Guia Noisey para entender direitos autorais de música no Brasil

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Guia Noisey para entender direitos autorais de música no Brasil

Fazer som hoje todo mundo faz, mas ganhar dinheiro com a execução dele ainda é complicado. Esclareça as principais dúvidas para evitar tretas.

Toda semana aparece uma notícia: fulano briga com ciclano por causa de direito autoral em tal faixa. Aí o som que cê curte ouvir some do Spotify, do YouTube, de todas as plataformas Quem não baixou, rodou. E rola o que? Tem treta que envolve rap, tem umas que não envolvem os intérpretes mas sim a produção… e a sua cabeça fica maluca, sem entender nada, sem manjar o que aconteceu. Outra fita também é real: em tempos que qualquer um pode gravar música em casa, como se faz para receber corretamente a grana dos plays nas plataformas de streaming que remuneram os artistas? Sabendo que muitas dúvidas assolam a cabeça da população brasileira, dos ouvintes aos artistas, resolvemos fazer o Guia Noisey dos Direitos Autorais, para dar um mínimo de clareza às dúvidas mais frequentes relacionadas a nossa maravilhosa Lei de Direito Autoral.

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COMO FUNCIONA A LEI?

O primeiro passo para sacar como funciona a lei no país é entender o que de fato é o direito autoral e para que ele foi criado. "A criação é uma propriedade, mas ela não nasce como uma propriedade, diferente de um controle remoto, de um telefone ou de um carro. Uma obra intelectual é intangível, ela é uma criação, então para você garantir que existam mais criações, você cria uma legislação que te protege, ou seja, resguarda o seu investimento", explica o advogado especialista em direito autoral, Leo Wojdyslawski.

TRÊS TIPOS DE DIREITO? SIM.

Entendendo para que serve a Lei 9610 — a de direito autoral — vamos complicar um pouquinho mais. "A música se divide em três tipos de direito. O autoral é um deles. O autoral é sobre a composição, quem escreveu a obra. Você tem o direito artístico, que é quem interpretou, que pode ser o cantor, o guitarrista, o baterista, e você tem o direito fonomecânico, que é quem tem a autorização pra comercializar", conta Arthur Fitzgibbon, Diretor Geral da ONErpm Brasil e América Latina. "E como funcionam esses direitos?", você deve se perguntar. "O primeiro é o direito autoral propriamente dito, de quem criou. O segundo, que acontece quando ele toca a música, é o direito de intérprete. O terceiro é o de produção fonográfica. O que é esse direito? É o direito da gravadora. É um direito autoral? Não. A gravadora criou alguma coisa? Não. Mas ela investe um dinheiro com estúdio, contrata músico, produtor, mixagem, marketing… Para proteger esse investimento, a lei criou esse direito", exemplifica Leo. Claro, se você é um artista que não tem gravadora e pagou a gravação do seu próprio bolso, esse último direito pertence a você. "Se a gravadora bancou, o direito é dela. Ela vai ter que provar ou então deve ter no contrato que o cara cede os direitos pra ela. Se a banda já fez tudo isso — levou a demo pra gravadora que só deu um tapa e lançaram — o direito fonográfico é do grupo, a não ser que ele, descuidado, tenha assinado a cessão", completa o advogado.

PRECISO REGISTRAR A COMPOSIÇÃO?

O direito autoral em si, como vimos, diz respeito a quem criou a obra, ou seja, o compositor. Temos que ter uma coisa importante em mente: a partir do momento que a música foi feita, ela pertence ao seu criador. Você já deve ter lido por aí que é necessário registrar a música para evitar que alguém roube a sua composição, mas não é bem assim que funciona, diz Juliano Polimeno, CEO da Playax. "A lei brasileira diz que a autoria independente de registro. Uma preocupação muito presente e normal para muitos artistas é o medo de ter a música roubada e, na verdade, não é necessário num primeiro momento, isso só é necessário como mais uma evidência caso seja aberta uma ação judicial em que a autoria de uma obra está em disputa". Leo explica: "Em tese não precisa, ele só precisa provar que é dele. Se ele quiser um meio de prova, ele vai na Fundação Biblioteca Nacional e, com uma partitura e letra, registra aquele documento. Ele poderia também pegar essa partitura e letra e ir num cartório de títulos e documentos, que também tem fé pública, e dizer lá 'ó, dia tal fulano de tal registrou aqui'. Isso te dá o direito autoral? Não, porque eventualmente você pegou a música de outra pessoa e registrou. Se essa pessoa tiver como provar, aí sim vai fazer jus ao direito autoral. É tudo uma questão de anterioridade."

