A autonomia de Flora Matos

Em tempos de ascensão do movimento de tombamento e empoderamento feminino/LGBT na música brasileira — que infelizmente derrapa em situações um tanto esdrúxulas, como Johnny Hooker criticando Ney Matogrosso por uma declaração supostamente homofóbica —, ser uma artista mulher e não cantar explicitamente sobre feminismo é algo raro hoje em dia, e um pouco fora do comum em gêneros musicais como o pop, o funk e o rap.

Uma dessas artistas mulheres que saem um pouco desse nicho de consumo que se tornou a “lacração” é a Flora Matos. A rapper brasiliense de 28 anos admite que não costuma levantar muito bandeira sobre feminismo nas suas músicas. Isso não significa que ela não apoie o movimento, no entanto. “Eu sou o que sou. Talvez meu feminismo fique mais claro no meu dia-a-dia, na minha postura. Mais até do que no meu discurso”, explicou a rapper em entrevista ao Noisey. De fato, nas 12 faixas de Eletrocardiograma, seu disco de estreia que chega às plataformas nesta quinta-feira (7), Flora não recorre diretamente a discursos feministas nas suas letras. É um disco sobre o sofrimento depois uma grande decepção amorosa e, posteriormente, o redescobrimento do amor próprio após um término.

Videos by VICE

“Desde 2010 até o final de 2016, eu vivia uma paixão incondicional por um cara que me inspirava muito. Consegui por alguns períodos adormecer essa paixão, quando me permitia conhecer algum cara ou alguma mina diferente. Mas sempre que eu rompia, percebia que o que eu tinha com ele permanecia vivo”, contou Flora em entrevista ao Noisey. Só que se tratava de um amor impossível, que a rapper só conseguiu dar um ponto final em meados de maio desse ano depois de, em novembro de 2016, esse cara ter sumido da sua vida sem dar nenhuma satisfação. “Em nenhum momento, ele teve coragem de me encontrar pra dizer que acabou. Fiquei confusa e paranoica, porque não sabia o que tava acontecendo e nem por quê. Quando recebia alguma mensagem dele, era dizendo: ‘Vai ser melhor pra nós’”, desabafa.

Muito brava, confusa e emocionalmente desequilibrada, Flora foi fazer terapia e dar sequência no seu álbum, no qual ela vinha trabalhando desde o lançamento da sua mixtape, Flora Matos vs. Stereodubs (2010). “Fui produzindo e compilando as letras e, lá pelo final dessa produção, cheguei à conclusão de que a maior parte das músicas que eu tinha escrito falavam basicamente do mesmo assunto, só que em situações e momentos diferentes”, explica a rapper. Por isso, ela acabou descartando algumas poucas faixas que não tratavam sobre essa sua experiência amorosa do disco. “Resolvi dedicar esse disco a essa vivência que tive. Falar de amor, paixão doentia e entrega total. E marcar esse momento de libertação em que o nosso amor próprio renasce e a gente se dispõe a amar e ser amada outra vez.”

A faixa de abertura do disco se chama justamente “Perdendo o Juízo” e fala sobre o começo dessa paixão proibida. O disco passa por faixas como “Parando as Horas”, em que Flora reconhece que esse relacionamento é errado, mas mesmo assim “vai contando as horas” pra ver esse amante de novo; “15 pras 11”, quando ela percebe que talvez já não esteja mais dando tão certo com esse cara; e fecha com “Preta de Quebrada“, música sobre ela se reerguendo pós-término que contém um sample sobre lucidez e amor genuíno extraídos de uma palestra da monja budista Márcia Bajja.

Apesar de estar trabalhando em um disco desde 2010, Eletrocardiograma demorou cerca de oito meses para ficar pronto. Nesses sete anos, Flora chegou a produzir uns quatro discos diferentes, mas teve conflitos com empresários, gravadoras e produtores sobre o seu trabalho. “Eu acho que a pessoa mais indicada pra dizer se sua a arte está boa é o artista. E muita vezes, durante todo esse período, eu não fui ouvida”, conta a rapper. “Quando um grupo inteiro pessoas te diz que sua música está perfeita e você não concorda, você é tirada de louca. Aí o meu sangue sobe um pouco. Porque é meu trabalho, meu nome, minha alma, minha cara. E quando meu sangue sobe um pouco, as pessoas ficam ofendidas comigo.”

