Feliz Aniversário de 20 Anos, Zapatistas!

Foto por Marco Antonio Cruz.

O primeiro de janeiro de 2014 marcou os 20 anos desde que um exército, anteriormente desconhecido, emergiu das florestas tropicais do planalto indígena de Chiapas, México, e declarou guerra ao governo. Foi um dia histórico. E mesmo no começo de 1994, sendo apenas um garoto de 13 anos do sul da Califórnia, eu sabia que algo grande estava acontecendo na terra natal de meus pais. E comecei a prestar atenção.

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Naquele mesmo dia, o Tratado Norte-americano de Livre Comércio entrou em vigor entre Estados Unidos, Canadá e México. O NAFTA deveria lançar o hemisfério na era da economia globalizada, introduzindo o México no clube das nações desenvolvidas. Havia a esperança de que bens melhores e mais baratos se derramariam dos Estados Unidos. Todo mundo devia estar ansioso por isso. Mas o grupo armado que tomou o controle de partes de Chiapas no dia de Ano Novo, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), tinha um ponto de vista diferente.

Eles declararam guerra a um exército dezenas de vezes maior que o deles. Os indígenas pobres do México tinham se cansado. Sob o regime autocrático do Partido Revolucionário Institucional (PRI) — ou “dinossauros”, como são coloquialmente conhecidos — exploração, desigualdade e negligência eram a norma. Nada ia mudar, e não havia potencial de mudança no horizonte. Meios pacíficos de protesto não eram mais uma opção para o exército que se chamava de zapatista, em homenagem ao líder revolucionário mexicano Emiliano Zapata, que pegou em armas aproximadamente um século antes.

Os novos zapatistas suspeitavam, com razão, que o NAFTA faria muito pouco para melhorar suas condições, ou poderia até piorá-las. A guerrilha fez um alerta não só ao México, mas também, acredito, a toda a América Latina e a diáspora latina nos EUA.

Foi o primeiro levante armado no México desde a “Guerra Suja” do país contra as guerrilhas de esquerda nos anos 1960 e 1970 (um período apagado da história oficial do México e, por isso, quase nunca mencionado na narrativa nacional). Isso também foi considerado o primeiro levante armado da história, auxiliado e difundido pela tecnologia moderna, e organizado através da internet. A guerrilha incluía homens e mulheres, na maioria de etnia maia, falantes da língua maia. Eles confiavam num carismático mestizo falante de espanhol, conhecido como Subcomandante Marcos, para espalhar sua mensagem pelo mundo. Num curto período de tempo, o cachimbo, a metralhadora e a máscara de esqui de Marcos se tornaram icônicos.

A rebelião armada do EZLN durou 12 dias e custou aproximadamente 100 vidas, apesar de esse número ser controverso. Um cessar-fogo foi pedido e negociações de paz começaram. Negociações que levaram a lugar nenhum. Um empate paira sobre os dois lados desde então, com violência política e desaparecimentos em Chiapas até hoje. Em 1º de janeiro de 1994, ninguém sabia o que o exército zapatista pretendia. Mas todo mundo sabia que o México — e algumas gerações de mexicanos — nunca mais seriam os mesmo.

Marco Antonio Cruz, um dos fotojornalistas mais respeitados do México, gerencia uma agência chamada Imagen Latina na maior parte do tempo. Na manhã seguinte às notícias sobre a revolta EZLN nas montanhas, Marco Antonio e um pequeno grupo de jornalistas da Cidade do México estavam no aeroporto, tentando encontrar uma companhia aérea que os levasse até Tuxtla Gutiérrez, a capital de Chiapas, depois que todas as rotas tinham sido interrompidas. Ele cobriu os primeiros e mais sangrentos dias do conflito EZLN.

Hoje, Marco Antonio é editor fotográfico do semanário investigativo mexicano Proceso. A revista tem publicado algumas das fotos mais memoráveis do movimento zapatista. O quartel-general do Proceso, na Cidade do México, é uma casa modesta de estuque branco, numa rua residencial de Colonia Del Valle. Visitei Marco Antonio lá, recentemente, para relembrar a revolta EZLN através das lentes dos fotojornalistas que lá estavam para documentá-la.

