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canibalismo

Perguntamos a um especialista por que canibalismo é nojento

Bill Schutt explicou que o canibalismo é estigmatizado pela sociedade — mas que não experimentaria mesmo assim.
Francisco de Goya, Saturno devorando a su hijo (1819-1823). Via Wikimedia Commons.

Se está lendo isto, você provavelmente acha canibalismo nojento. Sabemos porque perguntamos pro pessoal depois de entrevistar um cara do Reddit que fez tacos com a carne do próprio pé amputado e serviu aos amigos. Mas o que achamos tão horrível assim na ideia de comer carne humana? Nesse caso, a coisa foi tecnicamente ética, mas os leitores ainda reagiram com horror coletivo.

Fizemos uma pesquisa no Instagram, Twitter e Snapchat: “Você experimentaria carne humana se fosse de uma fonte ética e consensual?” Em todas as três redes sociais e em mais de 500 mil respostas, a proporção foi praticamente a mesma: um quarto disse que sim, e por volta de 75% disse “mas de jeito nenhum”. (Sim: 114.625; Não: 424.761.) Se as implicações morais de ferir outro ser consciente — o principal terror em filmes clássicos de canibalismo como Silêncio dos Inocentes — não é o motivo para canibalismo ser repulsivo, então qual o problema?

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Falamos com Bill Schutt, autor de Cannibalism: A Perfectly Natural History, para explicar o que passa na cabeça das pessoas para clicar tão desesperadamente em “Não”.

VICE: Por que tantas pessoas parecem ter uma repulsa natural em comer carne humana?
Bill Schutt: Não sei se é natural. É algo profundamente enraizado na cultura Ocidental. Lemos esse memorando desde a Grécia Antiga. De Homero a Heródoto, dos romanos a Shakespeare, de Daniel Dafoe a Sigmund Freud, é uma bola de neve que continua crescendo. Estamos falando de mais de 2 mil anos. Canibalismo, para esses escritores, era o pior tabu. Acrescente aí o cristianismo e o judaísmo, onde é importante manter o corpo intacto, e você tem um reflexo à própria menção da palavra.

Historicamente, era conveniente para os ocidentais estigmatizar o canibalismo. Se você fosse Colombo e acusasse as pessoas do novo mundo de serem canibais, então você podia tratá-las como vermes. Elas não eram humanas para você. Você podia destruir essas culturas. Mas há outras culturas [como os Wari antes do século 20] que ficariam tão chocadas em saber que enterramos nossos mortos quanto ficaríamos em saber que eles comiam seus parentes.

A cultura reina, e nossa cultura dita que canibalismo é um tabu horrendo.

Como as pessoas que pensam nesse tipo de coisa lidam com as éticas de diferentes tipos de canibalismo?
Antes de escrever o livro, tive que definir o que era canibalismo. Há o canibalismo ritual, há o canibalismo medicinal, canibalismo relacionado com direitos funerários, canibalismo de terror, canibalismo de fome. E, claro, o canibalismo criminoso.

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Canibalismo não é tabu em todas as culturas. Até bem recentemente na China, canibalismo não era o tipo de tabu que temos no Ocidente. Foi por causa da influência ocidental que isso desapareceu. O mesmo aconteceu com outras culturas, especialmente culturas menores e mais isoladas da América do Sul e da África onde isso provavelmente não é mais feito, e se é feito, é feito em segredo. Porque você não quer mexer com os ocidentais. Nossa cultura é tão dominante agora que o canibalismo desapareceu de lugares onde era praticado até bem recentemente.

Pensando em canibalismo de fome, a expedição Donner, o time de rugby que caiu de avião nos Andes nos anos 1970, essas pessoas não estavam pensando em ética. E quando seu corpo chega ao ponto de literalmente começar a consumir a si mesmo, vale tudo. É quando você vai ter que decidir se vai sobreviver, se seus filhos vão sobreviver, ou morrer. Um jeito de sobreviver, se há corpos por perto, é consumi-los.

O que é muito diferente de alguém consumindo sua placenta depois de dar à luz, porque acha que isso restaura hormônios que a pessoa perde no parto e que isso pode curar depressão pós-parto. Essa pessoa tem uma visão muito diferente do canibalismo — se sequer considerou que isso é canibalismo.

Baseado na sua pesquisa, se você quisesse se envolver com canibalismo ético e legal — qual seria a parte do corpo mais gostosa?
Dependendo do que você comer, o gosto seria diferente, e você teria que preparar o corte de maneira diferente. Da mesma maneira que você consegue bifes de uma vaca, você consegue os mesmos cortes dos tecidos musculares. Pessoas interessadas em carne de órgãos — não sei se você acharia muito diferente o gosto de um fígado ou de um rim humano e fígado e rim de uma vaca ou ovelha. Tudo depende de qual parte e como ela foi preparada. Nesse sentido, não tem muita diferença realmente. Você está vendo um mamífero com diferentes tipos de tecido, e se decidir consumi-los (e não estou defendendo isso), o gosto provavelmente seria diferente.

