Em dezembro último, Renate Künast, uma política do Partido Verde de esquerda alemão, recebeu críticas furiosas depois que seus comentários sobre um assassinato viralizaram no Facebook.
Os comentários dela, segundo uma postagem compartilhada pela página de direita do Facebook Resistência dos Patriotas Alemães, se relacionavam à prisão de um requerente de asilo pelo estupro e assassinato de uma estudante de 19 anos em Freiburg – um crime que chocou a Alemanha e desencadeou um debate nacional sobre a ameaça em potencial imposta pelo fluxo de imigrantes no país.
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Künast teria dito sobre o suspeito: “O refugiado traumatizado matou, mas alguém precisa ajudá-lo mesmo assim”.
O comentário se mostrou incendiário, representando para alguns alemães a resposta fraca e indiferente do establishment liberal ao crime cometido pelo imigrante.
O único detalhe é: Künast nunca disse isso. A postagem em questão era apenas uma foto dela junto à citação inventada, falsamente atribuída ao jornal Süddeutsche Zeitung; aparentemente criada por um membro suíço do movimento anti-islâmico PEGIDA (Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente).
“As pessoas começaram a compartilhar a notícia sem verificar”, disse Künast à VICE, acrescentando que levou três dias para o Facebook remover o conteúdo falso da rede. “Três dias é muito tempo para um viral.”
A postagem era um exemplo flagrante de notícia falsa, postagens online manipuladas para viralizarem através das redes sociais.
A Alemanha tem testemunhado uma proliferação de notícias falsas nos últimos dois anos, enquanto o país encara uma reação negativa crescente à decisão da chanceler Angela Merkel de receber mais de um milhão de refugiados no país. O problema lembra o fenômeno que emergiu nos EUA durante a última eleição presidencial – e, como nos EUA, há preocupações de que a Rússia esteja por trás de parte do problema.
A crise de imigrantes – a questão política que mais gera polarização no país – é onde as notícias falsas da Alemanha descobriram sua fórmula. Inicialmente circulando principalmente entre simpatizantes do PEGIDA e do partido populista anti-imigração, o Alternativa para a Alemanha (AfD), as notícias falsas encontraram um público maior depois de incidentes violentos ligados a imigrantes, principalmente depois que foram registradas nas festas de Ano Novo agressões sexuais em massa em Colônia e outras cidades alemãs.
As notícias falsas geralmente inventam crimes cometidos por recém-chegados, ou, como no caso de Künast, acusam políticos ou autoridades liberais de fazer vista grossa para os criminosos imigrantes. Uma postagem acusava falsamente Merkel – junto com os verdes, os alvos favoritos das notícias falsas – de tirar uma selfie com um dos terroristas por trás dos ataques de março de 2016 ao aeroporto e metrô em Bruxelas.
As notícias falsas surgem das mais variadas formas, incluindo relatórios manipulados publicados por blogs partidários como halle-leaks.de ou unzensuriert.at, ou relatórios inventados de publicações e autoridades inexistentes. E embora as matérias sejam desmentidas pela mídia tradicional, como no caso de Künast, as refutações raramente ganham o mesmo público que a mentira original – mentiras que, se não são deletadas, continuam vivendo em redes sociais como o Facebook.
O Facebook está fazendo o suficiente?
Dado o que muita gente vê como uma ameaça à democracia pelas distorções num ambiente político de “pós-verdade”, a Alemanha está levando o problema a sério. Num ano de eleição em que maior desafio para o establishment político é o AfD – o partido de direita populista de maior sucesso na Alemanha pós-guerra – as apostas são altas; ainda mais considerando o futuro da União Europeia, enquanto ela luta contra a ascensão do populismo anti-UE em todo o bloco e a tensão de uma crise migratória inegável.
Depois de testemunhar a influência das notícias falsas nas últimas eleições norte-americanas, os alemães temem que campanhas de desinformação online possam ter um papel perturbador quando o país for às urnas nas cruciais eleições federais em setembro.
Alemães temem que campanhas de desinformação online possam ter um papel perturbador quando o país for às urnas nas cruciais eleições federais em setembro.