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O ISRC É O RG DA MÚSICA

Vamos supor que você, artista, já tem um disco pronto pra lançar. Já entendeu como funciona o direito autoral, o de intérprete e o fonográfico. Melhor ainda, vamos colocar que você é dono desses três: criou o som, tocou e bancou a gravação. Agora falta o quê? Colocar o material nas plataformas pra ganhar uma grana. Como se faz isso?

O primeiro passo é ir a alguma associação de sua escolha pra conseguir tirar o famoso ISRC, International Standard Recording Code, que nada mais é que o código daquela gravação. "A primeira coisa a se fazer é tirar o ISRC. Depois, o autor é dono do direito ou ele tem uma editora? Normalmente o autor tem uma editora, que é uma empresa que administra as obras de um autor, aí ela cuida disso ficando com alguma comissão e dando o restante pra ele. Uma coisa importante: o direito de intérprete vai ficar sempre vinculado com o de fonograma, porque sem esse você não consegue lançar.Quando o autor, considerando que ele é o intérprete também, assina um contrato artístico com uma gravadora, ela se obriga a fazer não sei quantos discos, ele se obriga a interpretar e ceder os direitos de intérprete, e aí tem toda a parte de remuneração", explica Leo.

Se você não quiser tirar o ISRC porque acha que isso é uma puta burocracia, saiba que sem ele não se consegue nem subir os sons nas plataformas. "O fonograma precisa ter o ISRC, que é mundialmente aceito. Qualquer um no mundo inteiro consegue identificar o país, o ano de gravação e o proprietário dos direitos fonomecânicos pelo ISRC. Ele carrega informações dos compositores, de músico acompanhante, de gênero, de sub-gênero, de país, de ano de produção, ele fala até se a gravação é ao vivo, acústica. O ISRC é o RG da música", lembra Arthur.

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Agora que a gente já sabe o que é o ISRC, temos que lhe apresentar mais uma sigla — prometemos que é a última —, o ISWC. Enquanto a primeira diz respeito ao fonograma — lembra que temos três direitos? — a segunda é o registro da composição. "Quando eu recebo uma música aqui em que eu vou recolher somente o direito autoral, o autor também informa o ISWC. São dois códigos importantes, que uma música tem que trabalhar juntos", diz Arthur. Pronto, parece mó simples né? Então, por um lado é, mas como todo o sistema, a parada poderia ser melhor e menos burocrática, critica Juliano. "O que acabou acontecendo é que o sistema de ISRC/ISWC foi sendo corrompido e hoje ele não cumpre mais sua função. Ele ainda é necessário, mas se você olha no digital em que o ISRC é supostamente uma gravação e deveria estar conectado a um ISWC, que é a composição, não temos nenhum banco de dados centralizado para essas coisas, nenhuma estrutura que conecta esses dois códigos. Dessa maneira, um serviço de streaming iria conseguir pagar tanto a gravação quanto a composição, mas como não temos uma solução, a recomendação é que todo artista gere esses dois números, porque sem eles as coisas ficam piores do que já são. Se você é compositor, registre o ISWC na hora de cadastrar a sua obra lá na associação. Se você é uma gravadora ou um artista independente, registre o ISRC. Você pega um software lá na associação e gera o código."

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COMO EU RECEBO?

Para subir os sons em plataformas de streaming que remuneram o artista, como Spotify, Deezer e Google Play, você precisa colocar sua música em uma distribuidora/agregadora, como a ONErpm. Seu som só vai entrar lá se tiver o ISRC, por isso, falamos da importância dele. Uma dica valiosa: se não tiver uma editora fazendo o trampo pra você quando for registrar a faixa na distribuidora, coloque todas as informações corretas na hora do cadastro. Isso ajuda com que você receba o dinheiro no tempo certo e que ele não entre em uma conta que só serve pra guardar a grana que foi paga pelos serviços mas que não foi repassada para os artistas por causa de erros. "Tem muito artista que nunca recebeu nada por não entregar informação correta. Só que esse dinheiro não é que não foi pago, ele tá parado em uma conta chamada direitos reservados", comenta Arthur.

Se as informações estiverem todas certas, a sua distribuidora vai repassar o dinheiro. "A gente repassa o dinheiro pra gravadora, artista, editora,selo ou compositor, dependendo de quem entregou a obra ou assinou o contrato com a gente, de quem é o responsável pelo direito artístico, fonomecânico ou autoral", diz Arthur. Vale lembrar que a porcentagem que será repassada, do montante total arrecadado do streaming, varia de acordo com cada serviço. Alguns, como a ONErpm, cobram uma porcentagem. Outros trabalham com uma taxa mensal.

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QUANDO O ECAD ENTRA NO JOGO?

