Foto por Nemanja Glumac via Stocksy.
Como muitas sobreviventes de violência sexual vão te dizer, uma das coisas mais difíceis sobre denunciar é o medo de ninguém acreditar em você. Para cada acusado inocentado, para cada caráter da vítima aniquilado por um advogado de defesa, tem uma mulher pensando: “Se eles não acreditaram nela, por que acreditariam em mim?”
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Semana passada, um tribunal espanhol absolveu um homem de 21 anos acusado de estuprar a ex-namorada de 17, com base no fato de que o casal fazia sexo violento consensual antes. Segundo as notícias locais, o casal praticava “relações sexuais que envolviam insultos, abuso, força e algum nível de violência aceito pelos dois lados” durante o relacionamento.
Depois que eles terminaram, o acusado convidou a mulher para sua casa, onde, segundo os documentos do caso, “a segurou pelos pulsos, abriu suas pernas e a penetrou”. Na decisão, o juiz disse: “Não é estupro porque essas práticas sexuais eram comuns entre o casal, e ele pensou que naquele momento não era diferente”.
As implicações desse caso são perturbadoras, principalmente para milhões de mulheres que praticam BDSM no mundo. É difícil apontar números exatos, mas uma estimativa dos anos 90 do Kinsey Institute Report dizia que de cinco a dez por cento das pessoas nos EUA estavam envolvidas em BDSM. Enquanto isso, a cena de BDSM já atraiu suas próprias alegações de abuso sexual. Sendo assim, uma mulher que gosta de sexo não convencional tem menos chances de ser levada a sério se for estuprada.
Perguntei à professora Clare McGlynn, especialista em leis de estupro da Universidade de Durham, sobre o caso. É difícil pensar em paralelos legais dadas as diferenças na legislação de cada país, ela disse, mas o fato de que o histórico sexual da mulher foi levado em conta nesse caso é “muito problemático”, já que o “consentimento deve ser dado para cada encontro sexual e nunca suposto por atividades anteriores”.

Foto por Raymond Forbes via Stocksy.
No Reino Unido, o histórico sexual não é admissível no tribunal, apesar de alguns juízes permitirem que ele seja introduzido como prova. Nos EUA, as leis variam de estado para estado. Em muitos países como a Espanha, experiência sexual anterior pode ser admitida como evidência num caso de estupro.
“Você não deveria poder dizer ‘Bom, isso é o que costumávamos fazer, então achei que estava tudo bem’”, explicou McGlynn. No entanto, o sistema de justiça criminal depende de como os jurados — e a sociedade em geral — define consentimento. “Muitos jurados têm a visão de que é razoável para o homem, nesse caso, pensar que era consensual porque tinha sido consensual antes. Então precisamos dialogar sobre o que atos de consentimento significam em todas as práticas, não apenas em atividades BDSM.”
Perguntei se mulheres envolvidas com BDSM enfrentam uma batalha contra a corrente quando se trata de acusações de estupro. “Casos de estupro em que ambas as partes têm um histórico sexual têm menos chances de resultar em condenações, porque é mais difícil para os promotores provar a falta de consentimento. Isso se aplica a todos os casos, não apenas aqueles onde BDSM está envolvido.”
No Brasil, a história se repete. Embora ainda não existir dados específicos sobre as práticas de BDSM, é comum a vida privada da vítima ser esmiuçada durante a apuração de crimes sexuais. “Quando a gente pensa num processo penal para condenar a pessoa acusada de estupro, precisa, primeiro, da prova de que houve o sexo e, segundo de que a vítima não quis praticar o ato. Essa questão da vítima querer ou não é que a gente abre uma chave para uma série de interpretações que, historicamente, representam o quanto que a palavra da mulher é colocada na balança a partir do comportamento sexual que ela tem na vida privada”, diz Maíra Cardoso Zapater, professora, pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena da FGV Direito-SP e coordenadora adjunta do Núcleo de Pesquisas do IBCCRIM.