“Ativistas que se envolvem publicamente em questões políticas estão sob fogo constante”, diz Künast, que chama as notícias falsas de “uma ameaça para o discurso democrático”.
“Em setembro vamos ter eleições gerais e não podemos aceitar que notícias falsas atrapalhem nosso sistema democrático.”
Políticos como Thomas Jarzombek, um legislador alemão do partido de centro-direita União Democrática Cristã, estão ameaçando o Facebook com penalidades duras e pensando em novas leis de mídia para confrontar o problema. “Estamos vendo muitas postagens de notícias falsas rodando a internet”, ele disse.
Em resposta ao escrutínio dos políticos alemães, em janeiro o Facebook implementou novas medidas para combater notícias falsas no país, incluindo dar aos usuários a opção de denunciar matérias falsas, usar conferência de fatos para vetar histórias, e derrubar incentivos financeiros para spammers “eliminando a capacidade de falsificar notícias de sites conhecidos”. Foi a primeira vez que o Facebook implementou medidas contra notícias falsas fora dos EUA.
Mas os legisladores alemães, conhecidos por serem os mais severos do mundo ocidental contra gigantes da tecnologia, estão pressionando por mudanças maiores. “Não é o suficiente”, disse Jarzombek.
A extrema-direita e a Rússia estariam por trás das notícias falsas
Há um ano, em resposta ao surto de histórias falsas ou manipulativas sobre refugiados circulando nas redes sociais, a jornalista Karolin Schwarz e o desenvolvedor de software Lutz Helm começaram o Hoaxmap, um projeto de observação online para rastrear e corrigir notícias falsas. O projeto mapeia histórias falsas populares, e as apresenta ao lado de matérias corretas geralmente retiradas da mídia local, mas às vezes até contatando as autoridades locais para dar sua versão.
Notícias falsas são uma forma de propaganda da extrema-direita, disse Schwarz. “A intenção deles é avançar uma agenda populista e racista, e envenenar qualquer esforço para uma discussão política sóbria, principalmente na questão de políticas de asilo”, ela disse.
Há pistas de que a Rússia é responsável por um fluxo de notícias falsas, buscando alimentar o descontentamento com as políticas de refugiados para influenciar as eleições alemãs, como supostamente fez com os EUA.
A Força Tarefa East StratCom da UE, criada em 2015 para combater notícias falsas russas, diz que a Europa está enfrentando uma “campanha de desinformação pró-Kremlin” orquestrada. Desde que foi lançado, o grupo já identificou mais de 2.500 notícias falsas em 18 línguas. “A campanha de desinformação é uma medida não-militar para atingir objetivos políticos”, disse a StratCom numa declaração. “O objetivo dessa campanha de desinformação é enfraquecer e desestabilizar o Ocidente, explorando divisões já existentes ou criando novas divisões artificialmente.”
Notícias falsas divulgadas pela mídia estatal russa já causaram problemas na Alemanha. Em janeiro passado, uma garota russa-alemã de 13 anos moradora de Berlim desapareceu por 30 horas, dizendo aos pais quando retornou que tinha sido sequestrada por imigrantes do Oriente Médio. A história dela era mentira, mas isso não impediu que a mídia russa cobrisse extensivamente o evento, levando a protestos da extrema-direita e de membros de etnia russa na Alemanha; mesmo tendo o ministro das Relações Exteriores russo Sergei Lavrov criticado as autoridades alemãs, culpando o “politicamente correto” pela suposta falta de ação oficial no caso.
Similaridades com os EUA
O problema alemão com as notícias falsas tem paralelos fortes com os EUA segundo Klaus Beck, um professor de mídia da Freie Universitaet Belin, que disse que os consumidores e compartilhadores de notícias falsas tendem a ser simpatizantes da extrema-direita, e acreditar na teoria da conspiração de que a mídia mainstream liberal está de conluio com a elite política para apresentar versões distorcidas e politicamente corretas da realidade.
