Eram quatro da manhã do dia 08 de outubro quando cerca de 200 pessoas se organizavam em um grande círculo e rezavam um Pai Nosso e uma Ave Maria em frente à casa de Dona Fran, no bairro de Itaquera, Zona Leste de São Paulo. Dona Fran, 68, é mãe de Francisco Carlos da Silva, 46, também chamado de Fran: romeiro, maratonista, candidato a vereador não eleito pelo Partido Trabalhista Nacional (PTN) em 2016 e organizador da 16ª romaria de Itaquera em direção a Aparecida do Norte.
A primeira das romarias organizadas por Fran contava apenas com sete pessoas. Em 2016, no entanto, os números aumentaram exponencialmente, tudo na base do boca a boca. Além dos 200 romeiros reunidos, Fran também providenciou um ônibus amarelo (onde lia-se “grande irmão” na lataria) para quem se cansasse no caminho, dois caminhões carregados de água e banana e mais três carros de apoio para mais alguma ajuda necessária.
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Foram 170 quilômetros percorridos a pé pela rodovia Dutra divididos em três dias e meio — o primeiro dia foi, de longe, o mais difícil de todos. São 63 quilômetros até a parada final, apelidada carinhosamente pelos romeiros como “hotel 5 estrelas”, um prédio abandonado ao lado de um posto de caminhoneiros onde é possível comprar pão de semolina a R$7 e ursos de pelúcia gigantes a salgados R$120.
No segundo dia, foram mais 47 quilômetros e no terceiro 43. Por fim, restam ‘apenas’ 17 quilômetros na reta final até Aparecida. Na última parte da romaria, quando caminhamos pela parte da manhã, alguns chegaram à cidade por volta das 9h e os mais atrasados completaram o percurso ao meio dia. Tudo para chegar à cidade que abriga uma das maiores festas católicas do Brasil, reunindo mais de 100 mil pessoas, em homenagem à padroeira do país, Nossa Senhora Aparecida.
Nós, Pétala Lopes e Camila Svenson, do Coletivo Amapoa, decidimos acompanhar o percurso a pé relatando como foram os três dias e meio de caminhada ao lado de bravas mulheres que encararam o percurso até Aparecida em busca de agradecer graças alcançadas e na expectativa de terem suas vidas transformadas.
1º dia: uma dor de cada vez
Tínhamos uma caixa pequena de band-aid e os calçados mais inapropriados possíveis para uma caminhada tão longa: uma bota de trilha para neve e um tênis de corrida recém-comprado. Logo na primeira parada, as mulheres já passavam vaselina nos pés, que, nos contaram, servia para evitar bolhas — isso porque elas vão aparecer, você queira ou não. Aparentemente existe uma sociedade secreta no mundo que sabe lidar com bolhas nos pés, e nunca soubemos disso. O processo é simples: furar a bolha com uma linha de costura, deixar linha no pé até o final da caminhada para que esta drene o liquido que está dentro da bolha estourada.
As mulheres formavam o grupo mais disforme entre os romeiros. Desde senhoras católicas com batom rosa na boca, passando por umbandistas e adolescentes pagadoras de promessas. Luísa, 65, foi acompanhada das irmãs, Tuca e Celeste. Esta foi a quinta romaria de Luísa. Com uma mochilinha pequena, chinelos de saltinho e meias brancas — “Eu só uso salto” —, ela vai a Aparecida anualmente pedir a cura da doença do marido e também agradecer outras graças alcançadas.
Talvez a questão principal do ato de caminhar, retirando qualquer pragmatismo religioso, seja o exercício de estar presente em um lugar. Nos disseram que aqui cada dor tem que ser sentida e curada de cada vez, não dá para se afobar pensando na chegada — caso contrário, o psicológico não funciona.
Uma das primeiras mulheres que cruzaram nosso caminho e que acompanhamos até o final foi Patrícia, uma baiana natural de ilhéus — chamada de Baiana —, umbandista e filha de Ogum. Patrícia falava alto e andava espaçado. Cuidadosa, ficou logo conhecida como a mãe de todos — e talvez nos tenha fornecido todo o seu estoque de esparadrapo e meias extras. “Todo mundo passa por isso de caminhar sozinho uma hora, e passa coisa pra caramba na sua cabeça”, disse ela, em certo momento.
Neste ano, Patrícia também levou à romaria as sobrinhas Larissa e Talita que vieram de Ilhéus, no interior da Bahia, especialmente para caminhada. Larissa Gila, 30, comparou a caminhada com a festa pagã mais conhecida do país: “Eu tô me sentindo como se tivesse pulado sete dias e meio de carnaval em Salvador”.
2º dia: o que é essa tal de fé?
“O que explica essa tal de fé?” foi certamente a frase que mais ouvimos no caminho. A pessoa sai de casa para caminhar 170 quilômetros em uma rodovia seca, árida. O que explica isso? Isso porque diferentemente de muitas trilhas e longos percursos que as pessoas fazem pelo mundo, o trajeto até Aparecida do Norte não tem absolutamente nenhum atrativo. A vegetação das rodovias do estado de São Paulo é sempre a mesma, a estrada é permanentemente quente, o céu azul e cheio de nuvens e o próprio ato de caminhar está completamente ligado a um processo interno — de exaustão e vulnerabilidade.
