Passei um dia com a taxidermista mais jovem da Espanha
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Passei um dia com a taxidermista mais jovem da Espanha

"Muitos consideram que eu desrespeito a memória dos animais ou que o que eu faço é uma nojeira."

Dá para dizer que desde a pré-história o ser humano mostra um grande interesse em conservar o corpo dos mortos de alguma forma, seja através da mumificação, embalsamento ou qualquer outra técnica de preservação.

Atualmente, a taxidermia ligada à caça na Espanha é promovida por um pequeno setor social que não se destaca por sua juventude, que se reduz mais ou menos a zonas rurais e que nada tem a ver com a filosofia de trabalho de Tamara, uma mulher de 22 anos, de Mollet del Vallés — um município perto de Barcelona —, que só trabalha com animais que morreram de forma natural ou acidental, nunca com “troféus de caça”.

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Ela é aluna do terceiro ano de Belas Artes na Universidad de Barcelona e é a taxidermista mais jovem da Espanha.

VICE: Oi, Tamara! Explica para a gente como começou o seu hobby. O que te motivou?
Tamara: Eu lembro que, quando eu tinha uns 8 anos, estava na estrada indo passar as férias na França com o meu pai e vi uma pequena raposa atropelada no acostamento. Enchi tanto o saco do meu pai para vê-la de perto, que ele parou o carro e deixou eu ir até lá.

Acabei convencendo ele a colocar a raposa no porta-malas para poder “analisá-la” depois, mas como era de se esperar o fedor não nos permitiu. Foi só mais tarde que eu descobri que era possível preservar animais, e a ideia de tentar fazê-lo me deixava simplesmente fascinada.

Atualmente, esta não é uma prática muito comum e, pelo que sei, há muito poucos artistas que poderiam ensiná-la. Onde você adquiriu os seus conhecimentos sobre a arte da taxidermia?
Uns anos atrás, eu procurei cursos sobre o assunto e não encontrei nada na Espanha, só um curso online meio vagabundo que não me convenceu muito, ainda mais se tratando de uma coisa que exige tanta prática e paciência. Acho que na Espanha só existe uma escola/oficina em Cáceres.

Continuei procurando e acabei achando um breve curso introdutório sobre mamíferos em Leeds, na Inglaterra. Decidi aproveitar e passar uns dias lá com o meu namorado, que também quis fazer o curso, e juntos nós dissecamos nossos primeiros ratos. A partir daí eu fui comprando livros e conhecendo diferentes taxidermistas do mundo todo através das redes sociais, mais especificamente do Instagram. Eles me deram conselhos e ajudaram com os meus trabalhos muito abertamente, coisa que agradeço muito.

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A taxidermia está muito ligada à prática da caça, e hoje em dia isso não faz muito sentido. Eu sei que você não concorda com essa forma de trabalhar e queria saber como você consegue os seus animais.
A real é que eu desconheço completamente a lógica de matar um animal para recriá-lo com vida, não pratico nem concordo. Sou consciente de que nos Estados Unidos, por exemplo, existem taxidermistas que trabalham assim, porque ali a caça ainda é uma prática muito comum em comparação com a Espanha, onde tanto a caça quanto a taxidermia estão ficando obsoletas.

Aos poucos as pessoas do meu entorno ficam sabendo que eu tenho uma pequena oficina onde trabalho e armazeno os corpos num congelador adequado. Então eu vou conseguindo peças graças aos avisos de conhecidos, além das que eu encontro quando passeio pelo bosque ou pela beira das estradas rurais.

Já aconteceu também de eu entrar em contato com lojas de animais e pedir para eles guardarem bichos de estimação que tenham morrido ali de forma natural. Então depende um pouco da sorte de encontrar coisas ou da ajuda que recebo externamente. Tenho meses bons e outros nem tanto, mas eu não ligo, porque não imagino outra forma de trabalhar que não seja esta.

O que as pessoas próximas, seus amigos e família acham do seu trabalho?
Com a família foi difícil no início. Mas aos poucos eles começaram a entender. Quando eles viram que não era um capricho passageiro, eles passaram a aceitar e a me deixar evoluir. Com os amigos e conhecidos em geral, já tive muitas discussões, e aborrecimentos, porque muitos consideram que eu desrespeito a memória dos animais ou que o que eu faço é uma nojeira, mas a maioria entende que existem muitos tipos de posturas frente às coisas e que cada um pode fazer o que quiser.

