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Salvando o Sudão do Sul

O Continente Sombrio

O segundo capítulo da série de Robert Young Pelton e Tim Freccia mostra a obsessão e a inocência ocidental perante o grande continente, a África.

Todas as fotos são do Tim Freccia.

A VICE foi ao Sudão ver como uma das civilizações mais ricas e avançadas durante os séculos de colonialismo na África transformou-se num país castigado por golpes de Estado, ditaduras e desmandos, mergulhado numa série de conflitos intermináveis após a independência, em 1956. Nesta série de 22 capítulos, Robert Young Pelton e o fotógrafo Tim Freccia mostram de perto o que acontece num dos maiores países do continente africano, rico em petróleo e guerras, rachado ao meio em 2011, e com um futuro incerto pela frente.

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Não acredite em praticamente nada do que você ouve ou lê sobre a África, sobretudo no que se refere à diversidade cultural, peculiaridades étnicas ou suas fronteiras. Essas informações, em geral, cumprem intenções políticas e sua fonte é normalmente algum alienado, ou alguém com a noção equivocada de que a salvação da África pode se dar em algum momento imaginado no futuro. Esqueça de tudo e seja honesto: a África é um país, ou, pelo menos, é tratada como se assim fosse pela maior parte do mundo, independente de o quão politicamente incorreto seja afirmá-lo. A África é um mercado e um atrativo; é um gênero cuidadosamente analisado de moda, música e turismo, e, acima de tudo, é e sempre foi uma obsessão do Ocidente. Trata-se do lugar que alguém está sempre tentando salvar.

Tecnicamente, a África é no mapa um caldeirão de 54 nações repleto de brancos, negros, marrons e amarelos de todas as religiões e crenças, todos se comunicando em tempo real via internet em cyber cafés. Auras místicas, disputas tribais indecifráveis, facões e munições. É também complexa, vasta e em constantes e rápidas mudanças. Mas, no fim das contas, para sermos sinceros, para muitos de nós, trata-se unicamente de “África”.

As fronteiras gravadas cuidadosamente em mapas atuais do vasto continente nada têm em comum com as tribos e civilizações que continuam a governá-lo. Em vez disso, são remanescentes da ganância de estrangeiros, de suas boas intenções e guerras brutais. Para completar nossa jornada, precisaremos falar com pessoas que carimbarão nossos passaportes, ignorar regras de diplomacia e falar com todo tipo de rebelde e ativista sobre as fronteiras africanas efêmeras e antigas separações culturais. Isto é particularmente relevante, dado que nosso destino final, o Sudão do Sul, encontra-se dentro das mais novas linhas do mapa. Nossa missão é encontrar o esconderijo de Riek Machar, vice-presidente deposto, e ouvir sua versão da verdade. “Assustadora” é uma palavra que sequer chega a começar a descrever a tarefa que nos espera.

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A África atraiu o místico, o histérico, o ganancioso, o bem-intencionado e, certamente, o brutal desde o interesse de Ptolomeu sobre a fonte do rio Nilo. Até o começo dos anos 1970, a maioria dos mapas ainda apresentava áreas em branco marcadas com frases como “Dados não fornecidos” para demarcar grandes pedaços de terra onde satélites ou fotos aéreas não conseguiam penetrar através das nuvens. Essas áreas, contudo, foram habitadas desde a aurora do Homo sapiens. Como é possível o suposto berço da humanidade ter se tornado tão sombrio e sem esperança em um espaço de tempo tão relativamente curto?

A busca dos europeus pela fonte do Nilo em meados do século 19 desencadeou uma histeria equivalente à loucura da Corrida Espacial nos anos 1960. Quem seria o primeiro a descobrir a fonte do Nilo? Que glórias aguardavam as almas corajosas que desafiariam os obstáculos primordiais da África? Apesar do sentimento de desbravamento, os exploradores enviados pela Real Sociedade Geográfica do Reino Unido simplesmente seguiram as já desgastadas rotas de escravos usadas pelos árabes. Quando oportunistas mais destemidos localizaram, em Burundi, o pequeno riacho que abastecia o antigo Nilo, pareciam terrivelmente animados. Os nativos não se importavam com esse tipo de coisa, queriam saber o que havia ali para eles. Descobrir a África parecia uma obsessão estranha para aqueles que ali viviam.