“Para muitos fotógrafos, Chiapas é um estado onde a injustiça e a negligência são históricas”, Marco me disse. “Muito do que ocorreu depois do triunfo da Revolução Mexicana [1910-1920] nunca chegou a Chiapas. São séculos e séculos de escravidão e opressão.

“[O fotógrafo] Antonio Turok já morava lá há 15 ou 20 anos, e minha primeira viagem para lá aconteceu nos anos 1980, quando refugiados da Guatemala chegaram. Também fiz um  projeto sobre a cegueira no México, então visitei comunidades de Chiapas onde as pessoas tinham sido afetadas pela cegueira. Eu conhecia a situação. É um lugar onde as pessoas morrem de doenças tratáveis. Algo assim tinha que acontecer e, então, quando realmente aconteceu, não foi uma grande surpresa.”

Em seu escritório, o fotógrafo relembrou o medo que sentiu na primeira vez em que viu zapatistas uniformizados mortos enquanto seguia os batedores do Exército Mexicano. Mas também a emoção que muitos de nós sentimos anos depois, quando vimos a caravana zapatista chegar diante de uma multidão de simpatizantes civis no coração simbólico da nação –  a praça central Zocalo na Cidade do México.

Aqui, temos 20 fotografias que Cruz compartilhou com a VICE e que contam, juntamente com os comentários feitos por ele, a história dos 20 anos do Ejército Zapatista de Liberación Nacional.

Foto por Antonio Turok.

“Essa foto é do Antonio Turok, ele costumava contribuir com a Imagen Latina, e morava em San Cristobal de las Casas. No meio da noite em 1º de janeiro de 1994, ele topou com os zapatistas, e estava lá quando eles tomaram a prefeitura de San Cristobal de las Casas. Eles tomaram as principais prefeituras nos planaltos e na selva, e a mais importante de todas era a de San Cristobal. E essa foto, bom, é um ícone. É parte da história do país, a entrada dos zapatistas.”

Foto por Antonio Turok.

“Isso se passa dentro da prefeitura de San Cristobal, eles são zapatistas. Nesse ponto, eles já não estava mais usando máscaras ou cobrindo os rostos. E a pichação diz: ‘Não há guerrilha, diz Godinez Bravo’. Godinez Bravo era o general no comando da zona militar de Chiapas. Meses antes da erupção do zapatismo, eles encontraram o acampamento de treinamento da guerrilha na selva, próximo de Ocosingo. Mas eles encontraram só o acampamento, sem os soldados da guerrilha. Por isso, Godinez Bravo afirmou isso, mas, é claro, havia guerrilha. Essa foto também é de 1º de janeiro.”

Foto por Marco Antonio Cruz.

“Depois de tomarem San Cristobal, os zapatistas entraram em combate com a base militar Rancho Nuevo, a base mais próxima de San Cristobal. Eu estava lá, essa foto é minha. Esses são zapatistas mortos na batalha. Eles foram emboscados. Quando tirei essa foto, 20 e poucos deles tinham morrido. Eles estavam uniformizados e foram mortos menos de 20 minutos antes. Ouvimos os tiros… foi horrível.”

Foto por Marco Antonio Cruz.

“Mesma cena. Honestamente, tirei essas fotos tremendo. Tive que me acalmar para tirá-las. A morte nunca é um tema fácil para ninguém, especialmente logo depois disso acontecer. Partes da cabeça do homem tinham se perdido, eles atiraram quando ele já estava morto. Os corpos ficaram lá por uns 15 dias, expostos. Era uma maneira de amedrontar as pessoas. Estava frio, então os corpos não se decompuseram tão rápido. O frio era muito intenso.”

Foto por Marco Antonio Cruz.

“Essa é a rodovia de San Cristobal para Ocosingo, tomada pelos zapatistas. Eles nos pararam, revistaram nossas coisas, pediram que nos identificássemos, depois nos deixaram ir. Isso foi no posto de controle.

“Ninguém estava nos protegendo [como fotógrafos]. Acho que a situação é pior hoje com a Guerra às Drogas. A gente costumava ter uma segurança relativa quando nos identificávamos como imprensa. Hoje, se você fizer isso, pode ser sua sentença de morte.”

Foto por Marco Antonio Cruz.

