O sindicato secreto dos árbitros gay no Brasil
"Prefiro ser 'viado' do que ladrão, como muitos dos que hoje tomam conta do futebol brasileiro", diz o ex-bandeirinha Sérgio Cenedezi, 52 anos. Foto por Felipe Larozza/ VICE

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O sindicato secreto dos árbitros gay no Brasil

No Brasil, como no resto do Mundo, o meio futebolístico continua a ser uma coutada de puros machos. Gay não entra e menina só de vez em quando e em determinadas circunstâncias.

Este artigo foi originalmente publicado na VICE Brasil.

Ele já apitou mais de 100 jogos de equipas de primeira divisão do Brasil. Tem partidas internacionais no currículo e perdeu a conta a quantos países visitou. É um "árbitro de topo", como se costuma dizer no meio. No entanto, não se sente realizado. Há dois anos, optou por terminar uma relação com outro homem para não colocar a carreira em risco. É o preço que um juiz de futebol gay paga para ser aceite na profissão.

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"Se para um jogador, que é idolatrado por onde passa, já é difícil assumir-se, imagina para um árbitro que é insultado pelo estádio inteiro de cada vez que entra em campo?", afirma o juiz, que pediu absoluto sigilo sobre a sua identidade para falar com a reportagem da VICE Sports Brasil. Ele teme as consequências de revelar a sua orientação sexual aos seus chefes da Comissão de Arbitragem da CBF e, principalmente, aos torcedores e dirigentes de clube, que já o ameaçaram depois de jogos com decisões controversas.

Sérgio Cenedezi, 52, fiscal de linha até há quase duas décadas atrás, seguiu um caminho diferente. De 1985 a 2003, trabalhou como assistente em vários jogos de campeonatos estaduais, Brasileiro e Copa do Brasil, sem nunca esconder dos seus pares que é homossexual. "Eu sou assumido. Modéstia à parte, só trabalhei tanto tempo à beira do relvado, porque era muito bom. Senão teria sido morto", conta.

Hoje, retirado da arbitragem, Cenedezi é secretário de um tribunal de justiça em São Paulo. Guarda poucos amigos do futebol. E um desgosto. Apesar de ter sido um dos "bandeirinhas" mais requisitados da década de 90, não alcançou o posto máximo de sua antiga profissão. "Faltou colocar o escudo da Fifa no peito", diz. "Várias vezes fui cotado para receber a indicação da CBF. Mas aparecia sempre alguém com o comentário: 'Ah, ele é viado'. Pois digo que prefiro ser viado do que ladrão, como muitos dos que hoje tomam conta do futebol brasileiro".

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"Ser gay não é crime. Por isso não escondo nada de ninguém", afirma Sérgio Cenedezi. Foto por Felipe Larozza/ VICE

Embora o preconceito tenha contribuído para travar a sua ascensão ao alto escalão do apito, Cenedezi diz não se arrepender da escolha de revelar a sua orientação sexual. "Ser gay não é crime. Por isso não escondo nada de ninguém", afirma o ex-assistente, que também revela já ter saído com jogadores de grandes clubes do país. Relacionamentos extracampo, porém, enfatiza, não interferiam nas suas decisões. "As preferências pessoais jamais influenciaram meu trabalho".

Como em todas as profissões, homens gay não são novidade na arbitragem. Há até uma expressão no meio para se lhes referir: "membros do sindicato". Ainda assim, todos continuam a sofrer para exercer o ofício no terreno mais machista do futebol.

PENALIDADE MÍNIMA

Ofensas e atitudes homofóbicas costumam ser relativizadas no contexto futebolístico. Entre os homens do apito, comportamentos preconceituosos fazem parte da normalidade e estão isentos de punição. Em Junho, o árbitro Marcelo de Lima Henrique postou na sua página de Facebook uma defesa ao deputado Jair Bolsonaro: "Prefiro votar em louco do que em incentivador de boiolices, maconheiro e inimigos da família(…) Não sou politicamente correto, não apoio boiolices". O Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) entendeu que não havia motivo para abrir uma denúncia contra o árbitro por estas declarações.

