Fui a Carcavelos aprender sobre hip-hop e ver o Benfica-Chelsea



Depois de ter andado a levar uma ensaboadela de hip-hop do DJ Enigma, uma das maiores referências portuguesa do género, achei que o melhor que podia fazer era juntar-me a ele e aprender qualquer coisa. Aproveitei o jogo do Benfica para saber mais sobre o hip-hop português.

VICE: Jorginho, AKA DJ Enigma, manda bala! Quando é que começou a cultura do hip-hop em Carcavelos?
Dj Enigma:
Pá, lembro-me do hip-hop em 1984. Não tenho a noção da época, porque era puto, na altura. Mas recordo-me de ouvir com sete anos, há quase 30.

Entretanto, jogávamos um Benfica-Barcelona no PES.

Mas já estás assim tão cota? Não podes dizer isso ao teu público…
Tinha seis anos quando comecei a dançar break.

Quando é que começaste com a arte de misturar hip-hop?
Sempre tive uma queda para a música. Fui, desde cedo, o responsável pela rádio na escola. O Nelassassin dava umas festas com o DJ Cruzfader em Cascais no Beatclub e eu ajudava o Nélson (aka Nelassassin) a produzir a cena. Depois, comecei a cansar-me, porque não havia gajas. As gajas que iam lá eram sempre as mesmas: a irmã de alguém, a namorada de alguém… E para gajos solteiros é necessário ver umas damas. Na altura, dançava e ia muito a Nova Iorque com a companhia de dança do meu irmão. Com essas viagens estudava maneiras das miúdas estarem presentes nas festas e gostarem mais de hip-hop e de r’n’b. Já nessa época tocar r’n’b era ser fake, significava que me estava a vender um bocado.

Fala-me dessa relação de família.
Eu, o Toni aka Toni Moka [do Batida] e o Nelassassin vivemos muitos anos no mesmo bairro. O Toni era o companheiro do basquete do meu irmão mais velho. A mãe do Sagaz é minha vizinha. E como todos os miúdos de bairro, um gajo aprende a gostar dos Tupacs, dos Biggies. Sempre fui mais Notorious BIG porque a minha cena era mais festa.

O que mudou na tua vida quando foste para a América?
Notava que uma das rádios de que mais gostava nos Estados Unidos — e que gosto até hoje, gostava de ter uma igual em Portugal — era a HOT 99.7. Reggae e dancehall o dia todo. Um gajo vinha para cá e o hip-hop era muito mal-visto e mandavam-me bocas do género: “Gostas de hip-hop? Não sabes nadar, yo!” Cresci a ouvir punk e isso não significa que sou maluco. Nesta época, o hip-hop era associado ao crime. Éramos todos rotulados de bandidos, mas o que eu curtia era o surf.

Só que o teu caminho não foi fácil, certo? Mesmo gostando de surf e betas da Parede [risos].
Comecei na pior discoteca africana para tocar hip-hop: a Cave Adão, onde paravam os gangsters dos bairros todos. A discoteca era ao lado de uma esquadra da polícia e, mesmo assim, o tráfico era enorme. Depois, tive a oportunidade de rumar para o Convento e fiquei seis meses. Queria tocar a minha música. Mas até numa discoteca africana havia preconceito contra o rap e contra a maneira como nos vestíamos. O típico da ementa. Roupa cara, mas XXL.

E o bling bling?
Na altura, não havia distinção entre o gangster hip-hop, underground e o bling bling. Foi a cultura r’n’b que abriu essas portas. Hoje em dia, posso tocar trap, crunk, down south e o rap que eu não tocava na altura. O r’n’b permitiu-me distanciar desses problemas. Foi uma estratégia. Como sabia que os haters não iam ouvir r’n’b, pude trazer as miúdas giras e o pessoal mais tranquilo. Fazer a festa.

E como é que chegas a uma discoteca mainstream como o Tamariz no Estoril?
Isso foi a geração MTV. Foi a cena da “Where is the Love” dos Black Eyed Peas, da “Always on Time” da Ashanti… A MTV abriu portas, mas não havia DJs. Era o Cruzfader, o Nelassassin, mas a noite estava fechada. Todos sabemos que a noite era feita dos amigos dos amigos. É a noite portuguesa.

Aqui em Carcavelos, o hip-hop já está democratizado. Vais a todas as festas? E as pitas do Estoril já rebolam como as damas no bairro?
Exactamente. Mas olha que eu não tinha promoção. Havia muito preconceito. Mas a verdade é que o puto do bairro começa a dar outra cor à noite.



Golo do Benfica no PES, 4-2.

