Estrada, amor, América. A história de Misfit é a obra-prima de Tigerman
The Legendary Tigerman. Foto por Rita Lino.

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Música

Estrada, amor, América. A história de Misfit é a obra-prima de Tigerman

Um filme, um filme-concerto, um disco e agora também um remix visual. No dia em que The Legendary Tigerman edita "Misfit" em formato físico, a VICE apresenta em exclusivo "Acid Visual Album", um filme de Pedro Maia.

"A minha primeira ideia foi forçar-me a olhar para fora, uma vez que no disco anterior tinha olhado bastante para dentro. As várias viagens à América têm a ver com a minha vontade de ser inspirado por ela, pela estrada, por tudo o que fosse encontrando ao longo do caminho e que tivesse que escrever tudo de uma maneira muito instintiva, como acabei por fazer".

No final da digressão de True, de 2014, Paulo Furtado queria gravar outro disco. A vontade, no entanto, esbarrou num bloqueio criativo. "Tinha o saco completamente vazio", confessava o músico numa entrevista recente. Ainda bem. Louvado seja o Deus do Rock n' Roll! Ao forçar-se a "olhar para fora", como conta Furtado à VICE, ao abraçar a estrada sem fim, o deserto, a América profunda - e ao levar com ele o olhar experimental do realizador Pedro Maia e a demência do olhar fotográfico único de Rita Lino - The Legendary Tigerman voltou a encher o saco. Até transbordar.

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O Homem Tigre explica: "O filme [Fade into Nothing], o cine-concerto [How To Become Nothing], o visual remix [Acid Visual Album, que podes ver acima], o futuro livro, o Misfit, tudo isto fazia parte do plano que existia para se trabalhar nesta viagem entre Los Angeles e Death Valley. O saco encheu-se, como eu esperava, por toda a inspiração recebida durante essa viagem e por ter diariamente que representar este personagem do filme, MISFIT, que me permitiu de certa forma escrever com um outro olhar que não apenas o meu".

Agora que Misfit, o disco, chega às prateleiras - físicas -, agora que o "saco cheio" a transbordar é do Mundo, agora que Fade Into Nothing, road movie filmado em Super 8, já encheu ecrãs de cinema e How To Become Nothing expandiu os limites desses ecrãs e lhe acrescentou texturas, sons e novas possibilidades, agora que, com Acid Visual Album, podemos ver ainda mais uma nova perspectiva desta road trip interminável carregada de cheiro a bourbon e cigarros, manchada de sangue, pó e facas, depois da digressão (longa e internacional) que aí vem, depois de, mais uma vez, provavelmente se esgotar a si próprio até ao vazio, em que é que The Legendary Tigerman se tornará? Em Misfit? Em Paulo Furtado? Em nada?

"Na realidade, já tenho uma ideia do que será o próximo disco, é algo a que tenho vontade de voltar há algum tempo e creio que, em breve, começarei a trabalhar nele", responde Furtado. Surpreendente? Não. Nada. Nunca. Este é um homem, um artista, que com quase 30 anos de rock n' roll nas botas não pára de se reinventar. "Sinto cada vez mais que o momento que me dá mais prazer na arte é o da criação pura, aquele em que escreves um texto, compões uma canção, sentes que onde não havia nada, de repente já existe alguma coisa. Tudo o resto, confesso que não tem a intensidade desse primeiro momento", revela o músico.

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A magia das primeiras vezes. Da criação. A mesma magia que ocorre quando sobe ao palco. Mas, quando isso acontecer para tocar este disco - agora com Paulo Segadães na bateria, Filipe Rocha no baixo e o saxofone barítono de João Cabrita - Furtado conseguirá ver Misfit como apenas um conjunto de canções, ou as imagens, os filmes, as fotografias, estarão sempre lá? "O palco para mim tem a capacidade de me fazer esquecer de tudo e de me fazer entrar numa espécie de transe, em que tudo o que me importa é aquele momento, o concerto. É uma outra esfera. Mas acho que a música gravada e o filme e as fotos estarão sempre ligadas, é uma ligação demasiado forte".

