FYI.

This story is over 5 years old.

Crooked Men

Crimine-Infinito: a complexa estrutura da máfia calabresa

Este é o preço que se paga em busca do verdadeiro poder, do poder sobre a vida e a morte.
mafia antonio pelle vangelo jacob everett
Antonio Pelle, da família criminosa 'Ndrangheta supostamente chegou ao posto de vangelo (evangélico), um posto de alta patente cujo juramento é feito com a mão sobre a Bíblia. Ilustração de Jacob Everett.

Antonio Pelle, da família criminosa 'Ndrangheta supostamente chegou ao posto de vangelo (evangélico), um posto de alta patente cujo juramento é feito com a mão sobre a Bíblia.

pelle

Em organizações criminosas, hierarquia é tudo. Há alguns anos, o governo italiano conduziu uma investigação chamada Crimine-Infinito que revelou a complexa estrutura da 'Ndrangheta, a máfia calabresa. Considerada uma espécie de "máfia horizontal", ou uma simples confederação de diferentes clãs, a 'Ndrangheta funcionava com base numa estrutura hierárquica secreta encabeçada por um líder central, exatamente como sua congênere mais conhecida, a Cosa Nostra.

Publicidade

O corpo dirigente da 'Ndrangheta chama-se Crimine (Crime), supervisionado pelo capo crimine (chefão do crime). Seu porta-voz, o mastro de giornata (mestre do dia), passa adiante suas ordens. Abaixo deles, encontram-se os coronéis: o mastro generale (mestre geral), o capo società (chefe da sociedade), e o contabile (contador).

Na base da 'Ndrangheta estão os 'ndrine, clãs compostos por membros da mesma família (muitas vezes ampliados por meio de casamentos arranjados). Cada 'ndrina é responsável por determinado território, chamado de locale (local), que nem sempre coincide com uma zona geográfica: é possível existirem diversos destes locais em uma mesma cidade, ou múltiplas cidades em um só local. O Crimine controla todos os locais do mundo, e todos devem obedecer à risca cada uma de suas ordens.

Cada local conta com ao menos 49 integrantes, e reporta-se a um capo locale (chefe local), também conhecido como capo bastone (chefe de cajado), em referência ao tipo de cajado usado por pastores para reunirem suas ovelhas. Ele conduz as atividades criminais em seu território, faz reuniões, decide sobre a entrada de novos membros e promoções, além de lidar com conflitos. Assim como o capo crimine na organização central da 'Ndrangheta, cada capo locale é ladeado por um capo società, seu administrador-chefe; um mastro di giornata, que repassa suas instruções aos subalternos (no jargão, "passa as novas adiante"); e um contabile, que toma conta da renda proveniente de atividades ilícitas, a qual é referida como valigetta (maleta).

Publicidade

Os locais têm uma estrutura dupla: a Società Minore (Sociedade Menor), composta pelos membros de menor nível, e a Società Maggiore (Sociedade Maior), também chamada de Società Santa (Sociedade Santa), composta por seus superiores. Existem diversos graus (conhecidos como doti) na 'Ndrangheta, e a posição de cada membro nestes determina seus deveres, responsabilidades, e salário.

Na Società Minore, o grau mais baixo é ocupado pela giovane d'onore (juventude de honra), composta pelo descendente de algum chefe e um membro honorário por direito de sangue. Acima desta está o piccioto d'onore (garoto de honra), a primeira posição dada àqueles que entram na 'Ndrangheta. Ele desempenhará tarefas menores, em grande parte serviços braçais, até se graduar e chegar ao posto de camorrista (literalmente "alguém que recolhe dinheiro de extorsão") e passe a desempenhar tarefas mais complicadas. O nível mais alto da Società Minore é conhecido como sgarrista (soldado).

Entra-se na casta mais alta local, a Società Maggiore, no posto de santista (referência a tomar parte na Società Santa). Um degrau acima está o vangelo (evangélico), assim chamado por ter jurado lealdade à 'Ndrangheta com uma das mãos sobre a Bíblia (a tatuagem de uma cruz marca seu ombro esquerdo). Logo após vem o trequartino (três quartos), que tem acesso privilegiado a três quartos da organização (marcado com uma cruz no ombro direito e uma rosa esmeralda na sola do pé).

