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Salvando o Sudão do Sul

Nem Consegui Pegar Minha Bolsa

Encontramos o líder guerrilheiro Machar, escondido no Sudão do Sul.

Foto por Tim Freccia

A VICE foi ao Sudão ver como uma das civilizações mais ricas e avançadas durante os séculos de colonialismo na África transformou-se num país castigado por golpes de Estado, ditaduras e desmandos, mergulhado numa série de conflitos intermináveis após a independência, em 1956. Nesta série de 22 capítulos, Robert Young Pelton e o fotógrafo Tim Freccia mostram de perto o que acontece num dos maiores países do continente africano, rico em petróleo e guerras, rachado ao meio em 2011, e com um futuro incerto pela frente.

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Os eventos que levaram à recente instabilidade no Sudão do Sul conheceram seu clímax em 14 e 15 de dezembro de 2013. Em meio à crescente tensão no governo no dia 14, a reunião do Conselho de Libertação Nacional, relacionado ao Movimento Popular pela Libertação do Sudão (MPLS), se tornou palco de um grave incidente. O então presidente Salva Kiir acusou de traição o vice-presidente Riek Machar, que ocupava um assento próximo a ele na mesa de reunião.

 “Em virtude dos recentes acontecimentos, nos quais alguns companheiros desafiaram abertamente minhas decisões, devo adverti-los de que este comportamento é equivalente à indisciplina, o que nos levará de volta aos dias do rompimento de 1991.” (Segundo o site de notícias independente southsudannation.com).

No dia seguinte, os líderes da oposição (Machar, o secretário do MPLS Pagan Amum e Rebecca Nyandeng, viúva de John Garang)boicotaram publicamente a reunião. Kiir imediatamente classificou a atitude como tentativa de golpe e ordenou que fossem presos diversos membros do gabinete que haviam sido destituídos de suas funções no verão anterior. O presidente também exigiu o desarmamento de todos os membros do Batalhão Tigre (a guarda presidencial, baseada em Juba)e rearmou os membros nuer. Seguiu-se um banho de sangue que logo se espalharia até regiões historicamente problemáticas como Bor, estendendo-se por meses. Parasua própria preservação, comandantes nuer se uniram a Machar, e acordos políticos se tornaram alianças tribais.

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Em 19 de novembro, o comandante nuer Peter Gadet atacou Bor e tomou o controle de bases do EPLS, aparentemente apoiado por Machar, embora os dois tenham tido suas diferenças no passado. Agora ninguém podia negar: o Sudão do Sul estava oficialmente em guerra, e os tradicionais mecanismos de manutenção da paz, como a ONU, a União Africana e a Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento não tinham os meios – ou a coragem – de intervir.

Uma evacuação em massa de estrangeiros começou dois dias após o ataque de Gadet a Bor, quando uma divisão americana tentou entrar na cidade e foi recebida com violência pelas tropas rebeldes de Gadet. Estrangeiros, membros da ONU e de ONGs estavam sendo atacados pelas pessoas que trabalharam tão duro para salvar.

Em janeiro de 2014, organizações como a ONU e a International Crisis Group estimaram que, durante os primeiros dez dias de confrontos em Juba, combatentes dinka haviam massacrado cerca de 10 milpessoas, a maioria nuer. A princípio, muitos consideraram as estimativas exageradas, mas a dura realidade veio à tona quando as Organizações Unidas declararamque o conflito havia resultado em mais de 500.000 refugiados. Dia 11 de abril, a UNICEF advertiu que a região corria sério risco de passar por um período de fome que poderia resultar na morte de até 50 mil crianças.

Em 10 de janeiro, Mayom e Bentiu foram saqueadas e incendiadas por rebeldes. Malakal havia sido arrasada pela segunda vez e uma enxurrada de morteiros, helicópteros de guerra e intensos combates haviam arrasado Bor. No final de dezembro, Uganda lançou bombas contra as tropas de combatentes rebeldes nos arredores da capital. Segundo afirmaram, a intenção era prevenir uma limpeza étnica. Enquanto atacavam as cidades, os nuer, por sua vez, também insistiam que estavam prevenindo uma limpeza étnica. Tratava-se de um período novo e ainda mais sombrio no Sudão do Sul. Quando todos cometem genocídio, as coisas se tornam confusas. O país não só estava em guerra, estava se autodestruindo.

