Este artigo foi originalmente publicado na VICE Espanha.
A primeira vez que fui ao AntiViña, em 2010, não bebi uma única gota de álcool. Ver como milhares de pessoas construíam uma comunidade apenas com lonas e som durante dias, foi-me suficiente para atingir essa sensação de irrealidade que procuramos quando bebemos copos. Tinham bancas de comida e bebida, carrinhas, cães a passear à solta, malabaristas de fogo e muitos espaços de protecção contra a chuva.
Videos by VICE
Cada colectivo de música tinha o seu próprio “cercado”, que é como se chama na região espanhola de La Mancha a qualquer extensão de terra delimitada, sirva ou não para guardar gado. E em todos eles havia enormes colunas de som que não davam tréguas durante os dias em que se celebrava o Antiviña, ou Viñatek, uma das maiores raves de Espanha. Isto até 2017, quando foi desalojada pela Polícia e pela Guardia Civil.
Vê: “‘Locked Off’: o renascimento das raves ilegais em Inglaterra“
Mas, ainda antes de a Câmara Municipal de Villarrobledo – localidade onde, todos os anos, a 1 de Maio, se realiza o Viñarock e onde nasceu e cresceu o AntiViña como evento paralelo – ter decidido armar-se em séria, conheci Edu, a que alguns se referiam como “o fotógrafo das raves”. De máquina fotográfica em riste, Edu escalava andaimes, subia para o tejadilho de carrinhas, fotografava o que se passava desde que o Sol se punha até que voltava a subir sobre a planície manchega, por entre as vinhas. Fez isto durante cinco anos, de 2012 a 2017.
O resultado do seu trabalho é o livro Anti Viña 2012-2017: una inconsciente y fatigosa saga, uma compilação de fotografias a preto e branco e a cores (“com o preto e branco falo de acções, de emoções, de situações, olhares… a parte introspectiva. Com a cor, falo de roupas, de penteados, de máscaras e demais elementos ornamentais, a parte extrovertida”, conta-me), que condensa o espírito e a essência de um dos maiores “teknivais” do país.
VICE: Olá Edu. Falemos do teu projecto. Quando é que decidiste começar a fotografar o AntiViña e porquê?
Eduardo: Tudo começou numa tarde de Setembro de 2011, quando um amigo me vendeu a muito bom preço uma série de material fotográfico, incluindo máquinas descartáveis; o seu tio tinha uma loja de fotografia que acabara de fechar e iam deitar tudo fora. Tinha começado há pouco a estudar fotografia, pelo que foi genial. As minhas irmãs mais velhas têm os seus álbuns com fotos de festas e viagens da adolescência, enquanto eu tinha apenas as minhas fotos online e frequentemente pensava nesse esquecimento das coisas quase instantâneo causado pelas redes sociais.
Por isso, comecei a usar as câmaras aos fins-de-semana e em festas, até que chegou o Viña do ano seguinte, 2012, e fui para Villarrobledo com duas máquinas na mochila. A intenção era usá-las de forma pessoal, imitar o que tinha visto em casa, nos álbuns das minhas irmãs, e sacar fotos de amigos, sem qualquer pretensão que não fosse guardá-las como recordação. Mas, os anos passaram, continuei a fazê-lo até 2017 e vi que havia ali algo, pelo que decidi assumir a coisa como o meu projecto final de curso e, ao mesmo tempo, editar eu próprio um livro.
Como explicarias a alguém que nunca esteve no AntiViña como era?
É muito complicado explicar-lo por palavras. De resto, se soubesse como fazê-lo teria escrito um livro ou um ensaio jornalístico. Mas, suponho que seja algo parecido com a sensação real de livre arbítrio. O tempo no relógio não importa, o que importa é a música e os amigos.
No total, quantos rolos usaste e quantas fotos tiraste ao longo dos anos?
Cerca de 50 rolos, que resultaram em mais ou menos 1500 negativos.