"Se no Congresso Nacional, um deputado [Bolsonaro] propaga um discurso de ódio contra a comunidade gay livremente, no campo de futebol é ainda pior", diz Sérgio Cenedezi. O burburinho em torno da homossexualidade na arbitragem remonta ao fim da década de 80, quando o trio MBB chocou a sociedade da bola ao assumir publicamente a sua orientação sexual. Margarida, Bianca e Borboleta eram os nomes de guerra dos árbitros Jorge José Emiliano dos Santos, Walter Senra e Paulino Rodrigues da Silva, respectivamente.

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Margarida foi o primeiro a declarar-se. Enfrentou o então manda-chuva da Comissão de Arbitragem, João Ellis Filho, que chegou a dizer que, enquanto fosse presidente, nenhum juiz homossexual apitaria jogos. Em sua defesa, Margarida era enfático: "Antes ser lembrado como um juiz bicha, do que como um juiz desonesto". Surgia ali "o sindicato", do qual Cenedezi sempre fez parte. "Naquela época havia mais gay do que hetero no quadro de árbitros", conta.

Clésio dos Santos, o Margarida, teve de abandonar a carreira por causa do seu personagem gay. Foto: Arquivo pessoal

Em vez de amenizar a discriminação, a grande influência que o trio MBB exerceu até ao início dos anos 90 fez com que outros juízes saíssem do armário e gerou cicatrizes profundas na arbitragem. Muitos viam Margarida e os seus seguidores como detractores da profissão. Iniciou-se, então, uma verdadeira caça aos árbitros gay, curiosamente liderada por Armando Marques, ex-árbitro que sofria com gritos de "bicha, bicha!" nos estádios e insultos homofóbicos de dirigentes. Em 1998, por exemplo, o presidente do Vasco, Eurico Miranda, chamou-o de "homossexual travestido". Um ano antes, Armando Marques tinha assumido a presidência da Comissão de Arbitragem e começado uma perseguição silenciosa aos homossexuais sob o seu comando.

Mesmo casado com uma mulher há 32 anos e pai de três filhos, Clésio Moreira dos Santos acabou por ser uma das vítimas da fúria persecutória de Armando Marques. Mais velho de uma família de sete irmãos, foi abandonado pelo pai aos 11 anos. Ainda na adolescência, começou a trabalhar em teatro de rua na cidade de Palhoça, em Santa Catarina. Começou a ser árbitro de futebol e, aproveitando o talento para encenar, resolveu adoptar o personagem Margarida, em homenagem ao antigo árbitro. Entrou para o quadro da CBF em 1995 e chamava a atenção por vestir um uniforme inteiramente rosa. As suas atuações de gestos extravagantes caricaturam um árbitro gay.

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Apesar de sempre ter deixado claro que não é homossexual, este novo Margarida incomodou o ex-presidente da Comissão. "O Armando Marques mandou um recado ao presidente da Federação Catarinense [Delfim de Pádua Peixoto]: 'Avisa o seu Margarida que viado aqui só há um'. Depois disso, começou a escolher-me para jogos sem expressão, em lugares remotos. Tive de abandonar a carreira profissional", afirma Clésio, que deixou o quadro de arbitragem em 2002.

Actualmente, Margarida apita somente em jogos comemorativos. Factura mais dinheiro do que nos tempos em que era árbitro da CBF. A sua situação é emblemática: ele ganha a vida a encarnar o personagem de um árbitro gay, algo que um homossexual de verdade dificilmente conseguiria. Armando Marques foi presidente da Comissão de Arbitragem até 2005. Não teve filhos e jamais revelou a sua orientação sexual. Morreu há dois anos, mas a sua herança homofóbica ainda paira sobre a arbitragem nacional.