A gente comentou que você, caso queira receber um dinheiro, precisa entrar uma associação. Por quê? Porque ela vai repassar o dinheiro do ECAD pra você, então a lógica da grana é a seguinte: o ECAD arrecada e tira uma porcentagem desse valor, repassa pra associação, a associação morde uma porcentagem e manda a grana para a sua editora que pega uma pouco também e depois te passa. Caso você não tenha editora, a grana vem da associação diretamente pra você. Mas antes de tudo, temos que explicar o quê de fato faz esse órgão. O trabalho dele é distribuir o dinheiro arrecadado do direito de execução pública, que nada mais é do que "execuções em locais de frequência coletiva, como qualquer bar, show, lugar público e que possa ser frequentado pelo público, e também na televisão, na rádio, em todos esses meios de comunicação ao público direto. Em relação aos locais de execução pública, pode ser em fonomecânica, que é quando alguém bota um som ou pode ser uma performance ao vivo. Tudo isso o ECAD arrecada e distribui", explica Leo. Dito isso, precisamos esclarecer as polêmicas. Muitos artistas reclamam que não recebem a grana do ECAD, mas isso acontece, na maioria das vezes, por erro deles mesmos, segundo o advogado. "O sistema funciona se todo mundo colabora. Então, quando você for tocar, o produtor do show tem que passar o setlist que foi executado, que vai passar pro ECAD e ele tem que distribuir, mas quase ninguém faz isso. Senão o que acontece? Vai pro algoritmo, por amostragem, e lógico que quem é maior vai receber mais."

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COMO EU FAÇO PRA NÃO TER DOR DE CABEÇA?

Você pode ter se assustado com a quantidade de coisa que precisa fazer pra receber uma grana pelo seu trampo. Pra facilitar AINDA MAIS o seu trampo, pedimos para o Arthur, o Juliano e o Leo resumirem o básico do básico para você não tomar rasteira do seu produtor.

Leo Wojdyslawski "O artista precisa ter um lado bem sistemático, senão ele vai ficar maluco e jogar tudo pro alto. Eu não aconselharia ele fazer sozinho. Se ele tiver com medo de alguém roubar a música dele, ele vai no cartório de títulos e documentos e registra a música lá. Depois ele precisa entrar no sistema. Se você não tiver o ISRC, não vai ter controle de nada e se quiser ter o ISRC, precisa perder tempo: tem que ir até uma associação. Lá eles vão te explicar como funciona e vão tirar esse código pra você. É uma parte burocrática, chata, mas não adianta você fazer sucesso e não receber um centavo. Existe também a possibilidade de deixar tudo na mão de uma editora, e aí ela vai nas associações pra você. Se quiser fazer isso sem a editora, vai ter que gerir seu catálogo e é um puta pé no saco. Tem a possibilidade da editora não se interessar pela sua música, então você vai na associação e eles te orientam, te cadastram no sistema do ECAD, pra se executarem sua música você receber."

Arthur Fitzgibbon

"A principal receita que eu digo pra todo mundo é: tenha o registro do ISRC, porque com o registro você pode comprovar que você é o real proprietário fonográfico daquela música que tá sendo entregue. A gente pede quando a pessoa tá fazendo o cadastro, tem um checkbox ali, onde ela assume a responsabilidade sobre o material que está sendo entregue. Tem um texto explicativo avisando pras pessoas o que é um processo de fraude, como tem que entregar tudo direitinho e isso faz com que um em cada 100 mil álbuns tenha esse tipo de problema. A gente praticamente zerou isso com esse processo de educação e a exigência do ISRC aqui também, porque ele é o que realmente vai comprovar a propriedade do fonograma. Já teve casos de gente reclamando que tal música era dele e aí ele vai, mostra o documento do ISRC e tudo é resolvido. O ISRC é a chave dessa comprovação."

Juliano Polimeno

"Não se preocupe muito com isso: vai trabalhar, vai fazer show, vai tocar, vai montar seu público, essa é a dica principal. A segunda coisa é entender como os fluxos de dinheiro rolam. Se preocupar menos com o registro na Biblioteca Nacional e mais com o registro na associação que é de onde vai pingar o dinheiro de execução pública. Escolha uma boa distribuidora/agregadora digital, faça a distribuição do seu conteúdo para todas as plataformas e fique de olho nas receitas, nos relatórios. Uma terceira coisa é ficar atento a toda informação disponível, a todos os dados que possam te ajudar de alguma maneira a crescer a sua audiência. A Playax tem um serviço desse tipo, de ver como tá o público, se tá aumentando, se tá caindo, onde tá, se tá no rádio, na TV, no Facebook, no YouTube, pro artista poder potencializar essas coisas. Mas basicamente é trabalhar, não pode ficar se preocupando em ser lesado."

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