Um clássico do AntiViña é a chuva, que torna os campos manchegos em autênticos lamaçais. Nenhuma das tuas máquinas ficou sepultada na lama?
Surpreendentemente, não. Mas, uma acabou afogada em licor de cereja dentro do bolso do meu casaco. Ainda assim, sobreviveu.
Quem são as pessoas que aparecem nas tuas fotos e porque é que te interessa essa gente? O que te transmitem?
São as pessoas que ali iam. Nem mais, nem menos. Aparecem mais desconhecidos, que conhecidos meus, porque com quem não conhecia conseguia focar-me mais na foto. Suponho que o que me transmitem são realidades semelhantes à minha. A viagem é pessoal, mas só apareço em duas fotos e nem sequer dá para me ver todo. Dizem que todos os retratos são auto-retratos e pode ser que seja verdade.
O que aprendeste, tanto a nível fotográfico como humano, nesses cinco anos?
A nível fotográfico, por exemplo, tive de digitalizar duas vezes os negativos, porque desde que comecei até que comecei a fazer o livro a minha técnica evoluiu.
A nível pessoal, aprendi que calçado bom é sinónimo de saúde. Que dormir e comer é bom. Qu as causalidades existem. Que deves sempre olhar para o chão, porque podes encontrar coisas. Também é preciso dizer sempre “por favor” e “obrigado”. Se te vais “colar” a alguma coisa, fá-lo sempre com um sorriso e tenta amar o próximo. E, se vais para quatro dias, é melhor levares cinco maços de tabaco, para além de enumerar e guardar bem os rolos fotográficos usados. E aprendi também que, se fores organizado, uma garrafa de bourbon dá-te para muitas horas.
É também bom que te tornes amigo das pessoas dos colectivos de música, ter o telemóvel carregado, ou então marcar um ponto de encontro para encontrares os teus amigos que se vão perdendo. Se tens um isqueiro tens um tesouro e não te esqueças de levar uma muda de roupa na mochila. A hipotermia não é uma coisa boa, portanto o melhor é teres leggings quentes e roupa impermeável. Uma lanterna também é importante, bem como pilhas extra. Se acordas numa tenda cheia de gente que não conheces, mas eles te conhecem a ti, age com naturalidade. E se sobes a uma carrinha para tirar fotos, é melhor teres um plano seguro para depois voltares ao chão.
Explica-me porque é que “ir a uma rave é tão bom”?
Bem, quando chega a manhã e te sentas um bocadinho à sombra, com uma cerveja gelada e a música ao fundo, pensas: “Agora sim. Agora é que isto está do caraças”. É uma explicação simplista, mas não sei explicar melhor por palavras, é uma experiência única e vital.
Esse bem estar que sentes quando as ondas dos graves te atingem o peito. O ritmo acelerado que se apodera dos teus pés e mãos, as luzes coloridas que iluminam o centro do teu cérebro. As horas passam, sem dares por elas. Fechas os olhos e é como se pudesses continuar a ver a energia o momento e das pessoas. Fazes parte de algo. Ainda assim, às vezes é complicado, porque creio que continuam a existir bastantes preconceitos em relação às raves. É algo que continua a ser mal visto em Espanha e há quem não perceba que também é cultura.
Os DJs passam horas a ensaiar as suas sessões. As pessoas que fazem os visuais ao vivo, ou as que desenham os cartazes e merchandising também se empenham nas suas tarefas. Os que fazem malabarismos, ou os que criam painéis decorativos também contribuem com alguma coisa. E, pacientemente a observá-los, estamos nós, os fotógrafos. Para deixar um testemunho de que, por umas horas, todas estas vidas se cruzaram e foram livres”.
Segue a Ana Iris Simón en @anairissimon.
Segue a VICE Portugal no Facebook, no Twitter e no Instagram.
Vê mais vídeos, documentários e reportagens em VICE VÍDEO.