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Videogames precisam superar a fantasia de caras bombados com armas

Nem todo mundo pira na fantasia mais medíocre e popular dos games.
Armas, carros e caras bombados em 'GTA Online'. Imagem: Rockstar/Divulgação.

Matéria originalmente publicada no Waypoint.

É fácil entender por que armas se tornaram tão intimamente ligadas aos videogames. Elas são um grande equalizador. Não importa quão fortes, durões ou numerosos sejam os oponentes, um usuário habilidoso de armas de fogo pode vencê-los. Os fuzis de repetição do século 19 eram milagrosos porque permitiam que grupos menores destruíssem grupos grandes com habilidade e poder de fogo superior, e é exatamente essa fantasia que as armas permitem que abracemos quando Master Chief atropela legiões de Covenant.

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Essa amostra de poder da parte do jogador é exatamente o que Jane McGonigal usou como exemplo de coisas impressionantes que gamers podem conquistar: “Quando jogadores se dedicam a um objetivo como matar 10 bilhões de Covenant, eles estão se ligando a uma causa, e fazendo uma contribuição significativa para ela”. Os jogadores aparentemente estão mudando o mundo, um tiro na cabeça de cada vez.

Armas são um método para abordar o mundo com poder máximo. Você faz uma escolha, mira seu cursor e uma mudança naquele mundo é alcançada com eficiência e mínimo esforço. Armas facilitam uma fantasia de poder. É um termo debatido, e mais frequentemente usado para criticar pessoas que jogam os videogames bombásticos da nossa era. Mas acho que a conversa sobre armas e games em 2018 exige que observemos a fantasia de poder seriamente. Mais que isso, acho que esse diálogo exige que tenhamos um entendimento mais amplo da fantasia de poder para que possamos desassociá-la das armas.

Originalmente “fantasia de poder” era um termo específico desenvolvido dentro da psicanálise freudiana como uma maneira de falar sobre como a mente humana funciona. Dentro dessa tradição, o conceito de fantasia de poder é um jeito como humanos identificam e lidam com o mundo ao seu redor, em certos momentos. Muitas vezes nos encontramos em momentos onde não temos poder, e suplementamos isso nos identificando com identidades ao nosso redor que achamos poderosas. Na sua forma atual, fantasia de poder é mais genérica.

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'GTA V'. Imagem: Rockstar/Divulgação.

Esse é termo para melhor descrever a sensação que um jogo pode produzir num jogador. Nick Donaldson do Epic Games diz que uma fantasia de poder é uma experiência onde “uma pessoa é capaz de fazer algo que não conseguiria com os meios e habilidades que possui na vida real”.

A fantasia de poder são as pernas fortes que te ajudam a escalar a torre ou os braços fortes que arrebentam crânios de demônios alienígenas. A fantasia de poder também descreve a relação entre o jogador e sua arma no jogo, que funciona como uma varinha mágica para interações que limpam salas, terminam encontros, ou geram muita da ação momento a momento dos videogames contemporâneos.

Não estou interessado se fantasia de poder é algo bom ou ruim. Muita conversa sobre ela, seja atacando ou defendendo, trata quem se envolve em fantasias de poder como se não tivéssemos ideia do que estamos fazendo. Não sou um jogador ingênuo sobre os videogames que jogo, e não acho que os outros gamers sejam. Sei no que estou me metendo, e gosto de fazer coisa nos jogos que me fazem sentir legal, inteligente ou habilidoso. Gosto de me sentir poderoso, como você provavelmente também gosta.

Fantasias de poder funcionam porque te dão o que você não tem e não pode acessar no seu cotidiano. Tem algo muito libertador em cruzar Los Santos em Grand Theft Auto V num carro esportivo, sendo perseguido por policiais, e os despistando nos desertos entre aqui e a costa. É uma fantasia de poder exatamente porque você não poderia fazer isso na vida real.

