A PM Ainda Não Sabe Como o Jovem Algemado Se Matou na Viatura

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A PM Ainda Não Sabe Como o Jovem Algemado Se Matou na Viatura

Um ano e cinco meses se passaram, mas a polícia paulista e sua equipe técnica e científica de perícia não foram capazes de responder se José Guilherme da Silva deu um tiro contra a própria cabeça ou se foi assassinado por um PM dentro de uma viatura.

Ilustração por Bruno Maron.

Um ano e cinco meses se passaram, os holofotes se voltaram para o caso, mas a polícia paulista e sua equipe técnica e científica de perícia não foram capazes de responder se José Guilherme da Silva deu um tiro contra a própria cabeça ou se foi assassinado por um PM dentro de uma viatura em Limeira, no interior de São Paulo.

Aparentemente, era um trabalho simples, espécie de barbada para iniciantes no cargo de investigador. Na noite de 14 de setembro de 2013, José Guilherme, com 20 anos, havia sido localizado pelos policiais depois de assaltar um bar, onde feriu uma pessoa. O jovem foi algemado com as mãos para trás e minuciosamente revistado antes de entrar na viatura. Do lado de fora do carro, teve tempo de pedir à mãe que não o abandonasse na prisão.

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A viatura partiu com José Guilherme imobilizado no porta-malas. Instantes depois, a cerca de um quilômetro de onde ele havia sido detido, "buuuum": o som de um disparo ecoou dentro do camburão. Uma bala atingiu em cheio a têmpora direita do detido, que tombou para a esquerda, formando uma densa poça de sangue no porta-malas.

Assassinato ou suicídio? Uma das perguntas recorrentes a assombrarem as autoridades das polícias desde os tempos de combate à guerrilha na Ditadura Militar. A incapacidade de responder com objetividade a questões diretas como essa, vem revelando, mais do que a incompetência dos funcionários, suspeitas de conivência e omissões que corroem a confiança nas instituições paulistas.

Desde que José Guilherme morreu, foram idas e vindas ao longo de 17 meses. Em fevereiro do ano passado, minha reportagem no blog SP no Divã, dentro do Estadão, fez a Secretaria de Segurança Pública solicitar nova perícia.

Em vez da busca real por respostas, vimos um teatro superficial que se desenrolou ao longo de 12 meses, aparentemente para que as autoridades pudessem encenar uma aparente preocupação até que o caso fosse esquecido.

No dia 10 de fevereiro deste ano, pouco antes do Carnaval, os resultados dos exames foram apresentados pelo delegado responsável, Mamede Jorge Rime. A VICE teve acesso ao relatório final do delegado.

"Após exaustivos trabalhos, os membros desta comissão, de forma unânime, consideraram que não é possível determinar assertivamente a dinâmica dos fatos", concluiu o delegado, para continuar:

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"José Guilherme, sabendo que seria preso e que o crime que havia praticado era muito grave, com consequente condenação de uma pena longa; conhecedor do sistema prisional, pois já havia experimentado as agruras do cárcere quando interno na Fundação Casa, [ele] pode, sim, ter sofrido um transtorno mental e, armado que estava, tentou manipular a arma".

No trabalho dos policiais paulistas, percebe-se imensa energia na busca de indícios incapazes de responder o que lhes interessa. Na impressionante investigação que não levou a lugar nenhum, vejamos o que a polícia conseguiu confirmar. Sabe-se que:

1)José Guilherme e Kaio, os autores do roubo, foram revistados antes de entrarem na viatura. A polícia afirma que José Guilherme burlou a revista e entrou com a arma com a qual se suicidaria. Não é possível asseverar, contudo, se ele entrou armado na viatura ou se os policiais estão mentindo. Caso os policiais tenham executado José Guilherme, eles provavelmente usaram a arma que o jovem usou no assalto.

