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Mulas portuguesas nas cadeias brasileiras

É preciso ser burro como uma mula para aceitar encomendas de estranhos.

Portugal é o segundo país da Europa com

maior número de cidadãos presos no Brasil, sendo que muitos foram de cana por serem "mulas" que não conseguiram embarcar com drogas do Brasil para o estrangeiro. Quando são detidas no estado de São Paulo, estas pessoas são levadas para a Penitenciária de Itaí, a cerca de 300 quilómetros de distância da capital, que desde 2006 só abriga cidadãos estrangeiros. São 1443 ao todo, distribuídos por quatro pavilhões, de 84 países de origem (de Portugal à Eritreia). Mais de dois terços cumpre pena por tráfico de droga. Todos os presos são separados por convivência e não por países ou continentes, de forma a evitar males maiores. Os jornalistas adoram chamar-lhe a prisão de Babel. No final do ano passado, quando visitei o complexo, os lusitanos estavam bem representados. Depois de toda a burocracia, dez deles aceitaram — sem benefícios para as suas penas — dar entrevistas comigo. Era uma sexta-feira de Agosto, véspera do fim-de-semana do dia dos pais, e por isso não conheci as celas já que a reclusão acontece mais cedo. O clima era pacífico, mas o calor era quase alentejano dentro da biblioteca onde foram montadas as entrevistas. Foi tudo supervisionado por agentes penitenciários ou pelo director em pessoa. Os tugas compareceram um por um para conversar, mas nem todos aceitaram posar para fotografias, por isso aqui ficam apenas cinco das conversas. Todas gentis ainda que deprimentes. Espero que tenham recebido os cigarros que lhes levei como agradecimento. L.C., 24 anos. De “perto de Sintra”. Preso em 30 de Outubro de 2010 com um quilo de cocaína escondido nas pernas. VICE: Como e onde te apanharam?
L.C.: Na revista normal do aeroporto. Tinha uma fita-cola dentro da minha mochila e eles suspeitaram. E por que é que resolveste transportar droga?
Fui criado pelos meus avós e uma tia, além da minha irmã. Precisava do dinheiro, então decidi arriscar… E agora estou aqui. Achas que foi azar?
Acho que tinha de acontecer. Para mim tudo tem um sentido, está predestinado. Mas estavas desempregado em Portugal?
Trabalhava como jardineiro, só que não dava. Era pouco. Eras tu quem sustentava a família?
Sim, se é que se pode dizer sustentar. Mas, pronto, ao menos dava para mim e para ajudar com alguma coisa os estudos da minha irmã. Querias ser o quê na vida?
O que eu gostava era de ter sido veterinário, mas não tive cabeça para o estudo. Nem possibilidades. Só tenho o 6.º ano. Mas quero tirar um curso de jardinagem quando voltar. Terminada a pena, sabes que podes ser expulso do país…
Espero que sim. … E talvez fiques proibido de voltar ao país.
Não tenho intenções de cá voltar. Vais perder os melhores carnavais e o Mundial de 2014.
Vejo na televisão. E isso se já estiver fora, que a minha condenação é até 2015.