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Mas se sentir poderoso não é algo simétrico. A mesma fantasia não funciona para todo mundo. Muitas pessoas no mundo têm o “poder” básico negado para desfrutar sua vida. É negado aos negros o direito de ser inocente até ser provado o contrário e acesso igual ao sistema judiciário. É negado às mulheres autonomia corporal, seja andando nas ruas e ouvindo cantadas ou quando se trata de sua saúde reprodutiva no consultório de um médico. Latinos são alvos de uma força policial especializada. Indígenas são constantemente traídos em seus acordos de honra com o governo.

'Mafia 3'. Imagem: 2k Games/Divulgação.

Essa é só uma amostra, mas esses contextos ajudam a demonstrar como minha fantasia de poder não é a mesma de todo mundo. Em outras palavras, meu acesso a certos tipos de poder na minha vida real significa que não estou procurando por esse poder na minha fantasia. Esse é exatamente o processo que Yussef Cole analisou mês passado em seu texto sobre a interação de Mafia 3 com o legado do nacionalismo negro, e de muitas maneiras Lincoln Clay é uma figura de super-herói herdando essas ideias. Ele é mais forte, mais esperto, mais rápido e mais capaz do que qualquer humano real, ele é uma encarnação mítica de ideais políticos reais. Ele é uma fantasia de poder que invoca poder para um grupo de pessoas a quem é negado poder legal e econômico.

A fantasia de poder, então, é um espaço contestado, e não acho que a discussão devia se centrar em se ela deveria existir ou não. Em vez disso, a discussão deveria se focar em quem tem a chance de se sentir poderoso? Quem tem acesso a representações digitais de seus sonhos, especialmente em jogos AAA ou no espaço dos blockbusters? E, muito importante, onde as armas entram nisso tudo?

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Porque não esqueci as armas. Lincoln Clay resolve seu problema com armas, mas fora isso ele é uma grande exceção no mundo dos videogames. Se você está atirando em pessoas num videogames, é bem possível que você esteja interpretando o papel de um homem branco com um chip no ombro. Ou talvez você esteja fazendo isso por honra, por Deus e pelo país. Talvez você tenha sido traído por uma instituição que tinha em alta conta. Seja qual for a razão, você pega uma fantasia em particular que te coloca no corpo de um mágico das balas, que pode magicamente apagar todos os problemas que aparecem na sua frente.

Atirar em games geralmente parece como se você estivesse jogando uma versão de videogame de Desejo de Matar. Originalmente lançado em 1974 e atualmente nos cinemas num remake estrelando Bruce Willis, Desejo de Matar é um filme de vingança que segue um cara branco matando um grande número do que ele define como inimigos. O filme é sobre fazer justiça como um justiceiro, e claramente é uma forma de fantasia de poder que seduz por inúmeras razões. E se você pudesse acabar com o crime? E se você, sim, você, pudesse impedir toda injustiça do mundo com uma arma?

Poster de 'Desejo de Matar', com Bruce Willis. Imagem: MGM/Divulgação.

Mas o filme só funciona se você consegue se identificar com um homem branco que pode andar pela cidade sem ser parado pela cor da sua pele ou as roupas que está usando. Só funciona se você pode se imaginar tendo acesso a um capital que libera seu tempo para ser um justiceiro noturno. Só funciona se você consegue ver algo da sua vida no Bruce Willis, sua careca tão brilhante quanto a submetralhadora que ele usa.

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Muitos videogames com armas não têm a mesma história que Desejo de Matar, mas apresentam o mesmo conteúdo. Eles pedem pela mesma identificação, e mais importante, eles funcionam com a imaginação limitada (e dentro de um espaço de possibilidades restritas) do status quo. Desejo de Matar é sobre tirar vantagem das desigualdades que já existem. Mas Mafia 3 é sobre seguir em frente apesar das desigualdades, e no clímax, derrubá-las.

