Uma foto em que crianças estão com as mãos para o alto sendo revistadas por soldados do Exército tomou as redes sociais nos últimos dias. As legendas remetiam à intervenção militar no Rio de Janeiro e, na maioria das vezes, não trazia créditos. A imagem, porém, não é recente e foi feita pela repórter fotográfica gaúcha Marcia Foletto, 50, em 1994, quando o advento da fotografia digital ainda não fazia parte da rotina de um profissional da imprensa. Um ano depois, a foto rendeu o Prêmio Finep de Jornalismo. “Apesar de ter sido feita em filme e de eu não ter visto na hora o fotograma capturado, percebi que tinha feito uma imagem com muita força”, conta em entrevista à VICE. “Adultos eram orientados a colocar as mãos na parede e passar pela revista. E essas crianças imitaram o gesto.”
Não é a primeira vez que a imagem feita no Morro Santa Marta, no bairro de Botafogo, circula na internet com legendas distorcidas e atuais. A fotojornalista relata que a viralização aconteceu pela primeira vez há sete anos. “É mais um exemplo de fake news, de informação que circula nas redes e as pessoas compartilham sem verificar a origem”, dispara.
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“Adultos eram orientados a colocar as mãos na parede e passar pela revista. E essas crianças imitaram o gesto”
Nascida na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, Marcia vive na capital fluminense desde 1991, quando começou a trabalhar no jornal O Globo – onde está até hoje atua cobrindo diversas editorias. Ao longo da carreira, ganhou outros três prêmios.
Conheça a verdadeira história por trás do clique emblemático feito por Marcia Foletto na entrevista a seguir, que foi editada para melhor compreensão.
VICE: Você se formou em jornalismo. Como a fotografia chegou na sua vida?
Marcia Foletto: Já no primeiro semestre da faculdade fiz a disciplina de fotografia com uma câmera emprestada pela minha irmã, que é artista plástica. Nesse momento, percebi que essa seria a minha linguagem dentro do jornalismo. Cheguei a trabalhar algum tempo como repórter de texto, mas logo que comprei uma câmera não parei mais de fotografar.
Você é repórter fotográfica d’ O Globo desde 1991. Qual editoria você mais cobriu e ainda cobre?
Já trabalhei para todas as editorias, inclusive cobrindo esporte. Mas, agora, a minha área de atuação é cidade e meio-ambiente. Quase sempre estou envolvida em matérias especiais para a edição de domingo.
Vamos para a história por trás da foto das crianças. Qual era sua pauta naquele dia?
A foto foi feita em 1994, durante uma ocupação do Exército no Morro Santa Marta, em Botafogo. Soldados estavam na entrada da comunidade e revistavam todos que entravam e saiam. Existia a denúncia de que crianças estavam sendo usadas para entrar e sair com drogas, então, elas também tinham as mochilas vistoriadas pelos soldados. Essa foto foi feita já no final da tarde, quando as crianças estavam voltando da escola. Adultos eram orientados a colocar as mãos na parede e passar pela revista. E essas crianças imitaram o gesto. A foto mostrou vários estudantes, com idade entre 8 e 12 anos, com as mãos encostadas na parede, sendo revistados por soldados fortemente armados. A imagem foi publicada no capa d’ O Globo no dia seguinte e chocou o país. Imediatamente, o Ministério do Exército deu entrevistas e suspendeu a revista em crianças.
“Existia a denúncia de que crianças estavam sendo usadas para entrar e sair com drogas”
Você lembra do dia em que fez a foto? Na hora, qual foi o sentimento?
Lembro de ter passado o dia todo na entrada do morro. Durante esse período, várias crianças foram revistadas. Mas quando elas imitaram o gesto dos adultos e colocaram as mãos na parede, imediatamente percebi que a imagem era muito forte. Fuzis e metralhadoras não deveriam chegar perto de cadernos e uniformes escolares. E que risco essas crianças representavam para ser inspecionadas dessa forma tão agressiva?
Essa foto já era digital ou foi feita em filme?
A foto foi feita com filme. Ainda não utilizávamos equipamento digital naquela época. Então, só tivemos certeza da foto quando retornei ao jornal e o filme foi revelado. O editor de fotografia da época, Anibal Philot, nem chegou a fazer uma cópia para mostrar para os editores da redação, ele pegou o filme recém-revelado e já mostrou a imagem que tínhamos da cena.
Você lembra qual equipamento utilizou nessa foto?
Fiz a foto com uma câmera Canon EOS-1, e a lente foi uma 16-35mm. O filme não lembro com certeza, mas acho que foi um Kodak Tri-x 400.
É uma imagem extremamente emblemática e, não à toa, foi premiada. Na hora do clique você imaginou que seria uma grande foto?
Sim, apesar de ter sido feita em filme e não ver na hora o fotograma capturado, percebi que tinha feito uma imagem com muita força.
“Apesar de ter sido feita em filme e de eu não ter visto na hora o fotograma capturado, percebi que tinha feito uma imagem com muita força”
Não é a primeira vez que ela viraliza nas redes sociais. Quando ela começou a circular?
Eu acho que foi há uns sete anos, depois da ocupação das forças armadas no Complexo do Alemão. Ela entrou novamente nas redes na ocupação da Maré, durante as Olimpíadas, em outubro de 2017 e agora.
Quais tipos de conteúdo eram veiculados com a foto? Quero dizer: as legendas faziam referência à pauta ou traziam informações distorcidas?
Essa foto sempre circulou nas redes como se fosse atual, com local e data errados. A primeira vez, quando ainda tinha Facebook, me preocupei em procurar o autor da postagem e contar a verdadeira história da foto. Em outras vezes, algumas pessoas que conheciam a foto desmentiam ou então me avisavam. Em várias ocasiões dei entrevista para sites que contaram a verdade sobre a foto.
Com a intervenção militar no Rio de Janeiro, ela voltou a ser compartilhada como se fosse atual. Como você vê isso tudo?
É mais um exemplo de fake news, de informação que circula nas redes e as pessoas compartilham sem verificar a origem e se é verdadeira. E o impressionante é que eu, como autora da foto, não tenho o mínimo controle sobre esse fato. O máximo que consigo é cumprir meu dever de jornalista e contar as circunstâncias em que a foto foi feita.
Mas sei que isso acontece porque, embora esta foto tenha sido feita há 23 anos, a situação de violência no Rio nada mudou. Essa imagem poderia muito bem ter sido capturada na tarde de ontem, em qualquer região pobre do Rio de Janeiro. Crianças são as que mais sofrem, deveriam estar estudando e brincando, mas convivem com tiros e armas, perdem aulas, perdem perspectivas. Nesses anos, muito pouco foi feito pela educação – a única coisa, na minha opinião, capaz de realmente produzir algum resultado na guerra urbana contra o tráfico de drogas, capaz de dar cidadania, emprego e oportunidades.
Mais do trabalho da Marcia Foletto em seu site.