Drogas

Eu não via meu pai viciado há anos – aí cruzei com ele na rua

Illustratie door Cathryn Virginia​

Duas semanas atrás, voltei para minha cidade natal, Sault Ste. Marie no norte de Ontário, Canadá. Eu estava lá por uma semana para dois casamentos de amigos de infância. Entre as festas, passei meu tempo vagando pela cidade siderúrgica em recuperação, mergulhado em nostalgia e melancolia estilo The National.

Durante um desses passeios, eu estava fantasiando sobre encontrar meu pai, que ainda mora na cidade. Eu não o via há três anos. Ele tem problemas com cocaína. Eu estava imaginando como seria cruzar com ele, quando, de repente, virei uma esquina e lá estava ele. Meu pai. Parado lá em toda sua glória sorumbática, fumando um cigarro amassado. Ele parecia ansioso, como se estivesse prestes a dizer para alguém que não tinha o dinheiro que devia.

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“Caralho. Olha esse cara”, chamei o nome dele, disse alguns palavrões para conter um súbito ataque de nervos. Ele olhou pra mim confuso, como se não tivesse certeza que eu estava falando com ele.

“Sou eu, cara.”

Ele respondeu: “Olha, amigo, não te conheço”.

“Pai, sou eu… Jordan.”

Encontrei meu pai pela primeira vez em três anos, e ele não me reconheceu.

Nos últimos três anos, meu pai existiu mais como um rumor. Sempre que eu visitava minha cidade natal, amigos me contavam que tinham visto ele, vagando pelas margens de Sault Ste. Marie como um tipo de lenda urbana.

Essas histórias desencadeavam uma enxurrada de culpa, arrependimento e alívio em mim. A razão oficial que eu me dava para não ver meu pai era que ele era impossível de encontrar. Era uma mentira. A razão verdadeira era que eu não queria. Dói muito. A dor de ver meu pai continuamente erodindo numa figura triste – com dentes faltando, olhos vermelhos, usando roupas bagunçadas e sempre sujas – era demais.

Eu o amava, apesar de tudo. Passei a infância e adolescência me sentindo desapontado e tentando navegar a distância entre quando ele era um “bom” pai que eu idolatrava, e quando ele passava dias dormindo no sofá. Esses sentimentos de desamparo e perda eram sempre combinados com frustração. Como um bom filho de um viciado, treinado na arte impecável de fingir que tudo está bem mesmo quando claramente não está, eu ficava puto comigo mesmo quando o via, por não conseguir apontar que o elefante na sala estava pisoteando os aldeões até a morte.

Celebrating my birthday. Photo courtesy of Jordan Foisy
Comemorando meu aniversário. Foto cortesia de Jordan Foisy.

Eu não queria falar com ele por causa do quanto eu queria falar com ele, quanto eu desejava algum tipo de catarse, alguma resposta, alguma resolução. Uma vida inteira de filmes me deixou com essas fantasias da Grande Conversa: Se tivesse coragem suficiente, eu poderia abordar meu pai de um jeito que pudesse salvá-lo, e o salvando, salvar a mim mesmo. A conversa terminaria com nós dois chorando, abraçados; ele prometendo ficar sóbrio e se desculpando por todos seus erros; e eu, nascido de novo, cheio de confiança, serenidade e um novo heroísmo atlético inexplicável.

Nos últimos três anos, continuei nesse limbo: querendo algum tipo de confrontação e resolução, mas paralisado pelo medo e os padrões intratáveis do meu passado. Aí, do nada, lá estava ele.

Ele disse que estava esperando alguém pegá-lo para um trabalho. Eram 17h30, mas essa era uma das observações que aprendi a ignorar. Ele fez algumas perguntas sobre o que eu andava fazendo, perguntou sobre os meus irmãos. Foi legal. Fizemos planos de almoçar no dia seguinte. Um velho esquisito desceu o beco numa bicicleta. Meu pai disse que tinha que falar com o homem sobre ferramentas para o trabalho. Não acredito que ele estava esperando por um trabalho.

No dia seguinte eu estava nervoso. Será que ele ia aparecer? Eu queria mesmo que ele aparecesse? Ele disse que ia chegar perto da hora do almoço. Quando perguntei que horas, ele respondeu, “Não sei… na hora do almoço”. Então fiquei preso na casa da minha mãe, esperando para descobrir que horas meu pai achava que era a hora do almoço, como se estivesse esperando por um cara da TV a cabo que consertava infâncias.

Ouvi uma batida na porta às 12h30. O cão dinamarquês da minha mãe começou a latir loucamente. Meu pai colocou a cabeça pela porta entreaberta mas disse que ia esperar lá fora, que tinha sido mordido por um cachorro antes e que esse cachorro o deixava nervoso.

Eu não sabia que ele tinha sido mordido. Seria a primeira das muitas histórias que trocamos naquela tarde. Contei sobre um amigo que tinha sido preso por estar com 900 gramas de maconha, e ele disse que ficou inspirado. Uma atrás da outra, histórias românticas de uma vida devassa foram jorrando dele. Ele contou sobre dirigir pela cidade sem carteira quando era garoto porque a multa era só 25 pratas; acidentalmente passar com maconha pela fronteira e ser jogado na cadeia; andar com ladrões de carro e filhos de mafiosos; entrar em grandes brigas na praia; nadar pelado e paquerar donas de casa em canteiros de obras. Fiquei pasmo. Ele era um personagem de uma música do Bruce Springsteen.