É impossível não concordar. Demasiado forte. Tal como o é a América no percurso artístico de Tigerman. Sempre foi. Gravar Misfit no Rancho de La Luna, em Joshua Tree, é, aliás, tão lógico que Furtado nunca lá ter gravado é que é quase estranho. Mas desta vez a América é a América de Furtado. A América de um inadaptado. E isso faz toda a diferença.

É, também, a América dos seus companheiros de viagem. De Rita Lino e de Pedro Maia. A visão do realizador é crucial para a definição do imaginário de Misfit e este Acid Visual Album, que hoje estreamos na VICE, é a prova definitiva disso mesmo. 38 minutos e 23 segundos de total imersão na música e em que a música se funde totalmente nas imagens. Tudo o que imaginávamos ao ouvir estas canções, torna-se real. Palpável. Experimental, mas, ao mesmo tempo, moldado por uma narrativa cinemática perfeita. Uma história. De faca e alguidar. De tensão, morte, vida. De deserto e de travessia.

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Still de "Fade Into Nothing". Cortesia dos artistas

Mas, como é que esta nova incursão visual pelo universo de um momento único na existência de The Legendary Tigerman se diferencia do filme e do filme-concerto que o antecederam? como é que ganha vida prórpia, tendo, aparentemente, todos estes elementos partido do mesmo ponto?

À VICE, a partir de Berlim onde há muito montou quartel-general, Pedro Maia explica: "Todos partem do projecto How to Become Nothing, desenvolvido por mim pelo Paulo e pela Rita. Projecto para o qual o Paulo me abordou em Junho de 2015 (nessa altura ainda sem forma), para trabalharmos juntos no que poderia vir a ser o material visual do seu próximo disco (agora Misfit), que viria a ser gravado no Rancho de La Luna em Joshua Tree.

O Paulo desta vez queria fazer ao contrário, sendo as imagens a inspiração da música, inspirada também pela nossa viagem e experiências - a rodagem do filme foi em Maio 2016 e o Paulo regressou à California em Dezembro para gravar o disco - e para que a nossa colaboração pudesse trazer uma diferente visão e dimensão à sua música e processo de composição do disco".

"Desde o início que a ideia era fazer um objecto híbrido, inicialmente, ainda sem percebermos se um filme, projecções para o concerto ou uma série de videoclips, mas sabíamos desde o início que não seria apenas uma coisa. Depois, foram longas trocas de mails entre Lisboa e Berlim, com o deserto da Califórnia em mente, onde o projecto foi ganhando forma e evoluindo para este múltiplo road-movie e falso diário sobre a viagem de um homem, Misfit, que, mais do que desaparecer, procura chegar a nada", acrescenta o realizador.

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The Legendary Tigerman. Foto por Rita Lino

Maia garante que o processo de rodagem foi uma "evolução natural" e que cedo ficou claro que "seria um projecto independente, mais focado na ideia de fazer um filme", do que na componente visual para promover um futuro disco. "Logo aí pensámos que a melhor forma de apresentar o projecto seria fazer um filme-concerto pois é algo a que eu e o Paulo estamos habituados. Interessava-nos explorar mais a ideia de fazer realmente um filme ao vivo, onde tanto a montagem como a banda sonora pudessem ser feitas em tempo real, com uma a contagiar a outra, tornando cada apresentação um momento único", detalha o cineasta.

E conclui: "Durante a evolução do projecto tínhamos em mente que queríamos fazer uma versão fixa para sala de cinema e aí nasceu o Fade Into Nothing, uma longa metragem baseada no projecto sem o elemento ao vivo. O remix visual veio posteriormente, como uma forma de ligar melhor o projecto ao disco, sendo o título do disco o nome do personagem do filme".

Mas, que história quis Pedro Maia contar em Acid Visual Remix que não tivesse já contado em Fade Into Nothing? "A ideia foi desfragmentar o filme, transformá-lo noutro objecto e dar uma leitura completamente diferente ao material. Pretendi quebrar toda a estrutura narrativa do filme e fazer algo mais visual, algo mais experimental, tornando-o num objecto mais alucinado, entre a ideia de videoclip e filme experimental", revela.

