’d need so many people”.

E se, de facto, restassem apenas 5 anos à Terra? É estranho ter saudades de alguém que mal conheces, ou que não conheces de todo, que acabaste de conhecer ou com quem partilhaste quase a vida inteira.

Alguns amigos contaram-me que, no fim do encontro, ao sair do supermercado, quando chegou o momento da despedida forçada, chocaram os cotovelos, rejubilaram em se terem visto e despediram-se com meio sorriso. Outros, deixaram-se ficar em silêncio no meio de uma rua extraordinariamente mais silenciosa que eles e, outros ainda, confessaram-me que não conseguiram evitar dar um beijinho rápido, provavelmente o mais agridoce das suas vidas.

Mas temos que ser responsáveis, por isso não me interpretem mal: posso enternecer-me, mas não vos estou a animar a escaparem-se à quarentena. Pelo contrário, do meu ponto de vista, é tão irresponsável combinar encontrar-se com alguém às escondidas e dar um abraço terno ou beijo na boca como fazer sexo com alguém pela primeira vez sem preservativo. Apesar de, mais bem vistas as coisas, sendo que há por aí um vírus mortal a propagar-se a uma velocidade que não se via desde a gripe espanhola, uma melhor comparação seria fazer sexo desprotegido com todos os do grupo de amigos do teu namorado, amante ou engate. Para ser ainda mais explícito: com aquele abraço furtivo no supermercado, podias acabar a matar os avós do teu engate ou a colega de casa.

Num momento tão único e dramático como este, é fundamental manter o controlo, seguir as normas do confinamento que o governo nos impõe e tentar fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para que este episódio de Black Mirror que nos calhou viver acabe de uma vez, ainda que a muitos de nós “jovens não em risco” nos possa, às vezes, parecer excessivo. Também é preciso fazer o que nos impõem por respeito e admiração por aqueles que, todos os dias, arriscam a vida nos hospitais para que nós – os egocêntricos insaciáveis – tenhamos o luxo de considerar se nos encontramos ou não com o engate que conhecemos num Domingo frio de Janeiro, num bar ao pé de casa. Não há desculpas.

*Os nomes foram alterados.


Segue a VICE Portugal no Facebook, no Twitter e no Instagram.

Vê mais vídeos, documentários e reportagens em VICE VÍDEO.