Publicidade

Os graus seguem: quartinho (um quarto), padrino (padrinho), crociata (cruzado), stella (estrela), bartolo (as origens deste título são desconhecidas), Mammasantissima (Mãe Santíssima), e infinito (infinito). A Società Maggiore culmina na figura do Conte Agadino. O nome é uma provável referência ao Conde Ugolino, que Dante retrata devorando seus próprios filhos no Inferno. O chefe da 'Ndrangheta talvez devore seus filhos, venda-os, sacrifique-os, sem ter de lidar com qualquer tipo de vingança. Chegar ao topo da 'Ndrangheta significa obter o poder de matar e trair o próprio sangue.

Até certo ponto da hierarquia da 'Ndrangheta, cada grau conta com uma referência religiosa e identifica-se com determinado santo italiano. (O picciotto é associado com Santa Liberata, o camorrista com Santa Nunzia, e o sgarrista com Santa Elizabeth).

É importante lembrar que o ritual de iniciação da 'Ndrangheta é chamado de "batismo". Os membros colocam-se em uma posição assemelhada a de uma ferradura e recebem o candidato ao batismo de um "guarantor", uma espécie de padrinho que dá seu aval pessoal pelo possível membro e a autenticidade de suas intenções para entrar no clã. Um capo società é responsável pela condução do rito, fazendo perguntas ao iniciado e lhe recitando os códigos de honra que terá de seguir ao custo de sua vida. O batismo da máfia é um "batismo de sangue": o dedo de um novo membro é cortado com uma faca afiada, de forma que uma gota de seu sangue caia sobre um "santinho" com a imagem de São Miguel Arcanjo – considerado o padroeiro da 'Ndranghueta – que então é levemente queimado em uma das pontas. Ao final da cerimônia, um novo "homem de honra" é criado. (Cada promoção para um grau mais alto exige seu próprio ritual.)

Publicidade

Parece inacreditável, mas mesmo hoje, enquanto escrevo isto, jovens estão tomando parte em organizações criminosas através de rituais arcaicos. Não só na Itália, mas no mundo inteiro.

Na noite de de 15 de agosto de 2007, na calma cidade de Duisburg, Alemanha, o ato final de uma briga de 16 anos se deu. Os Nirta-Strangio e Pelle-Vottari – dois dos mais poderosos clãs de San Luca, a vila calabresa que serve de fortaleza para a 'Ndrangheta – estiveram em conflito desde 1991. Tudo começou com uma peça de Carnaval: durante as festividades, alguns dos caras do Nirta-Strangio jogaram ovos e farinha na frente de um bar administrado pelos Pelles, sujando o carro de um dos membros da família Vottari. Isso logo foi interpretado como uma afronta, já que todos sabiam que os Strangios estavam tentando expandir seu domínio sobre a região. Então começou uma guerra que resultou em mais de uma dúzia de mortes no decorrer da próxima década e meia. Os últimos assassinatos ocorreram naquela noite em Duisberg, quando os Nirta-Strangio buscaram vingar uma morte ocorrida alguns meses antes. Seis pessoas ligadas às famílias Pelle-Vottari foram mortas, quase todas muito jovens, em frente a um restaurante italiano chamado Da Bruno, onde uma das vítimas havia acabado de comemorar seu 18º aniversário. Um santinho queimado com a imagem de São Miguel foi encontrado no bolso do convidado de honra levou os investigadores a deduzirem que o restaurante provavelmente havia sido palco de um rito de iniciação da 'Ndrangheta. Dentro do local, havia uma estátua de São Miguel, e em um quarto sem janela nos fundos, diversas imagens da Madonna di Polsi (Nossa Senhora de Polsi, louvada por membros da 'Ndrangheta) penduradas na parede, como que observando uma mesa com 12 lugares. A motivação dos assassinatos e a cerimônia ocorrida em Duisburg haviam surgido a quase 2 mil quilômetros de distância dali, na pequena cidade de San Luca. Regras, códigos e rituais viajam de San Luca até a Alemanha, e o resto da Europa, e também para os Estados Unidos – qualquer local no mundo para o qual a 'Ndrangheta tenha esticado seus tentáculos.

