Fui à exposição da futura primeira-dama de São Paulo

Não sei bem como começou; quando dei conta, eu estava no Memorial da América Latina numa segunda à noite, de bermuda e tênis surrado, no lugar do crítico que escreveria sobre a expo de arte sustentável da futura primeira-dama de São Paulo, Bia Doria. Não porque manjo do tema, mas por morar a três quadras dali. Jornalismo é isso, né? Critério, suor (32ºC, cara) e voluntariado.

Então é só ir lá, meio que perguntei aos outros editores, uma hora antes.
Isso, responderam.
Tá, eu vou.
Ok.
Tô indo então.
Pode ir, cara.
Fui, hein?

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E fui, né.

Às 19h35 havia, por todos os lados do evento, homens de terno e cabelo com gel para trás. Dentro do salão, onde reluziam 13 esculturas de madeira reaproveitada, poucos circulavam e paravam em frente às obras — na verdade, depois notei, quase todos eram garçons que serviam comes e bebes. Nenhum deles parecia dar bola para o que era exposto. Único engajado, fiz minha pose de apreciação artística, os braços para trás e um olho contraído, e por longos minutos observei que, exceto pela direção do entrelaçamento e a cor da madeira, as esculturas eram quase idênticas.

Curvadas e sóbrias, as obras imitam, segundo descrição da artista, vários movimentos da dança. Confesso que, talvez por causa da altura delas, de três ou mais metros, demoro a visualizar o ballet. Tomo distância e… Nada. Tento de novo e só vejo aquilo que de fato são: árvores mortas sem folhas, uma do lado da outra. Não é com surpresa que percebo que, na descrição, todas levam o mesmo nome: Bailarina da Natureza.

Pouco depois Bia, a artista, cruzou comigo. Rodeada de gente, pediu licença para tirar foto em frente às obras com amigos. Havia algo de turístico na preparação para o clique, quase como quando posamos diante da Torre de Pisa ou do Borba Gato em busca da interação de perspectiva. Depois, afoita, a fotógrafa pediu para que Bia fosse ao exterior, onde, pude reparar com atraso, havia outras obras iguais, só que vermelhas. Um assistente de terno corria atrás dela, ansioso. “Você consegue chegar lá?”, perguntou.

Bia usava vestido longo azul e salto alto. Cautelosa, primeiro cumprimentava os convidados com grito abafado e só depois andava em direção a eles. Senhoras de cabelos volumosos e roupas brancas não paravam de chegar. Entravam no salão, assinavam o livro de dedicatórias e, sem prestar atenção nas esculturas, dirigiam-se para fora onde emissora de TV acendia refletores na cara da protagonista; irradiante, ela atendia a todos com fotos e sorrisos.

Chegou uma hora – 19h47, para ser exato e parecer jornalístico sem motivo – que havia mais gente do lado de fora do que dentro. Era o calor. No interior, os remanescentes não sabiam bem o que fazer. Aceitamos esta taça de água? E este homus, quem passará na torrada? Um cara com a camiseta do Corinthians, um dia depois do título do Palmeiras, legítimo provocador, zanzava pelo recinto, despreocupado, servindo-se de canapés. Estava à vontade. Parecia saber que não há resposta para a grande questão: o que se faz numa inauguração de exposição? Sem os dilemas da alta cultura, petiscava.

Lembrei então do pedido de colega para que eu tirasse selfies em frente às obras e enviasse no grupão do Whats da redação, mas logo avisei que falharia na missão porque, como vocês e o marido de Bia Doria sabem, São Paulo anda um perigo. Tive o celular com câmera frontal furtado dia desses e, de lá para cá, com gambiarra de 2008 em mãos, só me restaram fotos traseiras embaçadas tipo Tekpix.


Fonte que pediu anonimato afirmou que, na altura dos olhos de um ser humano normal, as obras parecem uma reunião de gigantescos pretzels.

Anti-falsificações.

