Uma atualização foi feita nesta matéria às 17h do dia 9 de setembro de 2016.
Está na boca de quem cola no fluxo da perifa ou em festa de boy: a Marcone é baile de favela. E é mesmo. Na Favela do Marcone, no lado norte de São Paulo, acontece todo fim de semana um fluxo de funk que fecha as ruas da quebrada. A música é alta, a batida é forte e a festa vai até o amanhecer.
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Mas se o hit “Baile de Favela” é democrático, o fluxo em si, não é. Quem curte a festa é a molecada pobre que mora ali por perto. Uma turma cheia de vontade de viver e sem qualquer outra opção de rolê. No sábado, dia 23 de abril, fazia calor em São Paulo. Impossível de ficar em casa. O baile estava abarrotado e a PM não demorou a chegar.
Douglas Santana tem 12 anos. Ainda é muito moleque pra colar no baile. Mas não pra observar quem chega. Era isso que ele fazia umas onze horas da noite sentado na cadeira de uma lanchonete. Acontecia por lá um aniversário onde estavam o irmão mais velho do menino, de 15 anos, outras crianças, mulheres grávidas e famílias inteiras. Uma festa comum, apesar do local ser bem em frente à rua que dá acesso ao funk da Marcone.
Quando a PM chegou o papo foi esse: ninguém ali queria confusão. Mas não teve muita conversa. As bombas pegaram todos de surpresa. Teve correria. Douglas ficou pra trás. “Na hora que eu já estava saindo, ele jogou a bomba. Eu corri. A bomba veio assim, parou na minha frente e estourou”, lembra o garoto.
Os estilhaços machucaram o braço de Douglas. Em seguida, veio a bala de borracha. “Eu senti quente, quente, assim ó”, explica o menino apontando para o olho esquerdo.
A partir daí, as lembranças ficaram confusas. Sangue, muito sangue. Um dos adolescentes que estava na festa viu tudo e voltou pra ajudar Douglas. Implorou para que os PMs o socorresse. Mas como resposta, ouviu um “sai de perto para não sujar a viatura”.
As bombas não paravam. Um motorista que passava pelo local viu Douglas muito ferido e aceitou levá-lo para o hospital.
Quando a mãe do menino, a dona de casa Vanessa Santana, soube do que estava acontecendo, já era madrugada. O filho era atendido no pronto socorro. Ela recebeu a notícia de que Douglas estava hospitalizado por causa de uma bomba e nem se desesperou, já que gás de pimenta em dia de baile de funk na periferia é procedimento padrão da PMSP.
Mas no hospital, a cena foi outra. “Era um cadáver. Um cadáver esperando pra ir pra maca do necrotério”, lembra, emocionada. Aquilo foi tão chocante que a mãe decidiu fotografar o estado do filho, pensando que ninguém acreditaria caso ela só contasse.
Douglas teve de ser transferido porque aquele pronto-socorro não tinha como atendê-lo. O caso era grave. No segundo hospital, ele continuava sangrando. E em meio ao desespero da família, a primeira abordagem da PM. Uma policial feminina ameaçou Vanessa, dizendo que ela seria responsabilizada pelo filho estar na rua à noite. D̶e̶p̶o̶i̶s̶,̶ ̶o̶ ̶t̶e̶n̶e̶n̶t̶e̶ ̶A̶l̶i̶s̶s̶o̶n̶ ̶G̶u̶i̶m̶a̶r̶ã̶e̶s̶ ̶P̶e̶r̶e̶i̶r̶a̶ ̶d̶e̶ ̶S̶o̶u̶z̶a̶ ̶f̶e̶z̶ ̶c̶o̶m̶ ̶q̶u̶e̶ ̶e̶l̶a̶ ̶a̶s̶s̶i̶n̶a̶s̶s̶e̶,̶ ̶s̶e̶m̶ ̶l̶e̶r̶,̶ ̶u̶m̶ ̶o̶f̶í̶c̶i̶o̶ ̶d̶a̶ ̶P̶M̶.̶
Diferentemente do publicado pela VICE, o tenente da PM Alisson Guimarães Pereira de Souza, que atua internamente nos Plantões de Polícia Judiciária Militar (PPJM), não esteve presente na operação ocorrida, tendo apenas expedido e assinado o ofício que foi entregue à mãe do menor, por outro policial.
O documento pedia um exame de lesão corporal. Vanessa conta que os PMs queriam tirar Douglas do hospital para realizar uma perícia. Ela não deixou. “Lembrei do caso Amarildo. Por muito menos, ele sumiu e nunca mais voltou.”
Foram cinco horas de uma cirurgia delicada até que a notícia veio. Douglas sofreu uma lesão irreversível no olho esquerdo. Estava cego. Para sempre.
