A limpeza de Detroit apagou parte da história universal do graffiti

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A limpeza de Detroit apagou parte da história universal do graffiti

No final de 2014, os planos da cidade para sair da situação financeira catastrófica, que levou à declaração de bancarrota em 2013, incluíam aquilo a que se chamava de "erradicação da praga"

Este artigo foi originalmente publicado na VICE USA.

Fiquei chocado quando, no início do ano, visitei Detroit, Estados Unidos da América. Em grande parte das paredes da cidade, viam-se grandes manchas que pareciam ter-se espalhado como uma doença incontrolável. Tinta cinzenta, branca e castanha a cobrir quase todos os graffitis que antes estavam à vista. Mesmo as ruas paralelas e os becos ao longo da 8 Mile Road, a famosa fronteira na zona Norte da cidade, estavam cobertos de tinta fresca. O que aconteceu?

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No final de 2014, os planos da cidade para sair da situação financeira catastrófica, que levou à declaração de bancarrota em 2013, incluíam aquilo a que se chamava de "erradicação da praga". Consequentemente, o presidente da câmara local, Mike Duggan, desde sempre um inimigo do graffiti, criou uma força "anti graffiti" que intensificou o processo.

O município começou também a multar comerciantes que não removiam graffitis da sua propriedade. "Neste momento, o graffiti é um negócio em Detroit", diz-me o lendário graffiter local DONT. "Os funcionários da cidade são pagos para cobrir os graffitis, os comerciantes pagam multas quando deixam os graffitis nos edifícios e quem lucra com isso são as autoridades municipais".

Dequindre Cut, 2013. Todas as fotos pelo autor

Fábrica Packard, 2014

Do ponto de vista de muitos moradores e proprietários, a erradicação dos graffitis pode ser um sinal do tão aguardado renascimento de Detroit, mas, para muitos graffiters, a situação significa o fim de um ciclo inédito de criatividade. Há não muito tempo atrás, Detroit era considerada por muita gente a capital do graffiti dos EUA, talvez até do Mundo. Um enorme "recreio" com um número quase ilimitado de muros e paredes onde os graffiters podiam pintar sem serem perturbados, mesmo à luz do dia.

"Detroit era uma grande cidade-fantasma quando eu era puto", conta DROID, nascido e criado em Detroit. E acrescenta: "Se eras branco e andavas a conduzir pelas ruas residenciais, só podias estar atrás de uma coisa: drogas. Não havia literalmente nenhuma outra razão para alguém andar por essa zona da cidade, a não ser para comprar drogas, procurar sucata ou pintar muros".

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Eastern Market, 2013

Eastern Narket, 2016

Numa cidade infestada de corrupção, violência e incêndios de origem criminosa, apanhar miúdos com latas de tinta não era uma prioridade da polícia. Essa liberdade para pintar criou uma paisagem incrível. Os graffitis estavam por todo lado e, como era preciso algum esforço para chegar a Detroit se não eras mesmo da cidade, a competição local era alta, o risco era baixo e a maioria dos trabalhos eram muito bons.

Visitei a cidade pela primeira vez em 2013, numa tentativa de descobrir e documentar o maior número possível de graffitis e fiquei imediatamente apaixonado. Voltei mais três vezes e testemunhei a rápida transformação da cidade, ao explorar os seus prédios e bairros acompanhado por outros fotógrafos e graffiters.

Prédio abandonado, 2016

Elmer, Gasm, 2014

Dentro das fábricas, armazéns, escolas e centros recreativos abandonados, documentei o trabalho deixado por várias gerações de grafitters como PORAB, TURDL, ELMER e DONT, que descobriram o potencial da sua cidade muito antes de qualquer um, ou de pioneiros de outras paragens, como REVOK MSK, da Califórnia, cuja arte e ligações elevaram o nível do graffiti em Detroit.

É preciso não esquecer também artistas ambiciosos como BERG e HAELER, que procuram estar presentes no maior número de cidades possível, "vândalos" de abrangência mundial como PEAR, cuja intervenção épica com GASM, de Detroit, cobriu muros por toda a cidade, ou ainda foras-da-lei, como DROID e os seus colegas do 907, cujas letras pintadas com rolos e tags com extintores de incêndio cobriam prédios inteiros. Por vezes era até possível encontrar trabalhos do fantasmagórico KUMA, com os seus personagens carismáticos que apareciam do nada.