“Aqui são mais cenas de combate em Rancho Nuevo. Esse helicóptero pousou para ajudar os soldados e levar os feridos deles. Eu vi quando eles atiraram, mas nunca vi os zapatistas, eles estavam bem escondidos. São momentos intensos. Teria sido difícil que os zapatistas vencessem, mas, militarmente, o primeiro movimento deles foi genial, um poema. O fato de eles terem escondido um exército guerrilheiro por tanto tempo, durante anos, e o fato de eles atacarem no dia em que o México estava entrando no NAFTA, tudo isso foi brilhante. Nos primeiros dias, poucas pessoas morreram. Alguns dias depois, muitos morreram, mas muito mais gente poderia ter morrido. A estratégia deles, como exército guerrilheiro, foi muito audaciosa, muito impressionante.”

Foto por Benjamín Flores.

“Isso é da luta em Ocosingo. O Exército cercou um grupo importante de zapatistas num mercado, muitas pessoas morreram ali. Essa foto é especialmente importante, pois esses cinco zapatistas foram executados. Eles estão na posição de execução. Eles já estavam controlados, mas eles os mataram, o que é uma violação dos direitos humanos. Há convenções sob as quais os militares mexicanos têm que trabalhar para evitar isso, mas ainda assim isso aconteceu.

“Uma coisa que me surpreendeu muito sobre os zapatistas foi que, desde o primeiro dia, eles vieram uniformizados. Eram uniformes feitos em casa, a camisa marrom, as botas… Isso tinha um toque de apresentação formal diante do mundo.”

Foto por Benjamín Flores.

“Isso também é de 4 de janeiro de 1994, Ocosingo.”

Foto por Martín Salas.

“O que veio depois disso foi um protesto popular [no México] que pediu o fim da luta. A guerra durou menos de 15 dias, e, por causa dos protestos, a luta parou e os dois lados tomaram suas posições, foi aí que os acordos de paz começaram. Essa foto foi tirada na catedral, durante as discussões de paz, e o personagem principal aqui é o Subcomandante Marcos. Os outros são comandantes indígenas. Eles eram os verdadeiros comandantes, ele era um subcomandante. Isso foi em 24 de fevereiro.”

Foto por Araceli Herrera.

“O estado se militarizou numa velocidade alarmante. Essa é uma cena de guerra que poderia ser o Vietnã, Laos, qualquer lugar do mundo. Essa foto foi feita por Araceli Herrera, para o Proceso, no dia 10 de janeiro.”

Foto por Víctor Mendiola.

“Essa foto é do Víctor Mendiola, é uma foto de um lugar chamado Guadalupe Repeyac, no território zapatista. Essa é uma das poucas fotos existentes do Marcos disparando uma arma.”

Foto por Víctor Mendiola.

“Guadalupe Tepeyac representa muito para o zapatismo. Isso foi em torno de junho, quando eles convidaram organizações do país inteiro para uma Convenção Democrática Nacional. Esse é o bastião do zapatismo.”

Foto por Juan Popoca.

“Essa é do Juan Popoca, é da inauguração [da comunidade de] Aguascalientes, onde aconteceu a convenção.”

Foto por Juan Popoca.

“Eles são zapatistas, não se sabe quem eles são, mas são o exército, membros. São índios, pessoas da selva. O acesso era sempre complicado. Essa foto também é do Juan Popoca, e é tão forte, a presença militar… Imagine.”

Foto por Martín Salas.

“Essa é uma foto muito importante. É a libertação de Absolón Castellanos. Ele era general em Chiapas e, em certo momento, foi o governador do estado. Os zapatistas o sequestraram e o mantiveram preso por mais de um mês. [O bispo] Samuel Ruiz e [o político] Camacho Solis trabalharam para libertá-lo. Camacho Solis era o representante do governo nas negociações, o representante do [então presidente Carlos] Salinas. Uma foto histórica, 16 de fevereiro de 1994.”

Foto por Ángeles Torrejón.

“Essas são fotos dos acampamentos de treinamento dos zapatistas, homens e mulheres, por Ángeles Torrejón. Ángeles, que é minha esposa, é uma das poucas mulheres que estiveram na selva, aceitas pelos zapatistas, para documentá-los: o treinamento, o cotidiano, as mulheres e, acima de qualquer coisa, as crianças.”

Foto por Ángeles Torrejón.

“Ela viveu na selva por dois anos e conseguiu ficar íntima deles, o que foi inacreditável.”