Os exploradores britânicos foram parados por enormes ilhas flutuantes de vegetação quando chegaram aos vastos pântanos do atual Sudão do Sul. Apesar de convencidos de que o cenário à frente era impenetrável, membros da tribo local Nuer simplesmente seguiram remando em frente. Para os de fora, a África era – e de certo modo ainda é – um pântano, deserto ou floresta, todos impenetráveis. Para as tribos que ali tinham vivido por milênios, esse era apenas seu lar.

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Soldado e bebê na base de Riek Machar perto de Akobo, Sudão do Sul.

A África só foi um mistério para os de fora, não para as aproximadamente 7.400 tribos conhecidas que habitaram o continente por séculos. De fato, algumas dessas tribos foram completamente dizimadas; outras, como as que vivem no atual Sudão do Sul, sobreviveram de modo precário. Líderes corruptos e regimes (persistentes, embora instáveis), obviamente, só fizeram aumentar os problemas no continente. Tome por exemplo Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, presidente da Guiné Equatorial, na África Central. Antes, uma terra de águas paradas conhecida como Fernando Pó, Guiné Equatorial, é agora a nação mais rica da África per capita, segundo o FMI e o Banco Mundial. Isso aconteceu em razão de sua abundância em reservas de petróleo até então inexploradas.

Encontrei-me com o Presidente Obiang em 2005, antes da eclosão da indústria petrolífera no país. Ao discutir sobre a riqueza recém-descoberta da Guiné Equatorial, Obiang contou que uma de suas principais preocupações era preservar a identidade cultural da população relativamente pequena de 722 mil habitantes com a entrada do capital referente a 1,1 bilhões de barris de petróleo. Segundo ele, a riqueza vinda da descoberta do petróleo é uma maldição, pois sabia que ela “destruiria” seu país. Tal dilema existencial não impediu o aflito presidente e sua família de guardar alguns bilhões para si (só por precaução, claro). O que Obiang quis dizer é que a África é rica. A África é populosa. A África é o lugar onde se encontra a maior parte dos recursos naturais e de terras férteis do planeta, prontos para serem explorados. No fim, serão os africanos a colher os benefícios.

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De acordo com estimativas da ONU, nos próximos 100 anos a população africana quadruplicará e espera-se a participação do continente na economia mundial duplique. O PIB das nações africanas cresce atualmente mais de 4% ao ano. Com as descobertas de recursos naturais em um continente quase três vezes maior do que os EUA, as possibilidades são infinitas.

O estereótipo de que a África é “pobre”, “atrasada” e “assustadora” deve então ser contestado. A origem desse equívoco é complexa. Seria por causa da desigualdade na distribuição de renda no continente? (O que, em comparação, faz com que movimentos como o Occupy Wall Street pareçam performances artísticas.) Ou porque nós, ocidentais, assim queremos, para então salvá-la? Seria por causa da “culpa branca”, demonstrada por meio das milhares de propagandas e instituições de caridade que trazem ao nosso consciente coletivo a pobreza, doença, violência e analfabetismo da África?

A África sempre foi rica. Antes da colonização, africanos, árabes e europeus simplesmente tomavam para si o que queriam. A escravidão era uma maneira conveniente de lucrar o máximo em uma área mínima, um sistema tão eficiente que foi importado em grande escala para abastecer o sucesso do Novo Mundo.

Nos arranjos após a Segunda Guerra Mundial, a África foi devolvida pelos Aliados àqueles que seriam seus donos de direito. Não foi surpresa quando se revelou que esses homens eram fantoches dos antigos colonizadores. O pensamento recorrente dos anos 1970 e 1980 era: se um governante africano não pode ser comprado, pode ser deposto ou morto.

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A Rússia agitou a situação no fim da Guerra Fria, incitando dezenas de golpes, contragolpes, conflitos civis e guerrilhas. A CIA respondeu fornecendo armas a contrarrevolucionários e ditadores. Foram guerras sujas que resultaram em guerras ainda mais sujas, que, por sua vez, geraram limpezas étnicas e chacinas. Juntando-se a isso a falta de estabilidade, desencadearam-se males de todo tipo, desde a caça furtiva e destruição de terras a epidemias e fome. No começo dos anos 1980, a África despencou do que era mera pobreza ao apocalipse.

Grupo de soldados desertores do Exército Popular de Liberação do Sudão em Akobo. 

Mas quase nada disso foi visto pelo grande público até que certo músico irlandês reacendeu a antiga obsessão pela África. No começo dos anos 1980, o cantor, compositor e futuro ativista musical Bob Geldof já tinha alguns discos lançados e vivia com a crescente frustração sobre o que fazer de sua vida. Em outubro de 1984, ele e outras milhões de pessoas assistiram ao documentário da BBC de Michael Buerk sobre a fome em Korem, Etiópia, após o conflito que dizimou o país.