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Kuma, 2016

Geralmente, os graffiters de fora eram bem recebidos pelos locais. "Nunca pensei ver artistas que me inspiravam, como CES, WANE, RISK e FUTURA (de Nova Iorque), a pintarem aqui", salienta SEKT.

"A relação de Detroit com o graffiti mudou nos últimos anos", considera, por sua vez, DONT. "Quando eu era puto [no começo dos anos 90] e pintava na cidade, éramos, no máximo, uns cinco graffiters ativos. Eu achava que conhecia cada graffiti e quando aparecia um novo quase conseguia sentir-lhe o cheiro. Nos primeiros anos, tive que vender a ideia a outras pessoas de virem para Detroit graffitar. Isso mudou há alguns anos, quando começámos a assistir a uma onda de artistas de todo o Mundo a aparecerem e a quererem pintar aqui. Vias graffitis até ao terceiro andar da maioria dos prédios".

Fábrica Packard, 2013.

A mãe de todos os prédios abandonados era a fábrica da Packard. Eram 3,5 milhões de metros quadrados de construções, espalhadas por mais de 40 hectares. A fábrica fechou em 1985 e, gradualmente, todos os seus edifícios foram sendo abandonados pelos proprietários subsequentes.

A Packard foi o local onde ocorreu o infame voo do camião de lixo, serviu de set de filmagens para vários programas de Televisão e filmes como Transformers e tornou-se um destino famoso para exploradores urbanos, graffiters e outros que tais. Ao longo de décadas, muito graffiti foi pintado ao longo do complexo, numa corrida contra as forças da Natureza e sucateiros que tentavam recuperar qualquer coisa de valor, recorrendo à destruição das paredes para terem acesso aos edifícios.

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Fábrica Packard, 2014

Sempre que ia a Detroit fazia questão de visitar a Packard. Para mim, a decadência do local e, recentemente, uma maior presença de seguranças eram um sintoma da transformação da própria cidade. Agora, há poucas paredes limpas no complexo e não vale muito a pena tentar passar pela segurança para entrar.

Outras estruturas abandonadas da cidade estão, também, cada vez mais inacessíveis. Dequindre Cut, antigamente uma via manhosa ao longo do bairro Eastern Market, conta agora com uma ciclovia family-friendly que leva os transeuntes até ao lago e os graffitis ilegais que por ali proliferavam estão a ser substituídos por murais comissionados. Brewster Houses, um conjunto habitacional abandonado, que teve os prédios graffitados ao estilo pintura de guerra, foi demolido. Tal como dezenas de milhares de outras estruturas da cidade. No seu lugar, surgiram um novo estádio e diversos empreendimentos imobiliários.

Brewster Houses, 2013

A iniciativa da cidade de mandar abaixo as estruturas abandonadas, limpar os graffitis e aumentar o policiamento conseguiu espezinhar a história do graffiti de Detroit, tal como aconteceu com a cobertura dos metros de Nova Iorque nos anos 80. Como resultado, o universo do graffiti praticamente abandonou Detroit. É agora raro que gente de fora visite a cidade para pintar e as poucas paredes que restam ficaram para uso exclusivo dos locais.

Será que Detroit se tornou segura demais para o graffiti? "Não te deixes enganar. Na maioria dos bairros a situação é a mesma de sempre", esclarece DONT. E conclui: "Há um punhado de bairros em ascensão e essas áreas oferecem segurança e conveniência, o que é óptimo. Na área das artes, há mais oportunidades que nunca em Detroit e, no que diz respeito ao graffiti, bem, isso dependerá sempre dos graffiters".

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Abaixo podes ver mais fotos de Detroit. Ray Mock é o fundador do Carnage NYC e há 10 anos que documenta a cena graffiter em Nova Iorque e no Mundo, tendo já publicado mais de 20 zines e livros. Segue-o no Instagram.

Afrika, Remio, Haeler, 2016

Afri, Touch, MNC, 2013

Afri, Touch, MNC, 2016

Begr, Chub, Haeler, 2014

Nekst

Dont, Sway

Kuma, na Packard

Pear, Adze

Dequindre Cut, 2016