Depois há o fenómeno das festas r’n’b sessions, das quais foste o mentor.
As primeiras r’n’b sessions foram as minhas. Depois houve outras, associadas ao bling bling e ao lado mais mainstream. Era a única maneira de desmitificar o que já estava encriptado no cimento do bairro. Hip-hop é gangster! Foi trazer os valores da festa para a noite lisboeta, foi um tiro no escuro [risos]. Foi a primeira festa a assumir o show case. O pessoal pensava sempre que estávamos a falar de fazer concertos. Mas não era! Estávamos a falar de 30 minutos, a compilação dos teus melhores temas e eu pago-te por isso.

E quem foram os primeiros a entrar no desafio?
A primeira foi a Lady V. Inicialmente, em 2007, foi a única que aceitou. Tivemos SP Wilson, o lançamento de Makongo foi feito em Lisboa e em Almeirim, os Major Army, luso cabo-verdianos, que estavam de passagem para Nova Iorque e que eram completamente desconhecidos, mas super organizados e já tinham a comunicação preparada. O showcase fazia todo o sentido. Depois, outros vieram. O DJ Ninja da Eslovénia e o Soulshock da Noruega. Os portugueses: Maskarilha, Nelassassin, o pessoal daqui. Os que podiam. E foram muitos! Depois de sair das r’n’b sessions, há um período duro. Já que hoje vamos falar de futebol, a travessia do deserto do DJ. Que todo o DJ passa. Fiz muita coisa, toquei muito lado, Almeirim, Santarém, etc. Estive no Algarve, no Bliss, no Sudoeste. Já fiz montes de coisas.

Qual é a diferença entre Lisboa e Porto?
O Porto fica com a cultura underground e Lisboa com a mainstream. No Porto, o pessoal não teve de dividir a cultura negra da branca no espectro musical afro-americano. Faço-me entender?

Sim.
Em Portugal, infelizmente, há mais MCs do que ouvintes. Percebes a cena?

Ya.
O pessoal não promove o outro MC. Não há partilha. Compro hip-hop português e não é por causa da ASAE. Tenho prazer em ouvir e partilhar o que se faz em Portugal. No meu set, tenho imensas bandas portuguesas, mas não sinto o props. O pessoal das bandas não te dá uma música para ouvires! O DJ já não faz parte do plano de promoção.

Mas tu estás sempre rodeado na cabine. Ou é só o pessoal para a fotografia?
Não. Há muita gente que me procura musicalmente, mas depois tenho de filtrar, porque as produções são fracas. Não há conteúdo. Aconselho sempre para fazerem dois ou três temas mainstream, nos quais o conteúdo não é muito e as pessoas não percebem, e depois podem fazer o que quiserem. Um álbum tem 16 músicas!

Hoje, temos a Liga Europa e também temos de falar de futebol [risos]. Qual vai ser o resultado final?
Pá, vai ser difícil. Estou com a fezada. Benfica com dois, Chelsea com um.

Qual é o jogador do Benfica que melhor espelha a tua carreira?
Não vou dar um nome, seria ingrato para o Benfas. Mas seria um distribuidor de jogo.

Vou arriscar: Rui Costa. Pela tua fraternidade na noite lisboeta com valores para lá do dinheiro. Tu sempre foste música da mesma maneira do que o Rui sempre foi futebol.
Só procuro ser o melhor possível e agradar. Sei que é complicado, mas a cena dos discos pedidos irrita qualquer DJ. Já tive um nigger a pedir Sean Paul, quando estava a passar Sean Paul. Mas isto é recorrente.



E além dos discos pedidos, pedem-te drogas?
A mim, não. A mim oferecem-me, mas não é a minha cena.

Drogas de borla na noite? De que tipo?
Ui, tudo. MDs, ácidos, branca, cogumelos…

Qual é a droga do hip-hop?
A erva. É claro! Sem dúvida, nenhuma. Então, mano? Não tem químicos. Só sol e água. Aqui falta um elemento mais importante: respeito! Pessoas que lutem em prol do mesmo. Elevar o hip-hop.

Entretanto, desligámos o PES e ligámos o jogo real. Benfica-Chelsea, com muito respeitinho. Juntámos a família em casa e tivemos festa! Já depois do jogo…

Enigma, 2-1 para o Chelsea. Acertaste no resultado, mas falhaste no vencedor. Qual é o sentimento?
Muita frustração. Mais uma vez, perdemos aos 92 minutos! Este é o Benfica da maldição dos 92. Jogámos muito, mas o Chelsea foi duas vezes à baliza do Benfica e fez golo. Merecíamos muito mais. Os seis milhões, que hoje são dez milhões, mereciam muito mais. Morremos na praia.

Fechámos o tasco e fomos para a Swag On. E, mais uma vez, o DJ Enigma fez a festa para uma casa cheia. No crowd, não faltaram o Valete, o Glue, o Rainner e outros amigos. Mesmo ao lado do local do crime: a Praça do Comércio, onde milhares de benfiquistas choraram o sétimo episódio da maldição do Béla Guttman. Isca-se!