Mas não é suficiente só desejar fantasias mais diversas ou contar as raras exceções. Fantasias de poder são produzidas por uma indústria, e refletem várias partes dessa indústria. A mais importante é o dinheiro. Nossos jogos de tiro atuais são vistos como uma aposta certa, o melhor retorno de investimento de desenvolvedoras avessas a riscos. O niilismo se estabelece. Por que isso mudaria?

Um lugar onde podemos procurar orientação nisso é no cinema. Vivemos numa mar de mudança no momento nos filmes quando se trata de fantasias de poder. Pantera Negra de Ryan Coogler continua dominando as bilheterias, por várias razões. É um filme de super-herói que segue os mesmos tropos básicos do gênero. Pantera não vai além da fantasia de poder, em vez disso, o filme abraça a fantasia de poder, voltando o enquadramento especificamente para as experiências dos negros americanos e outras pessoas da diáspora africana.

Mais importante, Pantera Negra não é sobre um protagonista atirando numa horda de inimigos. E não só porque esse é um filme de super-herói, mas porque Pantera Negra está nos dizendo em toda cena que armas não são suficientes para resolver problemas. Não há varinha mágica de balas que coloca o mundo em ordem. Em vez disso, é preciso cuidado, consideração e, sim, violência. Mas armas mais atrapalham que ajudam.

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'Pantera Negra'. Imagem: Marvel/Divulgação.

É um filme sério e profundo de um diretor cujo primeiro longa era explicitamente sobre armas. Fruitvale Station: A Última Parada, escrito e dirigido por Coogler, é especificamente sobre como armas são a expressão definitiva e horrível daqueles que têm acesso a elas contra quem não tem. O sucesso daquele filme permitiu que Coogler fizesse o aclamado Creed: Nascido para Lutar e depois Pantera Negra. Enquanto Fruitvale Station abandona a fantasia de poder por um retrato da vida e tragédia, o trabalho de Coogler desde então tem sido abertamente sobre fornecer fantasias de poder para pessoas que não eram atendidas pelas fantasias existentes.

Acho que esse é o jeito mais pragmático de desassociar as armas da fantasia de poder.

Acho que esse é o jeito mais pragmático de desassociar as armas da fantasia de poder. Você não pode tirar as armas de Call of Duty, e Uncharted não seria o mesmo jogo sem longas seções de lutas com armas. Mas muitos das nossas franquias de videogames mais populares se viram sem elas. Foi preciso a crítica e os consumidores se envolverem com Fruitvale Station para abrir caminho para Ryan Coogler fazer filmes em franquias blockbuster como Creed e o filme da Marvel que se seguiu. Atualmente esse caminho está bloqueado por várias razões, principalmente pelas desenvolvedoras avessas a riscos, mas de certas maneiras esse é o canal mais fácil por onde trabalhar.

Paratopic, por exemplo, é um jogo profundamente incorporado nas estéticas dos games do passado, e é fácil imaginar o que a desenvolvedora conseguiria fazer com um pouco mais de dinheiro e a chance de contratar uma equipe maior. O trabalho de Meg Jayanth, mais conhecida por escrever o elegante e crítico 80 Days, também abraça a ação e poder do jogador sem se render às normas e padrões da nossa imaginação AAA atual. Even The Ocean e Anodyne de Sean Han-Tai e Joni Kittka se recusam a dispensar fantasias de poder e heroicas, mas alteram as condições dessas fantasias e se focam em para quem elas poderiam ser.

Acho que esse é o melhor jeito de conseguir uma fantasia de poder que é maior do que a que temos hoje. Esses são desenvolvedores trabalhando num espaço independente que evita a solução fácil das armas como varinhas mágicas, e para esse fim eles abrem um espaço mais amplo para as fantasias de poder. E, cinicamente da minha parte, acho que é uma coisa tentadora para o mundo dos jogos AAA observar. Se eles querem apostas certeiras, é importante demonstrar a amplitude do mundo das apostas certeiras do mesmo jeito que Pantera Negra fez. E talvez possamos limitar a reposta fácil das armas no caminho.

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