Publicidade

***

Fazer parte de uma organização criminosa significa ser integrante de uma estrutura que é, em partes, negócios, ordem religiosa, e exército antigo (como o exército romano, organizado em legiões). Lendas e códigos abundam na máfia, que os usam para construir uma identidade coletiva para seus membros. Rituais são úteis porque oferecem regras a um mundo que não as possui: as famílias criminosas italianas são consideradas as organizações subterrâneas mais confiáveis do mundo porque tem suas próprias leis, diferente da jurisprudência, voltada para o comportamento e disciplina para operações ilegais (que, por definição, carecem de regras).

Pode parecer paradoxal que um país conhecido por sua absoluta falta de regras tenha a organização criminosa mais regulamentada do mundo. Os mafiosos são conservadores, tradicionais – bastante diferentes de suas contrapartes modernizadas e emancipadas ítalo-americanas. Joe Pistone ("Donnie Brasco"), o agente do FBI que se infiltrou na Máfia de Nova York, afirma que quanto mais os mafiosos se americanizam, mais se transformam em meros valentões, falhando em compreender que não se comete um crime apenas pela riqueza, porque se você quebra as regras da máfia, você também ferra com seu estilo de vida.

Nos anos 70, Vincenzo Macri, sobrinho e herdeiro designado de Antonio Macri, chefe da 'ndrina de Siderno (na Calábria) foi "rendido" – ou seja, banido da organização – porque seu comportamento não condizia com de um bom 'Ndranghetista (um membro da 'Ndrangheta). Vincenzo andava por aí em uma Vespa, de camiseta e shorts, sendo, por fim, substituído. Mesmo hoje um 'Ndranghetista deve respeitar rigorosamente determinados parâmetros: não pode agir como um playboy, e deve ter cuidado para não causar problemas, evitando brigas e atos de idiotia. Ou seja, ele não deve chamar atenção desnecessária.

Publicidade

Sempre me impressionei com o espírito de sacrifício absoluto demonstrado pelos chefes de organizações criminosas. Muitas vezes me peguei pensando como um homem pode aguentar as condições de uma prisão de segurança máxima (em que a lei italiana exige que chefões da máfia sejam mantidos) por décadas a fio. Você consegue compreender ao ver como os chefões vivem quando livres, ou pior, como fugitivos: forçados a viver em pequenos espaços confinados, em bunkers sem janelas, nos quais não podem ser encontrados pelos agentes da lei.

A Itália tem mais bunkers que qualquer outro país no mundo. Existem locais como a área ao redor da cidade de Locri, na Calábria, em que eles fazem parte das vidas cotidianas de todos. Famílias constroem bunkers quase que automaticamente, preparando-se para o pior: com sorte não será necessário, mas é melhor ter um por perto. Bunkers fazem parte das plantas de novas casas. É como se bons pais já pensassem no futuro de seus filhos aos lhes fornecerem um local seguro para passarem seu tempo como fugitivos. Além do que, algum parente, cunhado, primo ou tio podem precisar. O mafioso sabe que, mais cedo ou mais tarde, sua vida fora da prisão só será possível se ele souber como se esconder.

O bunker, porém, é mais uma mentalidade do que um esconderijo – a mentalidade de se viver com pouquíssimo espaço, de nunca sair, de nunca ver a luz do dia. É como a toca de um animal. É um espaço minúsculo humanizado apenas por uma coleção escassa de itens pessoais: santinhos, revistas pornográficas, catálogos de carros e relógios – coisas que provam que o poder do mafioso é interno e não externo. O chefão tem que se dar por satisfeito com fotos daqueles relógios e carros de luxo, comprando-os com os olhos, porque ele nunca poderá deixar sua toca.

Este é o preço que se paga em busca do verdadeiro poder, do poder sobre a vida e a morte.

Tradução: Thiago "Índio" Silva