“Eu perdi a visão, né?”, disse Douglas, chorando muito, ao pai, o encarregado de lhe dar a triste notícia. “Eles tiraram a minha visão…e machucaram o meu braço. Ele quase tirou a minha vida, isso é uma coisa que dói muito”.
DOUGLAS NÃO É O ÚNICO
Há mais vítimas das balas de borracha da Polícia Militar paulista. Em fevereiro de 2012, um menino de 15 anos perdeu a visão do olho direito durante uma blitz na Zona Leste.
Em 2013, Daiane de Oliveira, à época com 17 anos, também perdeu um olho numa abordagem da PM em Paraisópolis, favela da Zona Sul.
Em outubro de 2015, outro adolescente de 15 anos ficou cego após ser atingido por policiais que tentavam dispersar um baile funk na Brasilândia, Zona Norte.
O Estado que cega não age só na periferia. O fotógrafo Sérgio Silva perdeu a visão no centro da cidade, enquanto cobria as manifestações de junho de 2013 .
AÇÃO PEDE FIM DAS BALAS DE BORRACHA
No dia 12 de abril, o Tribunal de Justiça de São Paulo discutiu se é legítimo o uso de balas de borracha para conter e dispersar manifestações – o que inclui bailes funk.
O relator do caso pediu mais tempo para analisar a ação abaixo:
A decisão deve acontecer até o fim de maio.
A doutora em Ciências Sociais e professora da Universidade Federal de São Paulo, Esther Solano, explica que a questão dos bailes funk passa longe da atuação policial. “O problema mais uma vez é enfrentar os desafios sociais com polícia quando deveriam ser questões de políticas públicas. A polícia não é o ator que deveria lidar com estas situações. Fluxo não é questão de segurança pública e sim de políticas de juventude.”
Além disso, a violência da PM gera efeitos irreversíveis na comunidade. “A sociedade defende uma ação repressiva e dura da polícia, mas não nos Jardins, claro, e sim nas periferias que são invisíveis e que não tem voz política. A farda acaba sendo o único rosto do Estado para esses grupos sociais mais vulneráveis”, afirma a pesquisadora.
IRONIA
Há um ano, a família de Douglas Santana fugia da violência de Heliópolis, a maior favela de São Paulo, para uma ocupação do outro lado da cidade. Na Zona Norte, o único local que os acolheu foi a Ocupação Douglas Rodrigues, uma parte ainda irregular da Favela do Marcone.
O nome escolhido para batizar a ocupação, por uma triste coincidência, é uma homenagem a outro Douglas, assassinado pela Polícia Militar em 2013. Ele levou um tiro no coração e, antes de morrer, questionou ao PM: “por quê o senhor atirou em mim?”.
SONHO DE SER PM ACABOU
“Ele amava, conversava, sabe? O policial falava: quer colocar meu boné? E colocava o boné na cabeça dele. Toda vez que passava viatura, ele parava na esquina e ia puxar conversa. Eu briguei com ele várias vezes. Douglas, o que é isso? Você mora em comunidade e vai ficar conversando com policial. Tá louco?”, lembra Vanessa, com uma revolta feroz.
O sonho de Douglas Santana, por incrível que pareça, era ser policial militar. Naquele sábado, a mãe acredita que ele tenha demorado para correr porque queria observar o trabalho da PM.
Era uma admiração imensa. No barraco onde a família mora, fotografias de Douglas fardado. “Tudo o que tinha PM ele queria estar junto”, lembra a mãe. Até o Proerd, curso que a Polícia Militar dá em escolas públicas paulistas, o menino fez.
Os mesmos homens que Douglas tanto admirava tornaram-se seus algozes. Agora, Vanessa aceita tudo do filho. Menos que ele se torne policial. “Desculpa falar, mas se ele quiser, vai pra fora de casa.”
Mesmo que queira, Douglas está cego. “Ser policial, ajudar as pessoas. Agora não dá mais”, chora o menino, com uma dor que vem da alma.
SECRETARIA DA SEGURANÇA DIZ QUE PM TEVE QUE AGIR
Abaixo, na íntegra, a nota da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo:
A PM informa que recebeu, no último dia 23, diversas chamadas de perturbação de sossego na região. A viatura que atendeu a ocorrência chamou reforço por causa da grande aglomeração de pessoas. No local, os policiais foram recebidos a pedradas e, por isso, foi necessária a intervenção da PM. Foi instaurado um inquérito policial militar para apurar o caso. A vítima e sua mãe já foram ouvidas.
São Paulo, 1 de maio de 2016.
Douglas e Vanessa negam que tenham sido ouvidos pela Polícia Militar. O caso foi denunciado pela reportagem à Ouvidoria da Polícia de São Paulo, que cobrou investigação rigorosa da Corregedoria da PM e Ministério Público.