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Still de "Fade Into Nothing". Cortesia dos artistas

Para criar esta espécie de universo paralelo, o realizador foi à gaveta onde tinha guardado os out-takes de que gostava, mas que não tiveram espaço na narrativa do filme original. "Decidi não fazer nenhuma adaptação da letra das música às imagens, sendo que muitas das vezes andam próximas pois grande parte do disco foi inspirado nessa rodagem, viagem e na experiência desse personagem. Tentei que este remix tivesse uma não-narrativa e que quem veja as diferentes variações do projecto, perceba que vêm do mesmo material, mas que são objectos que funcionam por si, que contam e têm fins muito diferentes", explica à VICE.

Tudo isto não poderia ser menos que uma experiência incrível e intensa. O sonho molhado de qualquer artista (não é preciso ser-se artista para ter este sonho molhado, mas adiante, para o bem desta narrativa) alimentado a Americana desde pequenino, a blues, country, rock, soul, funk, motéis de beira de estrada, horizontes infinitos, índios e cowboys, cactos, shots ao balcão, LSD e peyote. E, se Paulo Furtado fez nascer The Legendary Tigerman assente nesse sonho molhado, Pedro Maia também se quis deixar embrenhar nele.

"Fazer um filme/projecto num sítio onde nunca tínhamos estado, foi algo difícil pois, por um lado, a imaginária que conhecia daquele local - do deserto da Califórnia - era, essencialmente, pelo cinema europeu, por outro quando lá chegámos tudo parecia motivo de interesse e era fácil de ficarmos espantados com tudo. A América é um sítio muito especial, seja pelas enormes paisagens sem fim, pela decadência de alguns sítios, ou por parecer que estamos sempre dentro de um filme. Programámos então uma viagem pelo deserto que durasse 10 dias, que começava em Los Angeles, seguisse por Joshua Tree e Death Valley, com paragens em cidade pequenas no meio do deserto, acabando em Nevada/Las Vegas", conta Maia.

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The Legendary Tiger Man. Foto por Rita Lino

E o realizador revela: "Tínhamos uma espécie de guião escrito previamente e tínhamos feito um plano de rodagem que passasse por todos esses sítios onde atribuímos a cada sítio as cenas previamente pensadas. Mas, desde o início deixámos muito espaço para o improviso pois sabíamos que, chegando lá, muitas ideias iriam mudar. E assim foi. Sabíamos sempre onde iríamos a seguir, mas fomos improvisando sobre as ideias e o que queríamos filmar. Todos os dias começavam iguais, com o Paulo a enviar uma gravação áudio do diário que escrevia sobre a experiência do dia anterior e sobre as expectativas para o dia. Todos os dias começava a filmar o Paulo (que é também o personagem do filme) no quarto do motel e todas as noites acabava com ele noutro quarto de motel".

Improviso e contigências. A essência da experimentação, ainda mais quando, por questões orçamentais, Maia estava limitado a 120 minutos de filme. "Um outro factor que foi importante para mim desde o início era que iríamos filmar todo o projecto em Super 8. Estávamos limitados a 120 minutos de filme e sabíamos que não poderíamos visionar absolutamente nada do que fôssemos filmando até o material chegar do laboratório, semanas depois da rodagem. Tanto eu como o Paulo trabalhamos frequentemente nesse formato e, por isso, sabíamos o que esperar, mas, claro, há sempre um factor de surpresa e um nervoso miudinho até vermos o material", conta.

Agora que tudo é já uma realidade, física, concreta, com vidas próprias e à disposição do consumidor final, Furtado conclui: "Misfit soa a estrada, a amor e a facas, a sonhos perdidos e aventura, a desejo e a alegria reencontrados. Foi um longo processo e espero que se apaixonem por ele tanto como eu. Fiz o meu melhor e creio que valeu a pena".

"Misfit", é editado hoje, 19 de Janeiro, pela Sony Music. A 26, The Legendary Tigerman arranca em digressão por França. Vê aqui todas as datas.


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