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Também tem gente que admira o meu trabalho, nem tudo é negativo. Por exemplo, um dia eu cheguei na faculdade e, quando fui sentar no meu lugar de sempre, encontrei o crânio de um cavalo em cima da mesa. Era um presente anônimo de um admirador do meu trabalho. Eu fiquei de cara, e realmente me sinto muito agradecida por gestos de apoio como esse.

Um dos motivos por que a taxidermia perdeu público foi o auge dos movimentos de defesa dos animais que lutam incansavelmente para que eles tenham os mesmos direitos de existência do que as pessoas. Levando em consideração que a sua obra pode ultrapassar esse limite aos olhos de alguns, você acha que está desrespeitando de alguma maneira a memória do animal?
De modo algum, já tive discussões muito interessantes com pessoas que não acham certo o que eu faço ou simplesmente não concordam com o fato de que uma comunidade concreta de pessoas possa gostar disso. Eu entendo e respeito que existam pessoas que não gostem do meu trabalho, mas por outro lado também quero que meu trabalho seja respeitado, já que, como já expliquei um pouco acima, ele não faz mal a ninguém e eu NUNCA vou colaborar com caçadores nem com ninguém desse tipo. Eu me limito a reciclar peles preciosas. É um privilégio para mim tentar aproveitar uma coisa que chegou ao fim do seu ciclo e assim poder dar a ela uma nova vida.

A arte da taxidermia tradicionalmente buscou representar a vida. Por que você acha que essa tendência está mudando? A que público você se dirige e que tipo de pessoa se interessa pelas suas obras?
Acredito que existem diferentes vertentes da taxidermia, uma muito academicista, orientada a museus, estudos de preservação de animais ameaçados de extinção, que não me interessa particularmente, e uma mais irônica e extravagante, que é onde eu me incluo. É taxidermia de autor, onde a forma se perde e o objetivo não é se assemelhar à realidade, mas sim transformá-la, para mandar outro tipo de mensagem para um tipo de público totalmente diferente.

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Eu me dirijo a um público que goste de uma taxidermia mais creepy, malfeita, irônica, que interaja com o cotidiano e nos faça quebrar estereótipos de coisas que surgem de uma arte que pode ter a mesma capacidade de transmitir do que uma pintura, uma escultura ou um poema.

Considerando que você é uma mulher praticante de uma arte à beira da extinção, eu fico curiosa para saber se existem muitas outras taxidermistas atualmente ou se era comum encontrar mulheres nesse ramo no passado.
Sinceramente, eu não sei muitos nomes de taxidermistas do passado. Imagino que deve ser também porque as peças são normalmente feitas para um cliente específico, seja um destinatário particular ou um museu, que é quem acaba se apropriando da obra. Então o nome de quem faz a taxidermia desaparece, a não ser que a pessoa seja muito boa e famosa por isso.

Por acaso, todas as minhas taxidermistas favoritas atualmente são mulheres como Adele Morse, Allis Markham ou Katie Innamorato. As obras delas são fantásticas. São resultado de uma grande fonte de inspiração e conhecimento na hora de trabalhar, e felizmente nenhuma delas vincula seu trabalho à caça. Também tem outras taxidermistas muito boas com cujo método de procedimento eu não concordo, mas que são reconhecidas internacionalmente, como por exemplo a Diva Anantharaman, que você entrevistou um tempo atrás.

Qual é o objetivo principal das suas obras? Que tipo de finalidade artística você quer para elas?
Acho que um dos meus principais objetivos trabalhando com a taxidermia é preservar um artesanato perdido e ao mesmo tempo criar peças que sejam capazes de gerar controvérsia social através da ironia.

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Eu curto a ideia de trabalhar do mesmo jeito que se fazia quando essa arte surgiu, com recheios de palha e galhos e ferros para criar estruturas, sem a intervenção de moldes modernos que permitem acabamentos muito mais realistas mas não me interessam; até porque, como eu dizia, busco resultados um tanto grotescos e curiosos.

Minha intenção é continuar aprendendo, e tenho projetos futuros em mente nos quais a taxidermia vai cobrar importância. Mas eu não abandono a colagem, a gravura ou o design têxtil, que também formam parte do meu trabalho como artista. Daqui a uns meses vai ser lançada uma linha de roupas que eu desenhei para uma nova marca muito divertida que incorpora pinceladas de todos esses elementos.

Em um futuro próximo eu gostaria de continuar ligada às artes plásticas e continuar incluindo a taxidermia nos meus projetos, e assim conseguir expor alguma peça em uma galeria, que é uma coisa que eu ainda não fiz.

Matéria originalmente publicada pela VICE Espanha.

Siga Tamara no Instagram em @Ablameiko. Siga a autora em @pinusflash.

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