A frase alemã “Lügenpresse“, ou “imprensa mentirosa”, foi revivida pela direita nos dois países como um termo de abuso contra jornalistas. Usada principalmente na Alemanha Nazista para alimentar o ódio contra dissidentes, a frase foi ouvida num comício de Trump em Cleveland em outubro, e frequentemente é gritada na cara dos repórteres cobrindo manifestações do PEGIDA, diz Beck, acrescentando que a frase ecoa o uso de Trump do termo “notícias falsas” para desacreditar críticas da imprensa.
Um incidente notório recente pode ter abastecido a desconfiança na mídia mainstream, e ajudado a dar crédito à teoria da conspiração de que o establishment liberal está encobrindo crimes de imigrantes, diz Beck.
Em janeiro passado, a Alemanha foi sacudida por relatos de que centenas de mulheres tinham sido sexualmente atacadas por gangues de homens imigrantes em cidades como Colônia e Hamburgo, enquanto comemoravam a passagem de ano. Apesar dos ataques em massa serem sem precedentes em sua natureza e alcance na Alemanha – segundo o documento policial vazado, mais de 1.200 mulheres teriam sido atacadas – as autoridades e a mídia levaram dias para reconhecer os crimes. Os ataques só vieram à luz nas redes sociais, antes de se tornarem um escândalo nacional e amargarem as atitudes do público para com os imigrantes.
O incidente se mostrou um solo fértil para a imprensa de extrema-direita. Sites da direita alternativa como o Breitbart rapidamente se apropriaram da história; o site revisitou o caso várias vezes no último ano e agora planeja começar uma operação na Alemanha. No começo do mês, o Breitbart publicou uma reportagem dizendo que cerca de 1000 homens tinham atacado a polícia e colocado fogo na mais antiga igreja alemã de Dortmund durante as comemorações do Ano Novo. Oficiais e jornalistas locais disseram que a reportagem do Breitbart em Dortmund estava incorreta; o Breitbart respondeu dizendo que as críticas eram “falsas notícias falsas”.
Como responder
Num país onde a propaganda do estado ainda paira na memória da história recente, as opiniões na Alemanha estão divididas sobre como melhor abordar o problema das notícias falsas. Para Beck, a ameaça das notícias falsas é exagerada pela mídia – ele diz que essas notícias provavelmente não impactarão a maioria do público, que continua a se informar através da mídia mainstream.
Ele diz que tentar resolver o problema com a introdução de novas leis e instituições – como o “Centro de Defesa Contra Desinformação” supostamente sendo considerado pelo Ministério do Interior – seria exagero.
“Logo você teria um gabinete de censura”, ele diz. “Eles não precisam de soluções legais – eles precisam de mais envolvimento civil para educar internautas para agir como cidadãos competentes nas redes sociais.”
Jarzombek concorda que educação de mídia é vital. Mas como vários outros legisladores alemães, ele acredita que plataformas como o Facebook precisam fazer mais para combater notícias falsas, e apontou que o parlamento está preparado para legislar se o gigante da tecnologia fizer corpo mole.
Políticos do todo o espectro têm falado contra o Facebook, com um membro do partido de centro-esquerda SPD pedindo multas de mais de 500 mil euros contra o site se ele não conseguir denunciar postagens falsas ou de discurso de ódio em 24 horas. A Comissão Europeia também alertou recentemente que o Facebook e outras redes sociais enfrentariam penalidades se não fizessem mais para abordar o problema.
Uma das medidas que Jarzombek espera ver o Facebook introduzir é uma função “direito de resposta”, que permita que alguém mencionado numa postagem equivocada possa anexar sua refutação junto à postagem original, para poder alcançar o mesmo público.
Ele disse que o Facebook tem resistido a introduzir medidas assim, mas “se não começarem a responder a isso, vamos transformar em lei”. As consequências de permitir que notícias falsas se proliferem são graves demais para permitir que o status quo continue, ele disse.
“Não tenho certeza se [a ameaça das notícias falsas] é tão grande que pode mudar completamente o resultado de uma eleição”, ele disse. “Mas pode ter um impacto.”
Tradução do inglês por Marina Schnoor.