Masculinidade e saúde mental na Ruanda pós-genocídio
Todas as fotos por Alice McCool.

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Saúde

Masculinidade e saúde mental na Ruanda pós-genocídio

A maioria dos perpetradores do genocídio de 1994 eram homens. Agora, depois de cumprirem suas penas, eles querem curar a si mesmos e suas comunidades, ainda que a masculinidade seja uma barreira.
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ilustração por Charity Atukunda
MS
Traduzido por Marina Schnoor

Matéria originalmente publicada na VICE Reino Unido.

Na Inglaterra, um grupo de homens capaz de discutir abertamente seus problemas e sentimentos seria uma cena incomum. Seria mais incomum ainda se esses homens tivessem cumprido pena e quase impossível de imaginar se eles fossem perpetradores de mortes horríveis.

Mas não estou no Reino Unido, estou em Ruanda, na África, sentada com um grupo de homens sorridentes de fala mansa. que cumpriram pena por crimes brutais cometidos durante o genocídio de 1994 contra os tútsis. Segundo números do governo, da população de 7,3 milhões do país, mais de 1 milhão de pessoas foram mortas na violência étnica que durou apenas 100 dias.

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“Minha nora deixou meus netos na minha casa no final de semana passado porque ela e meu filho estão tendo problemas conjugais. Mas sou muito velho para cuidar deles”, diz um homem de 70 e poucos anos no grupo de 20 pessoas. Eles estão sentados num círculo de bancos numa tarde ensolarada de outubro em Juru, uma área rural da Província Oriental de Ruanda.

“Minha esposa ficou doente esta semana, fiquei muito preocupado”, diz outro, com os olhos arregalados. Quando uma pessoa fala, todos ficam em silêncio — parece até que as vacas no pasto ao lado estão ouvindo. O grupo discute todo tipo de problema, oferecendo simpatia e trocando conselhos sobre o que fazer em cenários similares. Os homens concordam em atualizar os outros sobre sua situação na semana seguinte.

Eles têm um provérbio em Kinyarwanda: “Amarira y’umugabo atemba ajya mu nda” — que pode ser traduzido como “as lágrimas dos homens caem dentro da barriga”. Em outras palavras, homens choram para dentro. Ilustração por Charity Atukunda.

Esses homens são “formados” em socioterapia baseada na comunidade. Implementado em 2005, o programa agora opera em oito distritos de Ruanda e visa melhorar “o bem-estar psicossocial, fortalecer reconciliações interpessoais e coesão social”. O curso — liderado por dois socioterapeutas locais — dura 15 semanas e, segundo a organização, mais 70% dos grupos continuam a se encontrar depois por vontade própria.

É esse o caso com o grupo de perpetradores de Juru. Além de se encontrar semanalmente para falar sobre seus problemas pessoais, eles começaram um grupo para economizar dinheiro. Junto com outro grupo formado por sobreviventes do genocídio, eles conseguiram poupar dinheiro suficiente para comprar uma cabra para cada membro.

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Um dos principais objetivos das sessões é reconstruir a confiança dentro das comunidades ao aceitar o trauma coletivo provocado pelo genocídio, um evento onde pessoas torturaram, estupraram e assassinaram os próprios vizinhos. A escala da violência significa que basicamente todo ruandês foi afetado, direta ou indiretamente. Nesse contexto, psicoterapia convencional fora da comunidade nem sempre funciona: Indivíduos com depressão e transtorno de stress pós-traumático voltam para casa sem ter abordado seus problemas sociais complexos. Pesquisas em outros países em que pessoas se recuperam do genocídio descobriram que formas locais de superar o trauma são altamente importantes. No Camboja, por exemplo, as pessoas usam elementos do budismo para atingir atenção plena, particularmente através de meditação.

Resolver questões como uma comunidade é algo enraizado na história de Ruanda. Gacaca — que significa “uma cama de grama verde macia”, onde uma comunidade e seus líderes se reúnem para discutir e resolver conflitos — é um sistema de justiça tradicional que prevalecia durante o período pré-colonial. Depois do genocídio, o Gacaca foi adaptado para ajudar a trazer os muitos perpetradores à justiça; os defensores argumentando que passar 100 mil pessoas pelo sistema de justiça formal seria contraprodutivo. Eles estavam certos. No começo do ano, o Tribunal do Khmer Vermelho apoiado pela ONU, criado para trazer a justiça aos perpetradores do genocídio cambojano, foi questionado: nas últimas três décadas foram gastos US$300 mil e apenas três pessoas foram condenadas.