2)José Guilherme recebeu um tiro sobre a orelha, na têmpora direita, que foi o suficiente para matá-lo. Tente reproduzir a cena, algemado e com a mão para trás, para sentir o grau de dificuldade. A proeza digna de um Houdini ou de um Magneto não é, em nenhum momento, levada em consideração no inquérito.

3) A arma que os policiais dizem ter encontrado na viatura foi a mesma usada no roubo.

4) O laudo para detectar pólvora nas mãos de José Guilherme deu negativo. Essa prova, no entanto, segundo a perícia, "não pode ser considerada como contundente, única e definitiva".

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5) A arma não estava no porta-malas, mas no banco dianteiro da viatura em que morreu José Guilherme.

6) O local do crime estava prejudicado para exames periciais.

7) Não foi possível dizer se o tiro que matou José Guilherme saiu da mesma arma, porque a munição estava danificada e impediu o confronto balístico.

8) O tiro foi dado a uma distância mínima de 50 centímetros.

9) Ele foi preso com uma algema com dois elos na corrente, e o disparo foi dado em um ângulo de 60 graus, com a bala indo atingir o teto da viatura.

Em resumo: com essas provas, não há as mínimas condições de se afirmar qualquer coisa sobre o que ocorreu. Mesmo assim, há frases e raciocínios absurdos no relatório do delegado. "O fato é que a arma disparou. José Guilherme foi atingido e morreu. Se de propósito ou por acidente, não se pode concluir. Somente ele poderia dizer", escreveu Mamede. Imagine se todas as autoridades que investigam homicídios usassem o mesmo raciocínio, alegando que o caso dependeria do testemunho da vítima morta para ser desvendado.

O mesmo delegado não se constrange em colocar no papel platitudes sobre as motivações do homicídio que tentam claramente favorecer os PMs acusados. "Não é razoável crer nessa versão (a deque os policiais executaram José Guilherme), pois os policiais envolvidos na ocorrência não tinham razão alguma para assim proceder, pois, como já ficou demonstrado, haviam cumprido quase todo seu trabalho, restando apenas a formalização do flagrante pela polícia civil", escreveu.

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De fato, não haveria razões para o assassinato. Como também faltam razões há mais de quatro décadas para inúmeras execuções praticadas por policiais, o que não os impede de matarem e de defender o extermínio de suspeitos em seus blogs, que ficam mais populares quanto maior a irracionalidade das mensagens em defesa da "execução de bandidos".

O perito do Instituto de Criminalística de Limeira não deixa por menos nos raciocínios tortos ao sugerir que uma resposta sobre a capacidade de José Guilherme atirar em si próprio com a mão para trás dependeria de "um estudo personalíssimo da habilidade do agente que se encontra algemado, e é sabido nos meios policiais tanto sobre a habilidade do movimento de alguns detidos como sua condição pessoal de burlar a revista".

Claro, como prever as habilidades dos bandidos nos dias de hoje? Quem garante que o sujeito não tinha a flexibilidade de um Homem Elástico e a mira de um Sniper Americano? Se as investigações feitas pela polícia paulista virassem uma série de TV, talvez fosse uma comédia trash, chamada de alguma coisa como As Incríveis Trapalhadas do CSI Brazil.

Seria bizarro e engraçado se não fosse profundamente trágico. Milhares de pessoas já morreram por causa dessa cultura corporativa condescendente com o extermínio de suspeitos. Em vez de diminuir o crime, o resultado ao longo de décadas são instituições cada vez mais acomodadas em sua desfaçatez; desacreditadas, elas disseminam a revolta e o ódio entre uma fatia enorme da população que delas são vítimas.

Mesmo sem ninguém indiciado no inquérito policial, o caso não foi encerrado. Segue ao Ministério Público Estadual, que pode arquivá-lo ou pedir mais informações aos policiais para poder formalizar a denúncia dos envolvidos. Queria ser otimista, mas há outros casos, com mais de 40 anos, ainda não resolvidos de supostos suicídios de pessoas mortas pela polícia. Talvez por não serem desvendados, continuam acontecendo.