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L.F., 27, Setúbal. Preso em Abril de 2009 quando embarcava para Portugal com 560 gramas de cocaína no fundo falso de uma mala. Condenado a sete anos e sete meses de prisão. Como é que vieste parar à Penitenciária de Itaí?
L.F.: É a crise, não é? O meu pai morreu de cancro em 2003 e agora também a minha mãe foi diagnosticada com cancro, não pode trabalhar. Então, decidi fazer… Ia ganhar cinco mil euros. Fui caço quando estava já na porta de embarque para entrar no avião. Veio um polícia que me disse “mostra o teu passaporte”, eu mostrei. Depois pediu-me o bilhete de embarque. “Você é dono de uma mala castanha, marca tal?” Eu disse: “Sim, sou.” Perguntei se se passava algo de errado. “Não, não. Notámos uma coisa estranha, é só rotina.” Pegaram na minha mala e levaram-me com eles. E como é que te envolveste nisto, nigerianos?
Não, não tem nada a ver com nigerianos. Andava a procurar trabalho lá em Portugal e encontrei-me com um amigo que estava com outro grupo de amigos. Aconteceu na conversa eu mencionar que estava a precisar de guito, e um brasileiro que lá estava disse: “Vamos arrumar uma coisa para você.” Pensei que seria um trabalho normal. Duas semanas depois ele ligou-me, fui ter com ele. "Ah, tem isso e isso e isso, você quer? É grana fácil.” E depois?
É assim, há já muitos anos que eu dizia que queria vir para cá, para o Brasil. A ideia era vir para fazer isso só para deixar um dinheiro para a minha mãe — não para mim, que eu quase nunca estou em casa. Então, fui dentro. Cheguei em Janeiro e lixei-me em Abril. Achavas que seria mais tranquilo fazer isso aqui no Brasil?
Ele disse-me que ninguém tinha sido apanhado aqui, mas se calhar diz isso a todos. Para entrar é tranquilo, como somos portugueses e falamos a mesma língua, não há tanto controlo. Já consumiste drogas?
Não. Nem bebo, nem nada. Só comecei a fumar aqui na cadeia. Com o café foi a mesma coisa. Por nervosismo. Comecei lá no aeroporto, quando me prenderam. Aí foi cigarro, cigarro, cigarro… Até agora. Em pequeno sonhavas em vir a ser o quê?
Tenho o 12.º ano completo em Portugal e o curso de técnico de electrónica. A minha base em Portugal foi sempre estudar, nunca deixei os estudos. Não tenho cadastro lá. Queria jogar à bola, mas parti a perna e tive que abandonar. Jogava no Vitória de Setúbal, não sei se conheces. Já tens algum plano para quando te libertarem?
Não sei, só estando lá fora para saber. Vou migrar, acho. Vais ser deportado?
Não sei como é que isso funciona. Acho que quem não tem ligação directa com o país é obrigado a sair e não pode voltar mais. Isso aborrece-me. Gosto deste país, sinceramente, mas se não puder voltar, não há nada que possa fazer para reverter a situação. Então, seja o que Deus quiser. Sentes-te um criminoso?
Não. Sei que cometi um erro, mas não me sinto criminoso porque nunca tive qualquer tipo de relação com organizações criminosas, nunca fiz nada disso antes. Cometi um erro, sim, e estou a pagar por ele.

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P.G., 30, Leiria. Foi preso em 2008, no aeroporto de Guarulhos, na posse de seis quilos de cocaína em toalhas. Como é que te descobriram?
P.G.: Dizem que foi através de raio-X, mas não sei. É uma história um bocado esquisita, eu desconhecia o conteúdo. Quando me apanharam, estava na internet, tranquilo e pronto para viajar. Não sabias o que estavas a transportar?
Não. Eram umas toalhas que me deram para entregar como encomenda. Disseram-me que era outra coisa, que não havia problemas porque era só um líquido para lavar notas falsas, que se a polícia encontrasse que não seria um problema para mim. A própria polícia teve dificuldade em descobrir que aquilo tinha droga. Não sei como é que fizeram para colocar droga nas toalhas, só sei que depois fizeram o teste e disseram que tinha cocaína. Quem te passou as toalhas?
Foram nigerianos. A ideia era pegar aqui, ir para Portugal, Zurique… Terminava em Londres. Abordaram-te na tua cidade?
Não, eu actualmente estou a residir em França. Já levo dois anos de França. Não era eu quem deveria ter feito esta viagem, mas sim uma amiga. Só que ela não tinha passaporte e o visto demorava quinze dias. Perguntaram se eu podia vir antes. Respondi que não havia problema. Quanto ias receber?
É assim… A minha amiga que ia viajar tinha o contacto deles e eram amigos, então eu vim numa de, tipo, desenrascar mesmo. Não se falou em quantias nem nada. Era só vir aqui, pegar e ir embora. Como é que foste transportar uma coisa estranha que te foi entregue por desconhecidos?
Porque era uma encomenda. Eram só várias toalhas, não dava para desconfiar de nada. E se acabares por ser expulso do Brasil?
Não tem mal. Vejo muita coisa aqui na televisão, não me incomoda. Era um sonho que eu tinha desde criança, conhecer o Brasil, mas estar aqui e ver a realidade que tem aí fora… Mas mal viste o Brasil.
Nós vemos televisão aqui, acompanhamos. Chegam aqui vários casos e nós ouvimos. Aqui chamamos de "mulas" aos traficantes internacionais de drogas, mas a palavra também tem outro significado: burro. Sentes-te esse tipo de mula também?
[Risos] Sim, sinto-me um burro porque fui enganado, certo? Mas é a vida, não posso fazer nada.