Para poder sentir que tinha mais autonomia sobre o seu trabalho, Flora também ajudou a produzir algumas faixas do disco, junto com Iuri Riobranco, Wills Bife, Nave e Sants. “Foi de total importância eu me envolver na produção, porque eu gosto de imprimir o que eu sinto e, dificilmente alguém vai conseguir fazer isso por mim sem a minha colaboração nisso”, explicou a MC. “A não ser que eu ouça um beat pronto e fale: nossa quero escrever pra esse beat e não precisa mudar nada nele”. Desse disco novo, isso rolou com o beat do Sants para “Deixa Brilhar”. “Eu só escrevi e gravei voz, e depois mixei. Mas não mexi na produção.”

Segundo Flora, o fato de ela ser mulher e querer dar opinião sobre a sua música também influenciou nesses conflitos com produtores ao longo desses sete anos. “Muitos [dos homens produtores] não querem tentar te entender. E se o que você fala não está de acordo com o que eles acham, eles acabam desistindo. Pro ego de um homem aceitar ‘ordem’ de mulher — mulher que ele nem come, então —, parece ser uma tarefa praticamente impossível”, reclama Flora.

O responsável por ajudá-la no processo inteiro do disco foi o produtor Iuri Riobranco. “Ele me ouvia e traduzia o que eu tava querendo dizer pra os engenheiros e técnicos de som. E também conseguiu uma pessoa que sentasse do meu lado e me ajudasse a mixar as músicas do jeito que eu queria.”

Foi por causa de uma treta como produtores, inclusive, que a faixa “Igual Manteiga” acabou não entrando em Eletrocardiograma. “Eu tinha um álbum pronto com ele praticamente.Tinham 12 beats, seis desses tinham sido produzidos em parceria comigo, os outros cinco eram dele. Depois de alguns meses adiando de dar continuidade ao meu disco, ele me disse pra escolher apenas cinco desses 12 beats. Achei uma puta falta de respeito. Saí fora e comecei outro disco do zero”. “Igual Manteiga” foi produzida por Pedro Lotto.

No quesito de produção, o disco tem um pouco de trap, soul, disco, e até uma faixa acústica, “Como Faz”. “Durante esse período ouvi muito Chic, Marvin Gaye, Leon Ware. E mergulhei no trap também, que ainda é muito tabu por aqui, ouvindo Travis Scott, Young Thug, Migos, Future”, disse Flora, que vê muitas semelhanças de ritmos baianos e nordestinos no trap. “Mesmo que os timbres sejam de rap e mesmo que o toque do tambor não esteja presente ali, eu consigo ouvi-lo. É coisa de louco mesmo. Isso influenciou bastante em algumas faixas do meu disco.”

Quando Você Vem“, que Flora tinha lançado em janeiro, ganhou uma nova versão para o disco, com participação do cantor Ahrel Lumzy, fundador da banda do D’Angelo. “Ele estava no Brasil em turnê com a Akua Naru e apareceu de surpresa no estúdio quando eu estava gravando. Convidei ele pra fazer um som comigo. Casou tudo muito bem, achei que trouxe uma força um brilho muito bonito pra faixa. E ele ainda disse que lá pelo final da música minha performance vocal lembrava a Queen Patra. Fiquei me sentindo muito foda (risos).”

O próximo álbum de Flora não deve demorar tanto tempo para sair quanto esse. Ela já está o produzindo e pode ser que ela o produza praticamente inteiro sozinha. “Durante esses processos de desistências, recomeços, produções, a única maneira de buscar me acalmar e não desistir foi tentando aprender na marra a fazer o que não estavam dispostos a fazer junto comigo. Então eu instalei o Logic [programa de produção musical]
no meu computador e coloquei a mão na massa e aprendi muita coisa.”

Essa atitude de se impor e querer ter autonomia artística sobre sua arte talvez seja o que Flora quis dizer sobre o seu feminismo ficar mais claro na sua postura no dia-a-dia do que nas suas músicas. Afinal de contas, não são só letras empoderadoras que determinam a força e a importância do trabalho de uma artista mulher.

Leia mais no Noisey, o canal de música da VICE.
Siga o Noisey no Facebook e Twitter.
Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter e Instagram.