Muçulmanas são proibidas de tirar RG por usarem véu

FYI.

This story is over 5 years old.

Noticias

Muçulmanas são proibidas de tirar RG por usarem véu

Poupatempo em Guarulhos exigiu um certificado de religião para que mãe e filha pudessem fazer a foto para o documento.

Fotos por Lucas Dantas/VICE.

São Paulo é o estado brasileiro com a maior concentração de muçulmanos no Brasil. Dos 1,5 milhão de adeptos da religião no país, 300 mil vivem nas cidades paulistas. Alguns dos seguidores da religião, porém, sofrem ao buscar por serviços públicos. O caso mais recente aconteceu em Guarulhos, na Grande São Paulo, em uma unidade do Poupatempo na qual duas brasileiras muçulmanas foram impedidas de tirar o Registro Geral (RG) depois de se negaram a tirar o véu, conhecido com Hajib, na hora de fazer a foto para o documento.

Publicidade

A mãe Aman Rahman Mohamad Kadrid, 47 anos, e a filha Zeina Omar Kadri, de 19 anos, afirmaram ter passado quatro horas de "constrangimento" no Poupatempo de Guarulhos, no Dia Internacional da Mulher (8), até receberem a notícia de que teriam de apresentar um Certificado de Entidade Religiosa para conseguir tirar a foto de identificação do RG com o véu na cabeça. "As pessoas ficavam passando e olhando para a gente como se fossemos terroristas. Ninguém me obriga a tirar ou usar o véu, nem mesmo meus pais, é uma decisão minha, é uma questão de respeito com a minha religião", disse Zeina.

Aman Rahman disse que os funcionários do Poupatempo alegaram que a imagem do RG não pode esconder os cabelos e nem tapar o rosto. "Eles afirmaram que teríamos de mostrar o cabelo. Quantas mulheres pintam o cabelo, cortam ou raspam e registram suas fotos em diversos documentos com aparências diferentes? Se quiser confirmar se uma pessoa é realmente quem ela diz ser basta verificar a impressão digital ou fazer o reconhecimento da retina", concluiu Aman.

Aman e a filha Zena. Foto por Lucas Dantas/VICE.

Nascida no Brasil, Aman se casou e foi morar no Líbano, mas visita constantemente os familiares que moram no país — atualmente ela está de volta para participar do casamento de uma sobrinha. Durante a entrevista, inclusive, ela exibiu os passaportes emitidos pela Polícia Federal com as fotos em que ambas utilizam o véu. "Estranho como acontece essa diferenciação de um lugar para outro simplesmente por conta da utilização do véu."

Publicidade

A Comissão dos Direitos Humanos, Cidadania, Habitação, Assistência Social e Igualdade Racial da Câmara Municipal de Guarulhos tomou conhecimento do caso e decidiu intervir. Os vereadores Lamé (PMDB) e Marcelo Seminaldo (PT), respectivamente presidente e secretário da comissão, protocolaram, na última sexta-feira (10), uma denúncia por discriminação religiosa no Ministério Público Estadual (MPE). "Isso é um preconceito religioso, só acontece com muçulmanos. Como pode um órgão público contestar a fé de uma pessoa em um Estado laico, nem mesmo a Constituição determina que não se pode usar véu nas fotos", disse Lamé. A comissão quer banir a exigência do certificado de religião por meio de acordo. Caso não haja consenso, a ideia é ingressar com uma ação civil pública.

A lei 7.116 de 1983, que regula a emissão dos documentos de identificação, não cita nenhuma proibição ao uso do véu em fotos utilizadas para identificação, cita apenas a necessidade de uma foto 3x4. Já o inciso VIII, do Artigo 5º da Constituição Federal, veda que o cidadão brasileiro seja privado de direito em razão de sua religião. "O Detran de São Paulo, por exemplo, não exige que as muçulmanas tirem o véu para fazer a foto da Carteira Nacional de Habilitação (CNH). No Paraná o uso do véu é liberado em qualquer foto de documento e o Rio de Janeiro sofreu uma derrota recente na Justiça que permitiu as mulheres islâmicas manterem seus véus em fotos de identificação", disse o vereador Seminaldo.