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M., 45, Lisboa. Preso em Setembro de 2009 enquanto embarcava para Budapeste no aeroporto de Guarulhos. Carregava dois quilos de cocaína escondidos num colete por baixo da roupa. Quando é que te apanharam?
M.: Estava a mostrar o passaporte quando chegou a polícia. Como é que descobriram?
Sobre? A droga.
Não sei. Estavas nervoso?
Não, normal. Nervoso estou agora, mas podes perguntar que eu respondo. Já tinhas feito isto antes?
Não, foi a primeira vez. Só estava cá há três semanas. De quem era a droga e para onde ia?
Ah, não sei de onde era. Só vi a pessoa duas ou três vezes. Ia ganhar uns cinco mil euros. E tinhas emprego lá em Lisboa?
Não, estava desempregado. Era pintor na construção civil. Depois meti-me na heroína durante onze anos e nunca mais trabalhei. Recebi o convite e aceitei, estava um bocadinho à rasca de "grana", como dizem os brasileiros… Foi a tua primeira vez no Brasil? Já querias ter vindo antes?
Vir para cá fazer o quê, ser preso? O Brasil não é tão bom como as pessoas ouvem em Portugal. O que se vê aqui na televisão é muita corrupção, muita mesmo… Eu lá só conhecia as novelas. A Globo é uma… Uma cagada. Não presta. É só novela, novela, novela. Vês-te como um criminoso?
Não, não. Vim porque estava a precisar do dinheiro, mas também não estou arrependido de ter vindo. Devia era ter-me arrependido antes de fazer o que fiz, entendes? Está feito, está feito… A minha família era pobre, eu tinha que lutar para comer e tudo o mais. Éramos sete irmãos. E o consulado, tem ajudado?
Nada, nada, nada. Só no Natal é que mandam umas bolachinhas, para atiçar a alma. De água e sal. Saindo daqui qual é o teu plano?
Só Deus sabe. Quero voltar para o meu Portugal. Não troco Portugal por país nenhum. Mesmo na crise. Do que é que sentes mais falta?
Dos meus filhos. Eles sabiam de ti e das drogas?
Não, mas a minha mulher descobriu. Foi quando me estava a divorciar dela. Mas ela não sabe que eu estou aqui. Nem seus filhos?
Nada. Nem quero que eles saibam… Do bandido que o pai é. Mas quando voltares não vais ter que dar explicações?
Chegando lá invento uma desculpa qualquer.