Tocado, como muitos outros, pelas imagens de sofrimento mostradas no filme, Geldof não quis focar nas causas da fome: interferência russa, engenharia social, décadas de guerra, corrupção, colapso de infraestrutura e desastres ambientais. Geldof viu pessoas famintas e quis alimentá-las. Para isso, só precisava que as pessoas se importassem, então, escreveu uma canção.

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Em 1984, Gedolf e o escocês James “Midge” Ure escreveram e produziram a canção Do they know it’s Christmas? (em tradução livre, Será que eles sabem que é Natal?). Com versos como “Há um mundo além de sua janela / E é um mundo cheio de horror e medo” e “Os sinos de Natal que soam aqui / São o ressoar dos sinos da desgraça”, não podemos dizer que a cantiga interpretada por boy bands e cantores pop dos anos 1980 era profunda ou instrutiva sobre os infortúnios da África, mas o refrão viciante de Feed the world parecia funcionar. O vídeo e a letra não mostravam nenhuma imagem dos africanos que a canção se propunha a ajudar.

Contando com nomes como Boy George, Bananarama, Sting, Simon Le Bon, Bono e George Michael, a canção se tornou o segundo single mais vendido na história do Reino Unido, com 4 milhões de cópias vendidas e lucro de 8 milhões de dólares.

Inspirado pelo sucesso de Geldof, o empresário Ken Kragen quis repetir o conceito de uma canção pop para a arrecadação de fundos para vítimas da fome. Kragen decidiu então organizar um coral de superestrelas que resultou na canção We Are the World, escrita por Michael Jackson com Lionel Richie e produzida por Quincy Jones. Os rendimentos das vendas do single iam para a fundação USA for Africa. Juntos, a canção e outros eventos conseguiram arrecadar impressionantes 100 milhões de dólares. O público nunca percebeu que Bob Dylan sequer mencionava a fome na África quando cantava “Estamos salvando nossas vidas / Nós fazemos um dia melhor / Só eu e você”.

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Em 13 de julho de 1985, Geldof e Ure produziram o Live Aid, show de 16 horas de duração com a missão de arrecadar fundos para aliviar a fome na Etiópia e na atual Eritreia. Com um palco em Londres e outro em Nova York, o público total foi de 175.000 pessoas, enquanto mais 1,5 milhões assistiam à transmissão ao vivo dos dois palcos na televisão.

De qualquer modo, a ideia de uma canção pop na conscientização sobre um desastre foi um sucesso – prova de que jovens e a cultura pop podem inspirar mudanças. Poderia-se dizer que o Live Aid teve menos impacto na Etiópia em particular do que na África em geral, no sentido de que, de uma hora para outra, querer ajudar se tornou algo legal, embora a essência e o significado dessa ajuda não sejam claros. O logo do Live Aid era uma guitarra no formato do continente africano com uma foto pequena e genérica de uma criança negra faminta no canto.

Mas isso não significa que alguém tenha aprendido alguma coisa sobre os 400 mil etíopes que morreram de fome, tendo como cenário uma guerra civil de décadas e políticas socialistas que tornaram impossível a agricultura na maioria das áreas. Tratava-se de ajuda humanitária usada como arma de guerra, e isso não era bom para a TV.

O destino do dinheiro, uma vez chegado à África, não era muito claro. Nos anos subsequentes, muitas das sempre bem-intencionadas instituições de caridade que atuavam no continente foram acusadas de repassar o dinheiro das doações para uma rede de organizações que ajudou a financiar rebeliões sangrentas, limpezas étnicas e regimes corruptos.

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Mãe e filho em acampamento civil fora da base de Machar em Akobo, Sudão do Sul. 

Poucos questionaram alguma coisa até o Live 8, série de shows internacionais simultâneos ocorrida em 2005. Bill O’Reilly, do canal Fox News, causou rebuliço ao questionar o líder da banda U2, Bono, sobre a probabilidade de os fundos que estava arrecadando terminarem nas mãos de senhores de guerra e oficiais corruptos. Bono deu uma entrevista desajeitada, assim como tinha feito anteriormente para o jornal The Guardian. Em 2010, a BBC, que havia transmitido o mesmíssimo documentário que inspirou Geldof a produzir o Band Aid, Live Aid e outros, alegou que uma parte significativa das doações arrecadadas era usada para comprar armas e matar pessoas. A derrota foi pública e Geldof tentou desesperadamente desmentir a BBC. Olhando mais de perto, salvar a África também tinha seus problemas.