Publicidade

Por meio de nota, o Poupatempo informou que respeita a reivindicação das mulheres muçulmanas de tirarem fotos com o Hijab, considerado um símbolo religioso e não um acessório, mas o Instituto de Identificação (IIRGD) da Secretaria de Segurança Pública, órgão responsável pela identificação dos cidadãos e emissão das Carteiras de Identidade, estabelece critérios para emissão dos documentos. "O véu não é proibido — seu uso na foto do documento é permitido somente por motivo de tratamento médico ou de religião. Neste caso, é necessário apresentar Comprovante da Entidade Religiosa — original ou cópia", informou em nota. "Como o próprio nome do documento diz, a Carteira de Identidade serve para identificar o cidadão. Por isso existe a restrição ao uso de véu, boina, touca, lenço na cabeça ou turbante", completou. A Assessoria do órgão citou ainda que existem limitações para outras peças de roupas e acessórios, como fardas militares, óculos escuros e até mesmo a recomendação de evitar usar roupas brancas ou muito claras. A assessoria do Poupatempo disse que "não procede a informação de que as personagens foram impedidas de tirar a Carteira de Identidade. O atendimento das duas cidadãs ocorreu no dia 8 de março sem nenhum constrangimento. A orientação religiosa foi respeitada e todo o processo ocorreu dentro da mais absoluta normalidade".

As duas mulheres muçulmanas conseguiram a emissão do certificado de religião por meio da União Nacional Islâmica (UNI) e disseram que aguardam agora uma nova data para tirar o documento.

Publicidade

Segundo o presidente do Conselho de Ética da UNI, o Xeque Jihad Hammadeh, os órgãos públicos fazem este tipo de exigência por falta de instrução, não por intolerância, ainda que exista certo preconceito com os muçulmanos. "O véu não é, como alegam na França, um símbolo religioso, é uma prática religiosa, isso é bem diferente de ser um símbolo, como um crucifixo, uma imagem, é igual a uma oração, a pessoa está em constante oração a Deus".

O Xeque explicou que o hajib define as mulheres como praticantes da religião. "O símbolo, a pessoa pode se desfazer dele, pode abandonar a qualquer hora, não interfere na religiosidade da pessoa, mas a prática sim. Como a gente define uma pessoa religiosa a partir da prática, todas as pessoas têm direito a praticar sua religião. Isso é um direito previsto na declaração de Direitos Humanos da ONU", disse.

Foto por Lucas Dantas/VICE.

Hammadeh afirmou ter conhecimento sobre a exigência do documento, mas disse se tratar de uma medida temporária feita com alguns órgãos públicos para agilizar a emissão dos Registros Gerais para muçulmanos. "Não devia ser pedido, mas nós achamos essa saída só para facilitar provisoriamente a situação dos muçulmanos na hora de pedirem os documentos até que possamos rever isso com o poder público."

O Xeque relembrou ainda um caso que aconteceu em 2010, quando a libanesa Iman Alloul, à época com 45 anos, dos quais 28 foram vividos no Brasil, se negou a retirar o véu para fazer a prova para conquistar a CNH, no Paraná. "Já tinha acontecido algo parecido, infelizmente. Já teve escândalos, a mídia cobriu, foi a pessoa que não permitiu que a muçulmana fizesse a prova do Detran com o véu e depois o próprio órgão se manifestou dizendo que não era um adereço comum, era um ato de prática religiosa".

O Xeque acredita que os muçulmanos ainda são alvo constante de discriminação religiosa em diversos países. "Existem conflitos históricos, não é de hoje, mas o Brasil ser refém disso ou pegar carona [nos casos da Europa e EUA] nisso é que não é lógico, não é coerente", concluiu. A intolerância com os religiosos é ainda pior nas redes sociais. "A religião islâmica está sendo muito bombardeada, as pessoas acham que não existem leis e dizem que os muçulmanos são isso ou aquilo". O preconceito com as mulheres mulçumanas, diz ele, é ainda pior e pedir para uma mulher muçulmana tirar o véu é como pedir para ela pecar. "É como pedir para um cristão parar de rezar".

Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter e Instagram.