‘Sob a Aparente Desordem’ propõe uma retomada do espírito combativo do skate
Leo Fagundes - fs tail; Foto: André Calvão

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‘Sob a Aparente Desordem’ propõe uma retomada do espírito combativo do skate

Dirigido por Murilo Romão, o vídeo refuta o senso comum da técnica esportiva e coloca os skatistas a flanarem pela cidade, descobrindo picos ociosos e suas possibilidades.

O skatista profissional Murilo Romão e a crew da qual ele faz parte acreditam na prática do skate como um lance de contracultura. Nesses tempos de campeonatos e atletas bancados por grandes esquemas, eles retomam aquela paixão marginal das antigas em busca de quebrar a mecânica da vida cotidiana nas cidades. E fazem isso explorando a multiplicidade do mobiliário urbano, como forma de contestar uma tendência de reduzir o skate a um previsível esporte de pistas. Essa perspectiva já dava o tom do vídeo Flanantes, dirigido pelo Murilo, e agora ressurge em Sob a Aparente Desordem, que estreamos com exclusividade aqui no VICE Sports nesta segunda (26).

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Se no primeiro título o conceito de "flanar" foi buscado nas considerações do jornalista literário brasileiro João do Rio, dessa vez o exercício imaginativo se respalda nas ideias da urbanista Jane Jacobs. Para o João do Rio, as ruas são inspiradoras aos espíritos vagabundos e cheios de curiosidades. Para a Jane Jacobs, o uso compartilhado das calçadas garante a manutenção e segurança nos espaços públicos. "Na nossa visão, essa multiplicidade de usos inclui o skate, que pode até ser comparado com a dança, uma dança complexa que Jane chega a chamar de 'balé da boa calçada'", argumenta Murilo.

Em seu clássico livro Morte e Vida nas Grandes Cidades, Jane não faz menção alguma ao skate, até porque a obra data de 1962, mas Murilo enxerga "muita relação em nossa prática com as ideias dela de apropriação das ruas". E desenrola: "De uns tempos pra cá, depois de ler bastante sobre arquitetura e urbanismo, comecei a sentir a necessidade de mostrar a minha visão particular do skate, um skate mais social, voltado à recuperação e ocupação de lugares ociosos, a dar novos usos pra cidade e produzir questionamentos sobre o espaço público. As nossas sessões de skate pela cidade nos transformam a todo momento. Essas experiências citadinas nos levam a reflexões que tentamos colocar nos vídeos."

Peter Volpi, wallride. Foto: Murilo Romão

Sob a Aparente Desordem levou cerca de dois meses para ficar pronto. A princípio, era para ser um vídeo bem curto, de seis minutos, mas a exploração das calçadas de São Paulo inspirou muitas sequências boas ao longo do processo, e o vídeo acabou ficando com 15 minutos. A primeira cena de skate que se descortina é do Luiz Fernando "Apelão" mandando um ollie nervoso no Parque Dom Pedro. Além de ter filmado boa parte do vídeo, ele exibe uma facilidade surreal para andar de skate, com uma base sutil e agressiva ao mesmo tempo. A captação bem aberta, que conferiu poética ao take, rolou de cima da passarela que dá acesso ao terminal. "É uma imagem de que gosto bastante, pois retrata bem essa ideia do skate mais performático mesmo", comenta Murilo.

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Entre outras partes que se destacam no vídeo, vale prestar atenção ao style fluido do Diego Wanks aka Didi, que aposta em manobras simples, porém mandadas numa alucinante velocidade. Outro mano que aparece destruindo é o Gustavo Dias, o Guguinha. Dono de manobras ignorantemente altas, o cara consegue desbravar picos impensáveis para alguns. Já o Leonardo Fagundes é o mais cabuloso aqui. Na primeira tentativa, ele não chega nem perto do acerto. Logo na seguinte, vem a conclusão perfeita da manobra. "Ele não dá dicas do acerto", avalia o diretor. "É sempre bom ficar esperto com o Leo, pois ele acerta a manobra do nada e é muito fácil errar na filmagem ou até perder."

Luiz Apelão, ollie. Foto: Murilo Romão

Rolaram também umas sessões na região da Cracolândia, uma locação que, segundo ele, toda vez gera situações surpreendentes. "Os caras pegam o skate pra dar um rolê e sempre saem umas manobras. Certa vez, uma usuária pegou meu skate e deu um fakie varial flip perfeito. Não filmei porque eles não curtem muito essa exposição, mas fiquei bem impressionado, e, ao mesmo tempo, triste, pois vi que aquela menina já foi uma ótima skatista", diz.

Outra fita curiosa aconteceu durante uma sessão noturna que eles tentaram gravar na 7 de abril. "Uns bancos novos de madeira foram colocados lá. Estávamos começando a andar, e por volta da meia-noite avistei dois carecas gigantes, um deles com um cabo de aço na mão", conta. "Na hora pensei que eram skinheads, e já comecei a planejar a fuga. Um deles percebeu e me disse para não correr, senão me daria tiros, e colocou a mão na cintura mostrando estar armado. Aí ficamos lá e conversamos com os caras. Eles estavam prezando pelos bancos, tipo seguranças. Achei muito estranha a maneira como chegaram. Depois de conversarmos com eles, entramos no acordo de andar apenas quando o mobiliário estivesse pronto. E, no fim do papo, um deles, o armado, ainda ofereceu os seus serviços para nós. Sinistro."

Como se vê, a arte de flanar intuitivamente pelas ruas pode oferece altas aventuras e possibilidades criativas, mas, também, algumas tragicomédias.

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