Ficamos juntos por horas, almoçamos num pátio, e tentamos jogar sinuca, mas os bares de sinuca estavam fechados, e tivemos que nos contentar com outro pátio e outra cerveja. Foi o dia mais divertido que lembro de ter com ele. A conversa fluía, falamos sobre política, e enquanto ele reclamava amargamente sobre como a vida é difícil para os trabalhadores pobres e sobre Donald Trump ser um nazista, lembrei de onde muitas das minhas crenças vieram (e fique aliviado por ele não ter acesso ao Facebook).

Foi divertido e fácil porque ele estava finalmente sendo honesto comigo, não só sobre seu passado mas sobre seu vício. Não que tivesse como escondê-lo. Meu pai é um cidadão conhecido das entranhas da minha cidade natal. Ele tem dentes faltando e se veste como se uma caixa de doação tivesse espirrado nele. Atualmente ele mora num motel que é tipo Projeto Flórida, com menos crianças fofas e mais cadeiras de roda elétricas. Ele tinha movimentos bizarros de cheirador. Ele tinha que descontar um cheque, então paramos no banco. Ele pegou uma bala de menta de cortesia e imediatamente a cuspiu no chão. “Não gosto de comer a bala inteira de uma vez”, ele me explicou.

Nada disso me chocou ou envergonhou porque ele parecia confortável naquela vida. Ele falou abertamente sobre seu “problema com o pó”, não para se gabar ou desculpar suas ações, mas simplesmente para dizer a realidade. Depois de uma vida inteira nas sombras de seus mistérios e decepções, sempre imaginando por que ele fazia as coisas que fazia, pude ver a pessoa que passei a infância inteira perseguindo. Foi a primeira vez que não fui um refém silencioso das esperanças que eu colocava no homem, quem eu queria que ele fosse, ou as mentiras que o homem fingia ser. Era ele; estranho e triste, mas ele. Foi libertador.

Não que tenha sido indolor. Ele ficou reclamando de não sentir os dedos do pé e ter uma dor constante no estômago inchado. Quando implorei pra ele ir ao médico, ele descartou a sugestão, dizendo “Tive uma boa vida”.

Percebi que a honestidade dele vinha de uma fatalismo. Ele estava comprometido com suas drogas, e estava deixando elas o matarem. Ele não queria melhorar porque que tipo de vida estava esperando por ele do outro lado? Ele é velho pra caralho e fodeu com todos os relacionamentos da sua vida.

Temos esses grandes mitos sobre vício e sobriedade, que ficar limpo é sempre um novo começo, que é tudo que é preciso. Às vezes tudo que isso faz é te dar uma visão clara de como você fodeu com tudo e como não há mais pra onde ir. Ele não quer ver isso, e não posso culpá-lo. Eu também não ia querer.

My dad and me. Photo courtesy of Jordan Foisy
Meu pai e eu. Foto cortesia de Jordan Foisy.

Ele disse que tinha alguns arrependimentos. Ele se desculpou por não estar sempre lá pra mim e meus irmãos. Ele queria que minha mãe ainda não estivesse puta com ele. E mais que tudo, ele disse que odiava como as pessoas próximas só conseguiam ver seu vício, que isso superava tudo mais que ele fez na vida. Agora, sim, atrair pena é o superpoder de todo viciado. Mas não consegui deixar de pensar como evitei o trabalho difícil de alcançá-lo e olhar pra ele, e como justifiquei isso o isolando como um viciado, um fracassado.

Pensei sobre as pessoas com quem faço isso constantemente, aquelas por quem passo no dia a dia e esqueço enquanto vou de um pátio chique para outro pátio chique. Havia tristeza na vida do meu pai mas também comunidade, uma camaradagem que nasce quando você está no fundo do poço e esquecido por todo mundo exceto aqueles que estão lá com você.

Talvez isso seja perdão. Não é uma explosão de catarse em lágrimas ou uma confissão no leito de morte; é uma avaliação honesta sobre o que você perdeu mas também do que você tem. A vida do meu pai é trágica, mas também vi alguma beleza nela. Ele sempre viveu fora das fronteiras da sociedade respeitável, deixando os endinheirados e educados desconfortáveis como um adolescente delinquente ou um idoso mulambo. Ele fez isso vivendo segundo seu próprio código.

Enquanto estávamos juntos, o vi abrir várias portas para as pessoas; ajudamos uma mulher a descarregar fraldas de um carro numa creche; ele reclamou sobre jovens viciados que ele conhecia que nunca queriam trabalhar por seu dinheiro. Ele era engraçado, opinativo, hipócrita, charmoso, estranho e amoroso. Ele era meu pai e sou muito grato que, graças a uma reviravolta simples do destino, finalmente tive a chance de conhecê-lo.

Combinamos de almoçar de novo dois dias depois. Ele não apareceu.

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