Recentemente, com o pavoroso caso do estupro coletivo no Rio de Janeiro, foi diversas vezes questionado se a vítima já praticava sexo grupal antes do estupro e se também usava drogas para abafar as acusações de violência sexual. Em 2012, o Superior Tribunal de Justiça absolveu um homem acusado de estuprar três crianças de 12 anos porque elas “já se dedicavam à prática de atividades sexuais desde longa data”. Além disso, diversos depoimentos de mulheres que sofreram abusos relatam que não procuraram a polícia por vergonha e, muitas vezes, pelo próprio descaso das autoridades policiais.
“A prática do sexo dito violento, prática de sadomasoquismo e as práticas consideradas, numa moral tradicional, inaceitáveis, vão muitas vezes ser questionadas por juízes para ser usadas contra a vítima”, alerta Zapater. “A gente tem que pensar em mudar a mentalidade dos julgadores, do Ministério Público e de Defensores para tratar desse tipo de caso.”
A lei penal brasileira confere, na teoria, um suporte às mulheres que foram estupradas em um relacionamento. Segundo Ana Rita de Souza Prata, defensora pública e coordenadora auxiliar do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher, “em uma relação em que há entre as partes o consenso de um sexo que tenha violência, a partir do momento que uma das pessoas retira esse consentimento, qualquer atitude do parceiro depois disso passa a ser um crime em relação da liberdade sexual”. O estupro, segundo ela, não é só um crime onde a mulher é pega em uma rua deserta por um desconhecido, mas também quando no curso de uma relação sexual há uma negativa por parte da vítima e o parceiro ignora a falta de consentimento.
A prática, porém, acaba sendo deturbada pela sociedade e também pelas autoridades.”A palavra da mulher é relativizada de acordo com sua experiência sexual e da sua moral, de acordo com quem a julga.(…) O que não é feito, por exemplo, quando se fala num crime de patrimônio. Ninguém investiga se o patrimônio da vítima é fruto de roubo, mas isso acontece muito nos casos de crimes sexuais com relação à mulher”, complementa a defensora.
Para a porta-voz do End Violence Against Women, Sarah Green, o caso espanhol é outro exemplo deprimente de como a justiça não acredita nas vítimas de estupro a não ser que elas se encaixem num molde específico. “O sistema de justiça criminal, e a sociedade em geral, tende a não acreditar em mulheres que não são as vítimas clássicas. Isso pode se aplicar a como elas se comportam, vestem, se consumiram álcool ou drogas, se são trabalhadoras sexuais ou se têm interesses sexuais específicos — como a mulher desse caso.”
Na visão dela, é impossível separar atitudes sociais vigentes da justiça criminal. “Essa questão é mais ampla que apenas estupro. É sobre mulheres e meninas: o que elas devem fazer, como devem se comportar. Enquanto isso, há uma falha histórica em examinar a conduta dos próprios agressores.”
Green argumentou que precisamos inverter o paradigma tradicional. “Em vez de esperar as chamadas vítimas ‘perfeitas’, vamos escrutinar os perpetradores. Muitas vezes esses homens são invisíveis. Não olhamos para eles; não fazemos perguntas sobre eles. É isso que permite que eles reincidam.”
Apesar dos desafios, Green diz que estamos no meio de uma mudança social, particularmente quando se trata de consentimento. Mas a lei só pode ir até certo ponto para garantir a segurança das pessoas. “Quero falar sobre objetivos sociais mais amplos, em vez de questionar legalidade. Vamos falar sobre consentimento entusiástico [em que as mulheres] nunca sofrem pressão. Nunca são coagidas. Nunca fazem algo só para que a outra pessoa goste delas.
“Esse é o diálogo que deveríamos estar tendo, fora dos tribunais. É sobre o que acontece na sociedade entre os lençóis. Podemos aspirar algo que seja melhor para todas nós?”
Tradução: Marina Schnoor
Matéria originalmente publicada no Broadly.
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