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Mas o Gacaca é algo único. Diferente da justiça estilo Nuremberg usada em outros casos de genocídio, que foca em perseguir apenas os instigadores de alto escalão, as comunidades participam ativamente do processo de justiça e reconciliação. Criticado por alguns por supostamente violar direitos humanos, e por outros por ser muito indulgente com aqueles que cometeram os assassinatos, o Gacaca também procura trazer justiça transitória. Ele se foca em reconstruir comunidades fragmentadas lidando com o crime e a punição num nível local. Mas mesmo parecendo pouco convencional para os olhos ocidentais, o Gacaca foi o primeiro a trazer justiça, e até certa extensão, coesão social — mas não abordava problemas mentais diretamente.

O sobrevivente do genocídio Sebastien, 43 anos, perdeu o pai, a irmã e o irmão em 1994. Sentado no salão de uma igreja em Bugesera, também na Província Oriental, ele tira um tempo de seu grupo de socioterapia para conversar cara a cara comigo. “Eu achava que todo mundo que eu encontrava não conseguia me entender ou ouvir. Também me sentia paranoico e suspeitava de que todo mundo podia fazer algo ruim comigo”, ele diz. Ele explica que, como muitos outros, antes de começar a socioterapia, passou 20 anos sem compartilhar seu luto com ninguém. “Minha tristeza não me permitia chorar. Meus olhos às vezes continham lágrimas, mas elas não saíam.” Depois ele faz referência ao provérbio de Kinyarwanda — “Amarira y’umugabo atemba ajya mu nda” — que pode ser traduzido como “as lágrimas dos homens caem dentro da barriga”. Em outras palavras, homens choram para dentro.

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O ditado dá uma indicação do que é esperado do homem ruandês tradicional. Parecido com o esteriótipo de masculinidade no mundo ocidental, em Ruanda, é esperado que os homens sejam fortes. Os homens devem ser o chefe da casa, que protegem e provêm, nunca mostrando sinais de fraqueza. Sebastien descreve o homem como um “defensor” da família, mas também reconhece os problemas que vêm com isso: “Durante o genocídio, os homens queriam mostrar que eram poderosos, presentes em todo lugar — o primeiro a receber informação, o primeiro a agir. Então os defensores se encontraram em situações onde se tornavam violentos”.

Mas o número de homens envolvidos no genocídio como perpetradores e vítimas alterou significativamente as políticas de gênero em Ruanda. Enquanto esteriótipos sexistas ainda existem, mulheres cujos maridos morreram ou foram presos em 1994 começaram a tomar os papéis tradicionalmente “masculinos”. Empoderamento feminino se tornou uma marca da política do presidente Paul Kagame, uma estratégia para desenvolver a nação pós-genocídio. Entre outras coisas, hoje as mulheres têm direitos iguais à terra e dominam algumas das posições de maior poder da sociedade ruandesa: o país africano tem a maior porcentagem de parlamentares mulheres do mundo.

Anastase, 73 anos.

Para muitos homens, esse foi um remédio amargo de engolir. “Algumas mulheres sentem que igualdade de gênero é a superioridade feminina em abusar de seu poder… antes você podia dizer a uma mulher o que fazer e a família obedecia, agora você não pode fazer isso porque causa conflito”, argumenta Anastase, 73 anos, parte do mesmo grupo de socioterapia que Sebastien. Anastase passou oito anos na prisão por crimes no genocídio, de que depois ele foi inocentado pelo sistema Gacaca. Como muitos outros voltando da prisão, ele descobriu que a esposa tinha seguido com a vida — e, no caso dele, gastado o dinheiro que ele deixou com ela. “Eu estava cheio de raiva quando saí, da pessoa que me colocou na prisão e da minha esposa. Teve um ponto em que eu quis bater nela.”

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Sobreviventes e perpetradores sofrem com problemas de saúde mental, ainda assim, muitos continuam confinados na masculinidade tóxica — incapazes de expressar emoções com medo de parecerem fracos, às vezes recorrendo à violência contra as mulheres recentemente empoderadas em suas vidas. O genocídio deixou muitos homens se sentido castrados: dos sobreviventes que sentem vergonha de não ter conseguido proteger suas famílias, aos perpetradores que voltaram para casa e encontraram as esposas autossuficientes com empregos e, às vezes, novos parceiros e filhos.

Mas enquanto Anastase é parte de uma geração que talvez não esteja tão pronta para entender os benefícios da igualdade de gênero, ele diz que a socioterapia o ajudou a se abrir, ouvir mais os outros e confiar nas pessoas de novo. “Não tenho um problema agora”, ele diz, falando sobre a situação com a ex-esposa. Ele é um dos vários homens que entrevistei que fez referência a um jogo que eles fazem nos primeiros estágios do programa de socioterapia. No jogo, uma pessoa cobre os olhos enquanto outra a guia de A a B. “Quando você abre os olhos, você vê alguém de quem não era amigo, ou que até era seu inimigo, mas no final, essa é a pessoa que te ajudou”, lembra Anastase. Isso pode não parecer particularmente revolucionário, mas em comunidades como a de Anastase, onde a confiança tinha sido quase completamente minada, é um grande passo.

