O caso Fabiana Cozza traz a discussão do colorismo para a MPB

A cantora paulista Fabiana Cozza foi escalada para interpretar Dona Ivone Lara no musical Dona Ivone Lara – Um Sorriso Negro. Uma escolha resultante de encontros entre a família de Dona Ivone e a produção da peça, considerando que em vida a própria sambista havia manifestado sua preferência por Fabiana.

Após duras críticas recebidas através das redes sociais, a cantora, acusada de ter a pele “clara demais” para interpretar Dona Ivone, anunciou sua saída do musical. Em um texto, destinado “aos irmãos”, Fabiana demonstra sua decepção ao relatar que dormiu negra na terça feira e acordou branca na quarta feira.

Videos by VICE

Além do talento como cantora e voz poderosa, indispensáveis para interpretar a lenda do samba, Fabiana conviveu com Dona Ivone, dividindo com ela canções, palcos e até horas de lazer em sua casa, como relata André Lara, neto da sambista. Grande conhecedora do repertório de Dona Ivone tendo, inclusive, gravado algumas de suas músicas e feito shows em sua homenagem, Fabiana parecia a escolha óbvia para o papel. O público, por sua vez, ficou dividido. Apesar de ter sido defendida por colegas artistas, como Fióti e Emicida, com quem já trabalhou no passado, Fabiana não seria, de acordo com muitos internautas, negra o suficiente para interpretar Dona Ivone.

Não é a primeira vez que vemos situações como essa. Na adaptação cinematográfica de sua vida Nina Simone, importante ícone da música negra, é interpretada pela atriz Zöe Saldaña, de pele mais clara. Comparando o caso de Fabiana ao de Zöe, e de outras atrizes e atores, internautas trouxeram à tona uma discussão importante.

Whitewashing é o termo usado quando um ator branco é escalado para representar um personagem não-branco. Infelizmente, isso ainda é muito comum, principalmente no cinema hollywoodiano. O embranquecimento de figuras historicamente não-brancas ajuda a perpetuar uma série de ideias relacionadas à opressão sofrida por essas culturas e ajuda a apagar do imaginário popular ícones de talento, sucesso e superação, contribuindo com a narrativa de que essas palavras se reservam ao mundo europeu.

O whitewashing é racista e destrutivo, mas não é o que está acontecendo aqui. Fabiana Cozza é negra, embora de pele mais clara que a de Dona Ivone. Como a própria cantora faz questão de apontar em seu texto, sua certidão de nascimento a classifica como parda. Pardos e pretos, juntos, formam a população negra. Fabiana se identifica como negra e, independentemente da forma como escolhe se identificar, é socializada como negra. Nesse caso, não se trata de whitewashing, mas algo ainda incomoda.

O termo colorismo é utilizado para falar da diferença dos tratamentos recebidos pelos negros de pele escura e os de pele mais clara. Mais tolerados pela branquitude e com maior acesso aos espaços brancos, os negros de pele mais clara, ou pardos, ainda são negros e percebidos como negros. Porém, com traços e pele mais clara e talvez com o cabelo alisado, são negros mais “agradáveis” ao olhar branco. Ainda negro, ainda um “patamar abaixo”, mas mais próximo do ideal europeu de humanidade, essas pessoas são parte de um acordo doentio do qual não tiveram escolha senão participar. São usados para mascarar o racismo ainda existente. Criar a ilusão de que todos os negros são aceitos, em espaços onde apenas os que conseguem se alinhar a uma estética branca estão. São tolerados, mas não respeitados ou bem representados.

A tolerância aos negros de pele clara cria a ilusão de igualdade de oportunidades e de inclusão e, em muitas ocasiões, fortalece a falsa ideia de que não são negros. Porém, Fabiana não recebe a mesma atenção que artistas brancas na indústria fonográfica. Sambista e difusora da cultura negra, Fabiana enfrenta os desafios reservados apenas aos artistas negros, colocados sempre à margem de uma cultura popular branca e para brancos.

É possível argumentar que Fabiana tenha sido escolhida para o papel por representar melhor essa estética branca. É mais fácil vender uma Dona Ivone Lara mais clara e de nariz mais fino. Mas se acreditamos nisso, ignoramos as vontades da própria sambista e da sua família. Ignoramos toda a trajetória de Fabiana Cozza, sambista e ativista pelo movimento negro. Ignoramos que a vida não segue regras imutáveis e que, nesse caso, Fabiana não apagaria a negritude de Dona Ivone, mas sim, prestaria homenagem a uma amiga e grande ícone brasileiro.

Leia mais no Noisey, o canal de música da VICE.
Siga o Noisey no Facebook e Twitter.
Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter, Instagram e YouTube.