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O governo de Juba recuperou Bor em 18 de janeiro, com a ajuda de tropas melhor equipadas e treinadas vindas de Uganda. Cinco dias depois, um acordo de cessar-fogo foi assinado. Na prática, as tropas do governo ficaram confinadas na cidade enquanto rebeldes se reuniam e aprimoravam seus pontos de ataque. Treinados e apoiados pelos Estados Unidos, os soldados ugandeses repentinamente se tornaram os vilões da história, quando a ONU confirmou que, em fevereiro, tinham sido eles a utilizar bombas de fragmentação. A princípio, elesnegaram sua presença no Sudão do Sul, mas foram finalmente forçados a reconhecê-la quando seus recursos se esgotaram e tiveram que pedir ajuda financeira ao governo de seu país. Kiir prometeu devolver os $48 milhões que Uganda havia gastadopara mantê-lo no poder.

Tanto os nuer, confinados em campos de refugiados, quanto os milhares de rebeldes posicionados nas periferias das cidades tinham todos os motivos para temer um massacre de imensas proporções.

No começo de fevereiro, Machar anunciou que os sete membros do MPLS detidos por Kiir não faziam parte da “nova rebelião” que liderava. No mesmo mês, para que o vice-presidentetivesse certeza de que essaera uma questão pessoal, o presidenteordenou que suas tropas destruíssem Leer (a cidade natal de Machar)no estado de Unidade. Como um triste déjà vu, trabalhadores da indústria petrolífera foram atacados no mesmo lugar.

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A essaaltura, só um milagre podia salvar o Sudão do Sul.

As coisas também não estavam indo tão bem para Machar e seus simpatizantes nuer. Na época em que cheguei a seu quartel-general secreto, os rebeldes – ou “resistência”, como prefere dizer – haviam perdido o controle de Bor, Bentiu e Malakal. Por temerem desencadear outro massacre, também não podiam entrar em Juba. Cerca de 60.000 pessoas, a maioria da etnia nuer, foram abrigadas em bases da ONU, consumindo os recursos da organização no país. A única esperança do vice-presidente, pelo menos a seu ver, era tomar os campos de extração de petróleo à força a fim de tentar negociar seu regresso.

Durante as negociações organizadas pela Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento, ficou clara a vantagem de Kiir sobre Machar – não no hotel em Adis Abeba onde os encontros diplomáticos estavam acontecendo, mas na mídia. O governo do Sudão do Sul havia retratado Machar, com sucesso, como um fugitivo desesperado.

No centro, Salva Kiir, presidente do Sudão do Sul, em discurso transmitido pela televisão em 16 de dezembro de 2013. Kiir afirmou que o exército havia impedido um golpe de estado orquestrado por soldados de Riek Machar. Em 19 de dezembro, o país estava em guerra. Foto: AP Photo/South Sudan TV

Quando me encontrei com a esposa de Machar, Angelina Teny, a guerra não me parecia mais tão grande e confusa. Apesar de sua educação e histórico político, é com prazer que ela cozinha e serve comida às pessoas do acampamento. Embora tenha sido Ministrade Energia e Mineração, sua perspectiva quanto aos eventos recentes era bem mais pessoal que política.

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Ela e Machar vestem uniformes iguais, verdes. A visão deste feliz casal de rebeldes conversando lado a lado me passa a imagem de Sr. e Sra. Che Guevara na savana. Mas a verdade era que Angelina Teny só tinha um vestido em seus pertences. Segundo me contou, o uniforme, grande demais para ela, era sua única outra roupa. Era a roupa que vestia quando fugiu. A educação de Teny transparecia mesmo quando descrevia os eventos que obrigaram o casal a se refugiar.

