Opinião

Novo terror de Jordan Peele escancara defeitos do próprio filme, e da sociedade

"Nós", que chegou aos cinemas, atira pra todo lado e atinge só uma coisa ou outra
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Foto: Divulgação.

Contém revelações sobre o enredo.

O novo terror de Jordan Peele, Nós, pode decepcionar um bocado. Não porque seja um filme difícil, um tédio, uma história ruim. Nada disso. Mas é preciso entrar no clima. Se você está esperando uma apoteótica crítica social, da maquinaria racial norte-americana, ou a consolidação de um diretor que tinha (e tem na verdade) tudo para ser o nosso grande mestre do gênero hoje, bom, não será desta vez. Um passo atrás, contudo: o filme é ótimo, encha a cara de pipoca, um litrão de Coca, e não tire os olhos da tela. Só não espere uma obra-prima, como ocorreu com Corra!

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Temos todos uma relação com uma história que nos é contada, que atinge níveis conscientes e subconscientes. Entram em jogo aí nossas referências anteriores, nosso gosto pessoal, moldado socialmente em tanta coisa, nossa capacidade de empatia com a mentira, por mais que ela se sustente em poucos elementos, como é o caso de Nós. Já diria aquele personagem italiano ao fazer sumir uma enorme girafa em questão de segundos: é só um truque.

O que pega em Nós é que esse truque, ferramenta que determina se o artista é bom naquilo que faz ou não, desvia tanto o olhar do espectador, que nos perdemos no banho de sangue que jorra tela adentro/afora. O mágico, figura maior do ilusionismo e da suspensão da realidade, dirige o nosso olhar ao seu rosto, aos seus olhos, nunca às suas mãos, estas que estão manipulando todo o nosso mundinho real do avesso – e não não podemos sabê-lo.

É preciso surpreender a audiência, todo mágico sabe disso, e essa regra capital se aplica a toda forma de arte, da literatura, de letrinhas espalhadas por um trilhão de páginas, à música, ao cinema etc. Jordan Peele, porém, leva nosso olhar a tantas direções que o efeito-surpresa se perde, pois estamos olhando pro céu, pra longa fila de seres replicados espalhados por Santa Cruz, Califórnia, pro close nas tesouras, pra família branca babaca, pros coelhos espalhados por um laboratório subterrâneo, em um jogo de espelhos que nos deixa mais perdidos do que entendendo alguma coisa. E não, aqui não cabe o jogralzinho literário, da crítica especializada: “a obra nos deixa perdidos, sem chão, nos destroça” (frase fácil encontrada a cada edição de revista literária e acadêmica que quer ser maioral). Aqui, ficamos perdidos porque a coisa não tá completamente amarrada – e podia estar, não tem por que não amarrar aquelas pontas soltas.

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Nós, concedo, é ótimo, em sua execução, em seus momentos de tensão, em sua história que parece simular um George Romero, um John Carpenter. E não é um filme que está preso à sua edição, em uma sequência de bons momentos. A coisa toda é fluida, e funciona, de verdade. O que pode te fazer torcer o nariz é essa possível tentativa de abrir o arco interpretativo até o ponto em que ele se arrebenta e a gente tem que lançar as flechas com a mão mesmo: isso nunca mata ninguém, ou, em outras palavras, isso nunca não dá uma trilha de sentido muito consistente. Porque não fixa, não crava no peito. A flecha só vai se fixar e matar nosso inimigo com um arco poderoso, ainda que esse adversário seja nós mesmos, em uma réplica meio sci-fi, meio gamificada, meio histeria biogenética. Isso porque nem estou comentando do psicologismo manco, de que nós somos nossa maior ameaça, em uma página tão virada e revirada que já se rasgou. Prum Shyamalan (nada contra) funciona. Mas não cabe em Jordan Peele.

Lupita Nyong’o está espetacular no papel duplo que faz, assim como seus dois filhos na trama. Elisabeth Moss pouco aparece, e fica claro de que está subaproveitada. Sua maldade (seu lado evil) não convence, a caricatura derrete a maquiagem, muito diferente do lado mau de Lupita, aterrador, assustador, um mal latente, quase silencioso e muito, muito lento, o que é ótimo prum terror. Com exceção da parte em que quando a mãe boa pergunta à mãe má quem são eles e ela responder “somos americanos” (uma platitude que nada quer dizer, meio Spike Lee velho, meio Clint Eastwood velho, que atinge parte da audiência que quer ver panfletinho – Jordan Peele, você é jovem, inteligente pra cacete, não seja um velho chato e fácil), o seu personagem é cuidadosamente construído. Assim são suas falas e sua relação com a família e com seus demônios.

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Peele, para além do terror, que de fato tá provado que domina as regras do gênero, manda bem em questões que fazem falta ao cinema contemporâneo hoje, não só do terror: poucas, pouquíssimas piadas, mas que se encaixam; uma imersão em nosso mundo mais cotidiano, com nossos hábitos, nossos defeitos, nossas trilhas sonoras, em que de repente o ordinário banal cai no fantástico num piscar de olhos: basta uma família aparecer na sua rua e te observar imóvel no meio da noite. A piada, por exemplo, em que Moss pede para o app de voz ligar para a polícia – o app entende errado e começa a tocar "Fuck tha Police", do NWA, em um reverso que vai para além do clichê do alívio cômico: a cena ainda fica mais horripilante. O riso do horror.

O versículo de Jeremias, referenciados por vezes ao longo da trama, não traz muita coisa, mas pode ser desdobrado em alguma representação do mal, porque é o próprio Deus de Israel, dos hebreus, que se dirige furioso ao seu povo eleito, em um período em que Judá queima, com altares acesos a Baal, um dos deuses semíticos mais barra-pesada da Bíblia Hebraica. Vocês não vão escapar, e, sinceramente, eu estou pouco me lixando. Há um riso aqui, o riso divino do horror. Contudo, esta é só mais uma das muitas referências, caminhos, espelhos infinitos, do filme, o que gera uma profusão de sentidos que, ao fim, pode não bater bem. Peele fez um bom filme, mas deu tiro pra muito lado.

Talvez seja sobre isto (também) Nós: o riso do horror. Entre os poucos defeitinhos evolutivos ao longo de trocentas mil gerações de primatas, um deles é o de termos dificuldade em sentir empatia por aquele que não é de nossa tribo. Por isso rimos quando destruímos o outro, por isso rimos quando destruímos uma versão fake (férias em Santa Cruz, “don’t do drugs” aos filhos, uma vida de relativo conforto) do que somos de verdade: seres subterrâneos, praticamente rastejando e se comportando como dementes em salas escuras em busca de um único objetivo: vingança, sangue, dominação. Se Jordan Peele tivesse ficado somente nisso, Nós poderia entrar pra história. Mas o diretor quis mais. Então corra, vá ver Nós, mas não deixe de ver Corra!, mais importante, melhor realizado, melhor encaixado.

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