Foto por Ángeles Torrejón.

“Essa é uma foto clássica, feita pela Ángeles. Isso foi em 15 de maio, eu estava lá com ela. Olhe a parafernália dele, seu rádio, seu cachimbo, sua R-15, suas balas. É uma foto muito Marcos. Ele era assim. Nunca falei com ele, pois ele mantinha certa distância. A Ángeles era próxima dele.”

Foto por Ángeles Torrejón.

“Essa também é da Ángeles, a presença militar dos zapatistas e os civis, as pessoas da selva. É uma foto adorável.”

Foto por Ulises Castellanos.

“Essa é a última foto, a chegada da caravana zapatista em Zocalo, Cidade do México, 11 de março de 2001. Eles vieram desarmados, cercados por uma corrente de civis para protegê-los desde o dia que saíram de Chiapas. Essa foto simboliza muito. Depois do levante armado de 1994, o fato de a guerrilha chegar ao coração, a Zocalo, teve um significado enorme. Isso representa a passagem de grandes líderes, vitoriosos. [O herói revolucionário Emiliano] Zapata esteve ali, [Francisco] Villa… Bom, essa é a segunda vez que os zapatistas estiveram ali, na primeira vez eles chegaram com Zapata.”

Cruz estava sorrindo. Depois de ver sua seleção de fotos, perguntei o que ele achava sobre o estado contemporâneo do zapatismo e de Chiapas, da perspectiva de um jornalista.

Cruz respondeu com uma convicção imediata: “O governo nunca foi capaz de resolver esse problema, e isso continua lá. Chiapas é uma bomba-relógio. E não apenas Chiapas, muitos estados da república estão em situações que continuam sem resolução, socialmente falando. E a qualquer momento, eles podem explodir.”

O EZLN continua no controle de territórios semiautônomos nos planaltos de Chiapas, e algumas cidades e comunidades se organizam ao redor de “Conselhos de Boa Governança”. Mas, como Cruz apontou, os zapatistas vivem efetivamente numa “jaula”, sob vigilância ou perseguição do Exército Mexicano, enquanto a ameaça de grupos paramilitares alinhados ao PRI é constante.

O estado continua pobre, esquecido e tenso. Na verdade, 20 anos depois do levante do EZLN, Chiapas ainda é o mais pobre de todos os 31 estados mexicanos. Estima-se que 75% da população era pobre em 2012. Aproximadamente um terço da população vive no que os geógrafos governamentais chamam de “extrema” pobreza. O Subcomandante Marcos – finalmente identificado como um irmão distante de um congressista mexicano, um rebelde de uma família rica do estado de Tamaulipas – basicamente desapareceu. Em algumas declarações atribuídas a ele que vazaram pela internet nos últimos anos, ele parece cada vez mais desequilibrado. Alguns até duvidam que Marcos esteja vivo.

Cruz apontou que o EZLN definitivamente não começa nem termina com Marcos. Novas gerações de líderes, talvez não tão confortáveis com a mídia como o ex-porta-voz fumante de cachimbo, estão levando o zapatismo para o século XXI. “Em 20 anos, temos gerações: crianças nascidas em 1994, ou crianças filhas de pais zapatistas”, disse Cruz. “São a nova geração da guerrilha.”

Hoje, enquanto os zapatistas em Chiapas celebram 20 anos desde seu levante, não posso dizer que a rebelião deles foi um sucesso total. Acho que o legado da revolta é evidente de uma maneira mais ampla.

Nos últimos três anos, forças comunitárias armadas autogovernadas brotaram por todo o México. Esses justiceiros não estão de brincadeira. Os grupos estão respondendo às ameaças do crime organizado às suas comunidades: extorsões, sequestros e roubos. Eles montam bloqueios nas entradas das cidades e  banem ou prendem pequenos criminosos, no melhor estilo tolerância zero. O movimento de polícia de autodefesa em estados como Michoacán e Guerrero pode não ser descendente direto do levante do EZLN em Chiapas, mas seu ímpeto é exatamente similar – cidadãos tomando o controle de suas questões quando o governo não quer ou não pode fazer nada.

Se as coisas chegassem a esse ponto, você não faria o mesmo?

Daniel Hernandez é editor da VICE México. Siga o cara no Twitter: @longdrivesouth.