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Comi placenta e tem gosto de carne de órgãos. Não tinha gosto de frango, nem de carne de vaca, nem de carne de porco. Porque era carne de órgão. Se eu tivesse comido uma fatia de bíceps — primeira coisa, eu não comeria porque não estou interessado — mas tudo depende do lugar de onde a parte veio. Se [o cara que fez tacos com seu pé amputado] tivesse tirado seu fígado e comido, teria um gosto muito diferente do de carne de caça que ele descreveu sentir do seu pé.

Se te convidassem pro jantarzinho com taco de pé, você teria aceitado?
Não. De jeito nenhum. Não. Não mesmo. Já fiz isso. A placenta que comi, a esposa do cara vive disso. Ela prepara placenta para clientes. Ela usa as placentas como tipo um carimbo para fazer quadros. Mas também prepara a placenta para clientes consumirem. Quando ficou sabendo do livro, ela me convidou para visitá-la e comer placenta. E eu pensei “Daqui dez anos, vou me arrepender de ter dito não”. Dez minutos depois eu já tinha comprado passagem. Foi uma aventura mesmo. Deu tudo certo, mas eu não faria de novo… Mas o gosto era bom. A chef cozinhou a placenta estilo ossobuco. Limpei meu prato. Mas não vejo a necessidade de fazer isso de novo.

Quais os perigos de comer carne humana?
Há a possibilidade do tecido estar contaminado. Não quero assustar aquele cara do pé, mas há doenças que podem ser transmitidas da carne humana. Há grupos culturais em lugares como Papua-Nova Guiné que quase foram extintos pelo hábito de consumir seus mortos. Um grupo chamado Fore no interior da Nova Guiné estava morrendo de uma doença neurológica horrível chamada Kuru, que descobriram ser causada por comer carne humana contaminada. Não estou dizendo que o cara do pé tem isso, mas há patógenos que podem ser transmitidos consumindo essa carne.

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Provavelmente o mesmo tipo de patógenos que você pode pegar da carne de um veado que acabou de caçar. Pode ser bactéria. Pode ser E. coli. É uma decisão individual. Esse cara decidiu cozinhar seu pé e os amigos toparam comer, e eles provavelmente vão ficar bem. Mas eu não faria isso. Se você quer ver algo similar ao Kuru, procure Alzheimer e o que ele faz com o cérebro. E não tem cura. Se pegar essa doença, você morre. É uma doença degenerativa horrível que basicamente transforma seu cérebro num queijo suíço. Só de pensar nisso eu já não comeria carne humana.

O que mais ter surpreendeu na sua pesquisa sobre canibalismo?
Fiquei surpreso com como o canibalismo é predominante no reino animal por razões que não têm nada a ver com falta de comida. Fiquei chocado. Quanto a humanos, o que mais me chocou foi descobrir como o canibalismo medicinal era predominante na Europa, apesar do estigma originado na Grécia Antiga. Partes de corpo eram trituradas, amassadas e transformadas em extratos. Cozidas ou consumidas cruas por centenas de anos para curar todos os males que você possa imaginar. As pessoas tomavam sangue para curar epilepsia e consumiam gordura humana para curar problemas de estômago. Fiquei pasmo. E não encontrei relatos de pessoas ficando doentes por causa do canibalismo medicinal.

Tudo começou na Idade Média e chegou até a Renascença e a era moderna. Até o século 20, quando o Merck Index listava Mummia… na verdade uma tradução errada da palavra árabe para betume, o alcatrão que eles usavam para preparar as múmias e fazer curativos. Os europeus viram isso e interpretaram como múmia — um cara morto enrolado — então havia muita procura por múmias porque as pessoas achavam que elas tinham valor medicinal. Mas as múmias foram acabando e as pessoas começaram a produzir substitutos para imitar as condições de múmias egípcias. Eles moíam essas múmias e consumiam o pó. E isso aconteceu até bem depois da virada do século 20. Fiquei perplexo. Os últimos vestígios disso estão na ideia de que você pode ter algum benefício médico comendo sua placenta.

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Como é o canibalismo moderno?
O canibalismo ainda ocorre. É só procurar lugares onde há escassez de alimento e grandes períodos de fome generalizada. Há relatos de canibalismo em lugares como a Coreia do Norte. É só ver lugares com muitas pessoas pobres que de repente ficam sem comida. É onde você encontra canibalismo hoje.

Culturas que faziam isso no passado não fazem mais, por causa dos caras que trouxeram as bermudas e chinelos. A predominância da cultura Ocidental acabou com rituais que muitas populações indígenas consideraram sagrados por centenas de milhares de anos. É difícil encontrar pessoas que ainda fazem isso.

O canibalismo ético pode se tornar mais culturalmente aceitável algum dia?
Trabalhei anos para escrever esse livro, e não vejo o canibalismo se tornando uma coisa culturalmente aceitável, principalmente porque é um tabu muito arraigado.

Matéria originalmente publicada na VICE US.

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