Sim, vou ser uma pessoa desprezível e comentar os artistas, esses seres superiores ao comum dos mortais. Esses seres que, tal como Jesus transformou água em vinho, transformam matéria em arte. O conceito de arte em si já dá pano para mangas, mas a isso não me oponho. Não tenho qualquer objecção a que um candeeiro feito de tampões da Vasconcelos seja considerado arte e, se há quem avalie aquela retrete do Duchamp em milhares de euros – e se houver alguém que a queira comprar – é só mais um dia nesta vida que criámos para nós próprios.
Se a sociedade e a forma de a viver foram invenções dos humanos, então não vejo qualquer impedimento a que, dia após dia, se invente o que é arte. Eu sou, aliás, uma dessas pessoas que não percebe nada de arte, mas que a admira sem contestar. Mais, sou uma dessas pessoas que, ao saber que alguém é artista, automaticamente nasce nos meus olhos um pequeno brilho de admiração. Basta isso, basta a palavra: artista.
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Para mim – e para muitos de nós – os artistas são esses tais seres superiores. Têm um trabalho que poucos compreendem, uma maior sensibilidade, talvez uma melhor compreensão da vida, ou uma melhor forma de a questionar e representar. Como se tivessem nascido com a vocação de tornar o Mundo melhor, mais explícito, mais artístico, decifrá-lo aos nossos olhos comuns através das suas mãos criadoras de coisas. Nasceram com a missão de deixar algo para a História, de encher museus que, daqui a 100 anos, vão estar cheios de turistas chineses curiosos a quererem saber como era a vida no Ocidente antes de conquistarem definitivamente o Planeta.
Talvez seja por causa de séries como Genius sobre Picasso, ou pelos filmes de Woody Allen – como o Midnight in Paris – ,ou se pelas milhares de outras séries, filmes e livros que mostram os artistas como estes seres eruditos que nos compreendem melhor que ninguém, mas a quem não conseguimos compreender. Seja pelo que for, muitos vemo-los com uma ponta de magia, como se tivessem um binóculo para ver aquele recanto da alma, ao qual nós, contabilistas, professores, donas de casa, taxistas ou profissionais de outra qualquer profissão comum, não temos acesso.
Quando comecei a entrevistar artistas estava extasiada. Curiosa pelas suas histórias, queria conhecer melhor a sua arte. Perceber de onde vinha aquela ligação ao quase divino, a inspiração, descobrir como davam uso a essa visão do Mundo tão indecifrável, conhecer esse seu dom de observar. Em todas as entrevistas fiz as perguntas “Qual a mensagem que pretendes passar com estas obras?” e “O que te inspirou a fazê-las?”. E foi assim que, pouco a pouco, se estilhaçou na minha cabeça a crença de que eles viam algo que eu não via.
“Faço isto porque gosto”.
Eu sei, até dói. Os eruditos do nosso século, os artistas de rua, de estúdio, todo e qualquer um (menos um vá, vejam aqui – mas vejam mesmo!) a algum ponto da conversa me disseram isto. Uma até me chegou a dizer que pintava, porque os seus próprios quadros a inspiravam – eu quando preciso de inspiração agarro no meu livro de Dostoyevsky, ou nuns poemas de Pessoa… mas que fácil seria a vida se bastasse ler-me a mim própria. E, assim, fui descobrindo: estas pessoas são artistas pela mesma razão que eu sou jornalista, que tu és bombeiro, que o Manuel é padeiro e o Marcelo presidente: porque querem. E fazem o que fazem, porque gostam.
E não é que me oponha à simplicidade da coisa, porque fazer porque se gosta de fazer é capaz de ser o meu lema de vida. Mas, estamos a falar de pessoas que criam arte e, a meu ver, se é através da arte que tanto da nossa história fica para a História, devia ser feita com propósito. Representar o Mundo, quer de forma crítica quer não.
Mostrar a sociedade com todos os seus defeitos e feitios, usar esta ferramenta, quer para mudar mentalidades quer para as abrir – ou mesmo pintá-las tal e qual como são. Colar esferovite a tampões, a lâmpadas ou fotografar o pôr-do-sol só e simplesmente porque vos apetece, sem qualquer outro motivo ou inspiração, parece ser – aos meus olhos leigos e sempre tão críticos – um desperdício de arte. Vende a retrete por milhares e expõe-na em todas as galerias do Mundo, mas por favor, senhor artista, tenha uma mensagem. Tenha um propósito. Use a arte como forma de comunicação, porque é isso que ela é – ou que deveria ser.
O Mundo olha-vos com tanto apreço e admiração, porque de alguma forma todos fomos educados a olhar-vos assim. Ninguém está interessado no que o meu contabilista sabe esculpir nas aulas de cerâmica de quarta à tarde, nem ninguém quer vender as minhas fotografias do iPhone por milhares de euros, mas aquele Duchamp pega numa retrete e assina-a e, de repente, ela é uma forma de arte.
E, se assim é, então tem que haver algo que vos distinga de nós. “Faço porque gosto de trabalhar com estes materiais” não chega. Queremos mais de vocês, queremos que tenham uma missão, uma crítica social, uma história para contar – alguma coisa que valha a pena encher museus. Que valha a pena deixar como legado do nosso tempo neste Planeta.
Porque se não, então a minha recente suspeita confirma-se: afinal, vocês não são tão mais sensíveis nem estão dotados de um sentido de observação do Mundo mais apurado do que o nosso. Afinal, a maior parte de vocês não passam de uns muggles com uma boa noção de estética.
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