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Em alguns casos, as sessões de socioterapia juntaram perpetradores e familiares das vítimas. Nas remotas colinas de Muhanga, visitei Vincent, de 49 anos. Seus filhos estão brincando fora de casa. Na parede há uma imagem de Jesus e um crucifixo pendurados — ao lado, uma montagem de fotos mostra imagens felizes do casamento de Vincent e de aniversários dos filhos.

“Foi a primeira vez que Dative veio até a minha casa. Fiquei com medo. Por que ela estava aqui? Eles iam me prender de novo?”, lembra Vincent, que passou 11 anos na prisão por em enforcar duas pessoas no genocídio. Essas pessoas eram parentes da sobrevivente Dative, de 52 anos, que perdeu seis familiares em 1994, incluindo o pai e três irmãos.

Mas Dative não tinha vindo para levar Vincent de volta à prisão. Depois de passar por socioterapia também, Dative começou a trabalhar como socioterapeuta comunitária — e decidiu abordar Vincent e perguntar se ele gostaria de se juntar ao grupo dela. “Eu tinha ouvido que ele era uma das pessoas que viram me caçar, e mesmo que a gangue dele não tenha me encontrado, eles mataram dois membros da minha família”, explica Dative, agora sentada na sala da casa de Vincent. Quando ele reentrou na comunidade depois da prisão, notou que ele a evitava e parecia assustado sempre que eles cruzavam caminho.

Vincent concordou em se juntar às sessões mas continuou fechado no primeiro mês de socioterapia. “Eu ainda pensava que as pessoas estavam me espionando e tentando coletar informação, então decidi ficar em silêncio”, explica. Lentamente, porém, ele começou a compartilhar com o grupo, e acabou conseguiu falar diretamente com Dative. “Quando Dative estava falando sobre o que aconteceu com ela, eu tinha uma sensação dentro de mim que estava prestes a chorar — como se eu fosse explodir. Fiquei pensando por que tinha participado desse sofrimento”, diz Vincent, que também descreve compartilhar seus sentimentos com Dative como um “alívio”.

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A ideia de compartilhar e ouvir é central na socioterapia, que se reflete na frase que os ruandeses usam para isso: mvura nkuvure, significando “você me cura, eu te curo”. Compreensivelmente, Vincent e Dative ainda não se veem como amigos — mas dizem que conseguem se cumprimentar sem medo, e, incrivelmente, comparecer a festas de família um do outro.

Pesquisa e compreensão de saúde mental ainda estão nos primeiros estágios no mundo todo, e isso é particularmente verdade em países em desenvolvimento. Mas enquanto os estigmas permanecem, a devastação do genocídio obrigou esses ruandeses a confrontar sua saúde mental, não só para seu próprio bem-estar, mas como um meio prático de trazer paz e coesão para seu cotidiano.

Para alguns homens, o processo resultou em se afastar da masculinidade tóxica, para benefício próprio e das mulheres em sua vida. De volta ao grupo de perpetradores de Juru, um homem conta aos colegas que sua esposa, vendo a grande mudança nele desde que começou a socioterapia, quer participar do grupo também. Depois, Jean, de 66 anos, fala sobre a mudança que a socioterapia causou em seu casamento: “Eu brigava muito com a minha esposa, mas aprendi a deixar para lá e controlar minha raiva. Mesmo que eu tenha feito coisas ruins, minha esposa me visitou na prisão por cinco anos e me recebeu em casa quando voltei. Com isso em mente, como posso ficar bravo com ela por coisas pequenas?”

Ainda assim, apesar de sua reconciliação com Dative, Vincent ainda parece um pouco fechado. Enquanto, no papel, as mulheres ruandesas avançaram na luta pelo empoderamento feminino, homens como Vincent ficaram com ideias desatualizadas sobre o que significa “ser homem”. Quando falamos sobre sua saúde mental, uma das principais coisas que Vincent menciona é sua preocupação na prisão de que nunca teria uma esposa e uma família — e o fato de que seus filhos agora são pequenos e ele está beirando os 50. Em Ruanda, parte de ser um ubugabo — o esteriótipo do “grande homem” — é ter uma esposa e vários filhos. O atraso para isso acontecer na vida de Vincent, e o fato de que ele tem um irmão mais novo com filhos mais velhos que os dele, parece ser uma grande luta interna para ele como homem: “Isso me deixa tão infeliz. Mas não posso chorar até mostrar minhas lágrimas. Um homem precisa resistir a mostrar essas lágrimas”.

Es s a matéria é parte de Big Men, um projeto do Centro Europeu de Jornalismo que conta histórias de homens, masculinidade e igualdade de gênero na África Oriental.

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