 “Nem consegui pegar minha bolsa”, diz, ficando mais tensa. “Nós estávamos de carro e havia pessoas na nossa frente lutando nas barricadas. Um homem levou um tiro bem na minha frente.” E, com as mãos, mostra a distância entre ela e o tiroteio.

 “Ligaram de casa, apavorados porque estavam usando um tanque para derrubar a parede dos fundos. Mataram todos os que estavam na casa.” Ela para e começa a engasgar. “Mais de 500 pessoas foram mortas. Caçadas e assassinadas. A maioria era nuer.”

Teny está sem palavras. O pequeno gerador para de funcionar.

“Estamos sem combustível para o gerador”, explica.“Eles vão ver se conseguem na cidade. Que ironia pensar em falta de combustível em um país tão rico em petróleo.”

Tanto o “Dr. Riek” – como é chamado pela população – quanto sua esposa são, ao mesmo tempo, completamente ocidentais e completamente africanos, mas há algo antigo e misterioso por trás de suas máscaras de profissionalismo e de seus interesses.

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Fora das instalações do acampamento, está um senhor de idade discursando apaixonadamente. Assim como o pai de Machar, este senhor é um lanceiro. Um homem que tem mais que uma simples influência política. Um homem que tem a atenção completa de seus companheiros. Um homem que tem o poder de forjar o metal com fogo. Um homem que tem influência espiritual sobre seus irmãos.

Vestindo roupas tradicionais, o lanceiro trouxe um belo touro esfolado. Traduzem para mim seu discurso em nuer. Ele está castigando os soldados que estão fugindo de Juba e Bor a fim de se distanciar das tropas de Kiir.

 “Essa retirada foi um problema”, afirma o lanceiro. “De hoje em diante, não recuaremos mais! Já é hora de Kiir ir embora. Deus está do nosso lado. Agradecemos a Deus por enviar-nos Riek e conduzir-nos à vitória.” E deleita a multidão manejando sua lança.

 “Este mês é uma boa época para lutar. Quando foi a última vez que fugimos dos dinka? Vocês parecem um bando de bebezinhos. Vocês vão virar escravos se desistirem de seu país.”

Para enfatizar sua colocação, cortou uma artéria do animal amarrado, que sangrou lentamente em uma torrente de vermelho brilhante.

O senhor invoca o Exército Branco, força que surge cada vez que os nuer são ameaçados por outras tribos. Uma força que existe apenas para gerar violência. Uma força ligada a Deus por intermédio de profetas, que vivem a menos de duas horas em uma colinagigante que outrora era considerada o centro sagrado da cultura dos nuer.

Descubroatravés de Machot que Machar vem se encontrando regularmente com o mais novo profeta, um homem que tem visões e instrui o vice-presidentee seus generais quanto às estratégias a se adotar. A força militar de Machar não é nada se comparada ao poder dos milhares de nuer armados, prontos para destruir vilarejos inteiros a qualquer momento. O impulso que os leva a matar e os métodos para fazê-lo não vêm de nenhum manual militar, mas de videntes e de antigas canções de guerra.

De acordo com documentos divulgados pelo WikiLeaks, três anos depois de firmado o Amplo Acordo de Paz, em 2005, Machar encontrou-se em segredo com o governo de Cartum para discutir o que poderia acontecer caso Salva Kiir fosse assassinado. O documento descreve uma reunião na qual o líder nuere o segundo vice-presidente do Sudão, Ali Osman Taha, concordam com a nomeação de Machar à presidência do Sudão do Sul caso Kiir, de algum jeito, tivesse um fim violento. Machar também garantiu financiamento para milícias em Equatória, no Alto Nilo e no estado de Unidade.

A paz impediu Machar de tomar o controle sobre o petróleo e fomentou seu desejo de saquear seu próprio país. Se a democracia e a razão não funcionaram, ele tentaria a guerra.

Tradução: Flavio Taam

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