De qualquer forma, mesmo se tivesse arrecadado 10 bilhões de dólares, matematicamente, o Live Aid nunca teve chances de salvar o continente. De acordo com o Wall Street Journal, países ricos já enviaram à África pelo menos 1 trilhão de dólares nos últimos 60 anos, o que também não parece ter surtido muito efeito.

Um marco da inocência ocidental foi o tratamento da mídia em relação à morte recente de Nelson Mandela, tido como ícone de paz e mudanças positivas no continente. Relatos mais comuns de sua trajetória de guerrilheiro preso a presidente da África do Sul pós-apartheid e, finalmente, sua ascensão a mito ao lado de Gandhi normalmente deixam de fora alguns fatos. Por exemplo, não se conta que os membros da Umkhonto we Sizwe (MK), organização antiapartheid sob comando de Nelson Mandela até sua prisão em 1962, eram conhecidos por prender seus oponentes em pneus cheios de gasolina e queimá-los à morte. Em 1985, a esposa de Mandela, Winnie, causou muitos danos ao movimento antiapartheid ao dizer “com nossos fósforos e colares liberaremos este país”, em referência à prática. Mas as pessoas não costumam falar sobre esse tipo de coisa quando mencionam Nelson Mandela.

Quando Mandela deixou o cargo após seu primeiro mandato, ficou claro que a África pode consertar a África, mas não houve maiores explicações. Foi então que chegaram os verdadeiros opositores. Quem precisa de Bob Geldof ou de The Who quando se tem Clinton, Gates e Buffett repentinamente ansiosos para mostrar que a África pode funcionar exatamente como os EUA, só com um pouco mais de desenvolvimento? Eles focaram no básico: água potável, mosquiteiras (para prevenção de malária), energia solar, educação. Era só ligar em qualquer canal de notícias e havia um bilionário ou celebridade dizendo como se resolvia qualquer coisa.

Foi então que, aparentemente, da noite para o dia, os EUA descobriram que havia “bons” diamantes e “diamantes de sangue”. Ninguém conseguia se lembrar de todos os nomes na imensa lista de grupos envolvidos nas operações quando descobrimos que a fabricação de nossos smartphones necessitava de certos minerais encontrados no Congo, que são escavados em péssimas condições, muitas vezes por crianças. Talvez um dia possamos comprar um smartphone responsável, assim como um par de sapatos com sua renda convertida para ajudar uma criança na Uganda, ou então um café que coloque alguns centavos a mais no bolso de um agricultor africano. Talvez isto dê um jeito em tudo.

Com a chegada do novo século, eventos como o 11 de setembro e a guerra no Iraque tiraram o foco da África. O terrorismo islâmico e o Talibã mudaram o alvo das atenções dos EUA e da Europa para o Oriente Médio e o sul asiático. A África era, bem, a África. O Continente Sombrio. Opaco. Inexplorado. Desconhecido.

No começo de março de 2012, jovens começaram a assistir a um filme amador na internet. Parecia caseiro, com um homem conversando com seu filho sobre pessoas más na África. O filme Kony 2012 foi criado por um pequeno grupo de jovens cineastas religiosos em San Diego, que já havia aparecido na televisão falando sobre a Uganda e mostrando vídeos sobre crianças que haviam sido sequestradas. Este filme em particular mostra um breve histórico dos atos desprezíveis praticados por Joseph Kony, líder do Exército de Resistência do Senhor, até então desconhecido do grande público. Kony já era notícia antiga na África – havia deixado a Uganda seis anos antes. O objetivo do filme era torná-lo “famoso” para que fosse capturado. O filme foi também um dos maiores eventos na história da internet, e hoje parece que todos aqueles com idade entre 12 e 35 anos sabem que há um homem muito mau na África roubando crianças e transformando-as em soldados. Kony ainda está solto e ninguém sabe ao certo o que aconteceu com ele. Contudo, sabem que a pessoa que fez o vídeo foi filmada gritando nua à beira da estrada pouco depois que seu filme foi publicado. Resumidamente, o foco do Ocidente passou da violência irreparável do Oriente Médio a algo muito mais simples e nobre: a busca por um homem mau nas selvas da África.

Na época da morte de Mandela e de seu funeral repleto de celebridades, em dezembro de 2013, parecia mais uma vez que a África poderia ser salva.

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Tradução: Pedro Taam