H., 26, Lisboa. Preso a 14 de Fevereiro de 2010, a caminho da Holanda, na posse de um quilo de cocaína no estômago. Também te apanharam em Guarulhos?
H.: Não. Fui caço ainda no hotel, em Santa Cecília, às três da tarde do dia em que ia viajar. Acho que fui chibado. Isso quer dizer dedurado?
Sim. Estava aqui no Brasil há uns dez dias, pouco tempo, por isso é que acho que fui chibado. Depois soube que esse hotel trabalha com a polícia, há mais pessoas aqui que foram presas nesse hotel. E a polícia depois contou-me que esperaram que eu saísse do hotel, que fosse a uma estação de metro buscar a droga e que a engolisse para só depois me prenderem, se não davam-me só com o artigo 12 e eu não ficava preso mais do que um ano ou dois. Disseram isto na minha cara, já sabiam. Trabalhavas para quem?
Trabalhava para mim mesmo. Ia levar a droga para a Holanda. Vim de Amsterdão e ia voltar para lá. Era uma viagem curta que acabou por ser uma viagem longa. Desconfias de alguém que te possa ter dedurado?
Tenho as minhas suposições, mas não posso fazer nada ainda, que estou preso. Quando sair é outra história. Pretendes fazer o quê?
Vou cobrar a quem eu tenho que cobrar, não é? É assim. E como é que conseguiste as drogas?
Foi aqui em São Paulo, há muita droga aqui em São Paulo e havendo muita droga é fácil fazer negócio. Quanto dinheiro é que ias fazer?
Ia ganhar cinco mil e tal euros. Não é muito, mas já ajuda em qualquer coisa. Sempre é mais do que trabalhar como cozinheiro e receber 500 euros por mês. Chegava ao dia 20 e já não tinha mais dinheiro, só para renda ia metade. Cheguei a um ponto em que já não dava para viver assim. E arrisquei. Já tinhas traficado droga antes?
Não vou responder a essa, não é? O que é que fazias em Portugal?
Sempre quis trabalhar numa cozinha. Trabalho desde os meus 16 anos em bons hotéis. Também já morei noutros países, em Espanha, França… Falo quatro línguas. Em França trabalhei na Cote D’Azur: são mil quilómetros de diferença, mas lá tirava dois mil euros por mês, enquanto que em Portugal, no mesmo tipo de hotel, tirava só 400 ou 500. O nível de vida é mais caro, mas recebes mais dinheiro. Em Portugal o nível de vida é elevado, mas recebes menos. O Estado português nisso é um pouco como o brasileiro, não? Quer tudo para eles e o povo que se lixe. Como está a ser a estadia?
Estou a 15 mil quilómetros de casa, não tenho contacto com a minha família… As cartas que me mandam, muitas não chegam. Já estou há quase nove meses sem receber resposta do meu pai. Não sei se ele está bem. Ele tem quase 80 anos e não sei se está vivo ou se está morto. A minha mãe tem estado muito mal de diabetes e o meu pai teve um AVC há coisa de… Na última carta dizia que tinha tido um AVC, mas que estava bem. E eles moram juntos, isso é o que eu acho mais estranho. De três em três meses mandavam-me uma carta e de um dia para o outro deixaram de manter contacto. O consulado também não nos ajuda, a única coisa que fazem é mandar uma cesta básica na época do Natal com uma toalha, três pacotes de bolachas e dois ou três sabonetes. Do meu advogado, nem sei o nome. É da Defensoria Pública [Ministério Público], só o vi uma vez. Há coisas que a mim me transcendem, mas não me cabe a mim julgar. Mas também há coisas que podiam estar melhores, não? Tens namorada lá em Portugal?
Tenho. Quer dizer, agora devo ter é um belo par de chifres. Já estava com ela há quatro anos. Quando vim para cá ela disse: “Não vás que vais ser preso. Não precisas disso.” Parece que as mulheres têm mesmo um sexto sentido. Então, mas ela sabia de tudo?
Acho que numa relação tem que haver reciprocidade. Seria um bocado cruel da minha parte mentir-lhe a dizer que ia de férias. Mas, pronto, ela está a fazer a vida dela lá e eu estou a fazer a minha aqui. Vamos ver como é quando eu sair. Achas que no futuro podes voltar a querer alguma coisa com as drogas?
Nunca digo nunca porque a vida às vezes prega-nos partidas. Há pessoas que estão presas aqui porque tinham dívidas e acabaram encostadas à parede. Nunca pensei em levar drogas para a Europa, eu próprio criticava as pessoas que faziam isso, mas acabei por embarcar no barco. Dinheiro. Muita gente diz que o dinheiro não é tudo, mas o dinheiro é tudo, sim. Tu sem dinheiro não és nada. A gente compra aqui a droga a cinco mil dólares e vende lá por 30 mil euros. Acaba por compensar o risco. Quando a pessoa vem, não vem naquela “ah, vou ser preso”. Vem numa de “vou conseguir”, mas fazer o quê? Não adianta chorar sobre o leite derramado. És a favor da legalização das drogas?
Só das leves. Haxixe e erva, mas não as duras. A palavra "mula" aqui no Brasil pode significar um correio de drogas ou alguém muito burro. Sentes-te burro?
Acho que burro foi não ter mandado cá alguém por mim. Não vou estar aqui a dizer que me arrependi porque seria só fachada. Mas devia ter ficado e arranjava alguém para vir cá ou para ir a outro sítio qualquer. Como quase toda a gente faz, agarra-se um Zé das Couves qualquer, "toma lá 500 euros e vai tu". Não pretendo voltar ao Brasil. Nada contra, mas acho que este país me vai dar sempre muitas lembranças más. Quando sair daqui não vou recomendar isto para ninguém: se me perguntarem, digo que o Brasil é chave de cadeia.

Entendido. E o Felipão, que já foi seleccionador português. O que achas dele?
Fiquei zangado com ele porque perdemos o Euro 2004 em casa para a Grécia, mas acho que ele é um bom treinador. Só não percebi o que é que isso tem a ver com a entrevista

É só para…
Para desanuviar, ok. Fotografia por Matheus Chiaratti