No segundo dia de caminhada, acordamos no hotel cinco estrelas às 4 da manhã. Alguém nos deu um pedaço de bolo e um café com leite adoçado. Os romeiros mais agilizados já se encontram em um círculo para a reza, prontos para partir.
As mulheres da romaria parecem formar uma espécie de célula colaborativa, todas sempre prontas para ajudar, ou conversar enquanto o tempo não passa. Logo na primeira parada de descanso ouvimos de alguns homens frases como “mas vocês já estão cansadas?”, “já desistiu?”, “essa bota não é o calçado correto, você não vai conseguir”. Por outro lado, as mulheres da romaria funcionavam como uma fortaleza de apoio, sem nos questionar sobre nada, apenas estavam ali, querendo ajudar.
Eu, por exemplo, perdi as minhas botas, e meu pé amanheceu no segundo dia com uma bolha de cinco centímetros na sola. Foi assim que pedi para baiana linha e agulha.
Assim como Baiana, na peregrinação há também muita gente da Umbanda, do Candomblé. Há pessoas com contra egun nos braços, um traçado de palha da costa, que serve de proteção, outras com jaquetas de couro com a palavra “xangô” escrita, palavras como cigano e também uma senhora que me disse que tinha muito “macumbeiro” na romaria.
No percurso, inclusive, uma igreja adventista nos serviu de apoio, prova de como a peregrinação parecia mesmo sincrética — houve relatos de que havia até mesmo um budista entre nós.
Na nossa pausa para o sono do dia, os romeiros se concentram em um salão desativado. As paredes eram amarelas, o pó cobria toda a extensão do lugar e, no fundo, havia um móvel com os letreiros caídos onde lia-se: “rodízio”. Talvez o espaço tenha sido uma churrascaria, agora abandonada. Quando escurece, um carro de apoio foi buscar as pessoas que ainda estavam no segundo dia de caminhada. Carmem, 41, chegou ao nosso espaço de descanso chorando, e abraçou uma das meninas por não ter conseguido andar o percurso inteiro a pé.
Todos dormiram meio espremidos. Percebemos que a luz foi apagada depois da meia noite, quando os últimos romeiros chegaram.
3º dia: cada um no seu ritmo
No terceiro dia não adianta olhar pra pessoa da frente e querer alcançar a chegada. Também já não é possível voltar. Cada um vai no seu ritmo. Foi o que percebi depois de caminhar pouco mais de 10 quilômetros e ir para o ônibus de apoio, onde vi que o número de “desistentes” tinha aumentado muito — quase todos os lugares estavam ocupados, as malas amontoadas em cima dos bancos.
No ônibus encontramos muita gente com problemas de circulação, dor na panturrilha, bolhas de sangue nos pés. A maioria das pessoas tinham entre 30 e 50 anos. Os mais idosos da romaria não desanimavam, era realmente impressionante.
Eram 22h, quando Talita, uma romeira que estávamos acompanhando, chegou ao ponto de apoio chorando, com muita dor e pés inchados. Abraçou a Patrícia, a baiana, e desabou. Chorou alguns minutos. Outras romeiras chegaram perto dela, deram as mãos e fizeram carinho. Todos estávamos muito cansados e a noite pela frente não seria fácil.
Tomamos umas cervejas junto com as meninas do grupo “do fundão” (pessoal que fica por último na estrada e geralmente são os que chegam mais tarde nos alojamentos também). No meio da conversa entre algumas cervejas, descobrimos que existem restaurantes na estrada que cobram de acordo com a cara da romeiro — um deles, chegou a cobrar R$ 15,90 em um bauru. Quando comentamos isso com algumas romeiras, riram da nossa cara nos dizendo que parecíamos patricinhas.
Dia final: firme, forte e feliz?
Firme, forte e feliz é o lema dos romeiros, escrito na parede da casa de Dona Fran, ao lado do desenho gigante da Nossa Senhora de Aparecida. No último dia da peregrinação, sempre que nos veem com a cara fechada, a pergunta é repetida.
Na reta final, estava bem difícil ser feliz. Acordamos extremamentes angustiadas. Cansadas, depois de dormir cerca de cinco horas ao relento em um posto de gasolina, com vento no rosto e o barulho dos carros na estrada. É um desgaste absurdo, puro psicológico.
Enquanto os romeiros rezavam o Pai Nosso antes de partir para os últimos quilômetros, Pétala chorou sem entender muito bem o motivo da emoção. Mas parece ter sido uma mistura louca de fadiga e superação.
Decidimos que acompanharíamos os primeiros romeiros a sair do último posto de apoio e fomos umas das primeiras a chegar no ponto final da rota, na placa que dizia faltar um quilômetro apenas para Aparecida.
Chegou uma hora em que não sentíamos mais os pés, mas não era possível pensar em parar, pois doeria mais, e já estávamos quase no final da rota. Foi então que encontramos a corredora profissional Isabel Ferreira, 38, que nos deu um superestímulo, nos fazendo caminhar num mesmo ritmo — chegamos a fazer três quilômetros em 25 minutos. Na reta final, percorremos os 17 quilômeros restantes em duas horas.
Nos últimos quilômetros, vimos alguns pares de tênis abandonados na estrada.
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