A TROPA DE CHOQUE DO APITO

Em 2009, o árbitro Halil Ibrahim Dinçdag foi proibido de apitar jogos oficiais pela Federação Turca de Futebol. Com base num relatório do Exército da Turquia, que o tinha dispensado dois anos antes por considerar a sua homossexualidade uma doença, a Federação alegou que ele não poderia voltar a actuar nas partidas por, supostamente, ter um problema de saúde. Durante o processo de expulsão do quadro de arbitragem, dirigentes acusaram-no de favorecer jogadores por causa da aparência. "Isso devastou a minha vida", afirma Halil à VICE Sports. "Desde então estou sem trabalho. Não consigo emprego em lugar nenhum. Nesse período, ainda recebi o diagnóstico de um cancro. Os danos físicos, morais e materiais são incalculáveis".

No fim do ano passado, um tribunal de Istambul condenou a Federação a pagar indemnização de cerca de sete mil euros a Halil por discriminação sexual. "A justiça foi feita de forma tardia, após seis anos de luta. De qualquer forma, considero a decisão uma vitória para todo o movimento LGBT", afirma o ex-árbitro, que tenta agora reerguer-se com a ajuda de amigos e milita em causas de combate ao preconceito no seu país.

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Halil Ibrahim Dinçdag foi proibido de apitar porque a sua homossexualidade era considerada uma doença. Foto: Arquivo pessoal

A realidade no Brasil não é tão diferente da Turquia. Boa parte das capitanias que comandam o futebol brasileiro é controlada por figuras ligadas a instituições militares. São dirigentes que se perpetuam no poder ao longo de décadas, muitas vezes auto-intitulando-se "coronéis". É o caso de Antonio Carlos Nunes de Lima, coronel da reserva da Polícia Militar que se manteve no comando da Federação Paraense de Futebol por 20 anos e, recentemente, foi presidente interino da CBF. Na arbitragem, o controlo militar é ainda mais rígido.

Marcelo de Lima Henrique, o árbitro que não apoia "boiolices", é sargento dos Fuzileiros Navais. Sérgio Corrêa, presidente da Comissão Nacional de Arbitragem, responsável pela escala de árbitros da CBF, ex-oficial da Aeronáutica. Os seus antecessores Edson Rezende (delegado da Polícia Federal) e Aristeu Leonardo Tavares (tenente da PM) e o seu vice, Nílson de Souza Monção, (coronel aposentado do Exército) também têm patentes de autoridade.

Não é à toa que os cursos oficiais de arbitragem seguem cartilhas quase militares. No código de conduta dos árbitros há instruções até de vestuário, como não aparecer em público com a camisa fora das calças antes dos jogos. "Querem que o árbitro passe uma imagem de sargentão, que seja o machão dentro e fora do campo", diz Margarida, que foi desaconselhado por vários colegas a assumir o seu personagem. "Diziam que eu estava a queimar o filme da classe".

Sérgio Cenedezi: "Na arbitragem, ainda existe um desprezo enorme por mulheres e homens gay". Foto por Felipe Larozza/ VICE

Num ambiente tão repressor, o machismo arraigado do futebol tornou-se política institucional da arbitragem. Em 1997, Sérgio Cenedezi foi pioneiro ao criar o primeiro curso para mulheres no Sindicato de Árbitros de São Paulo. Não sem antes enfrentar forte resistência. "Todos diziam que o lugar da mulher é no fogão, inclusive o Armando Marques. Eu quis derrubar esse preconceito. Mas a verdade é que, na arbitragem, ainda existe um desprezo enorme por mulheres e homens gay", afirma.

Procuradas por esta reportagem, comissões e cooperativas regionais de árbitros informaram-nos que não promovem qualquer campanha nem a favor nem contra homossexuais. O Sindicato dos Árbitros de São Paulo, através do director Carlos Donizeti, afirma que "como nunca tivemos denúncia [de preconceito] dos árbitros, não achamos necessário tomar nenhuma medida". A Comissão Nacional de Arbitragem, por sua vez, diz que não discrimina ninguém pela orientação sexual.

Denúncias de homofobia dificilmente chegarão aos ouvidos dos barões da arbitragem brasileira, já que, ao contrário do que acontecia há décadas atrás, não há sequer um profissional abertamente homossexual nos seus quadros. Sob o risco de boicote no mercado de trabalho, os árbitros gay, que um dia levantaram a bandeira pelo impedimento do machismo, hoje só podem resignar-se com o silêncio para manter o seu sindicato em segredo.