Rodas de conversa. Piano ao fundo. Calor nauseante. Sinto-me em uma sala de espera e vou para fora. Noto que há nove obras expostas no laguinho. Variações sobre o mesmo tema: troncos. As obras do lado de fora parecem melhores, embora o mais justo talvez fosse dizer menos idênticas. A ideia de que caules emergem das águas até que é bacana, dá movimento ao objeto, algo que, apesar das promessas da exposição, não era possível ver nas outras.

Em algumas das esculturas há uma espécie de flor aberta cujo interior está pintado de dourado. Não sei se é a intenção, mas remete a banheiros de shoppings luxuosos e jóias das próprias mulheres que por ali estão. Acho difícil ser uma menção ao consumo, o que não deixa de ser um alívio já que ninguém aguenta mais ver obras com aquela puuuuuta crítica social que, de tanto ser repetida, esvaziou-se. Talvez seja algo puramente estético, decorativo. Nada diferente de um relógio de luxo da Apple. Talvez não haja muito o que interpretar e talvez isso seja a arte e a própria Bia Doria. Talvez seja, ao lado dos helicópteros de Romero Britto, a arte possível em nossa cidade em 2016, fazer o quê. Às vezes temos que amarrar o cardigã no pescoço e abraçar o niilismo empresarial.


Os helicópteros fatiados de Britto representam, talvez por acidente, as inevitáveis aspirações infantis do paulistano. Foto: Divulgação/Assessoria João Doria

Você deve sacar o que digo: a partir dos anos 2000, democratas e corporações americanas em crise com a opinião pública encontraram na defesa do meio ambiente um jeito de parecerem mais generosos. Al Gore e os caras da Alec, a influente organização que une setor privado e legisladores nos EUA, começaram a enfiar na nossa goela consumidora uma imagem de preocupadões com a natureza. Quem iria se opor a isso, afinal? Ninguém precisava crer em nada; bastava ter um selo de que estava dentro das condições recomendadas por ambientalistas que tava tudo certo.

Alguma arte, aos poucos, começou a aderir esse lado verdinho-fofo. Primeiro, por incentivo monetário; depois, tornou a sustentabilidade seu próprio conteúdo. (Se liguem nessa fanfic.br: uma amiga tentou por anos vender sua peça de teatro e só conseguiu patrocínio quando, numa última tentativa, botou na trama um vilão lenhador.) Ao que parece, as artes plásticas também possuem sua versão empresarial, burocrática. Bia talvez seja sua representação máxima e, coincidência ou não, chega (i.e.: aterrisa, se lança, brilha) na hora em que nosso futuro prefeito –o seu marido – não é um político e sim um cara com, cof, tino empresarial. Mas isso quem diz sou eu, um cara que, como afirmei lá no começo, nada sabe.

Enquanto passeio do lado de fora, me intriga uma obra que possui em seu ventre uma espécie de bola amassada de ouro. Poderia remeter a uma parte de cometa ou astro espacial, mas acho mais apropriada a comparação com um Ferrero Rocher esquecido noite afora sobre o resfriador de vinhos. Fico à espreita para verificar a opinião dos outros. Os rostos, porém, não esboçam nada. Parecem não ligar para o todo ou qualquer detalhe. Trata-se, percebo, de arte fática. Uma expressão cujo único objetivo é distrair, uma besteirinha, um papo de elevador – presumo que, nas madrugadas silenciosas do Memorial, se você encostar o ouvido nas esculturas, ouvirá o murmúrio: tempinho louco esse, hein?


Bia em ação. Foto: Divulgação/ Assessoria de Bia Doria

“Não parece um ser alienígena?”, me questionou uma senhora que, de salto, óculos de aro grosso e camisa branca, apontava para a escultura em questão. “Não parece?”, insistiu, e fez cara de reprovação.

Diante da minha nula reação de crítico à paisana, ela saiu pelo portão do Memorial, em marcha, decepcionada (comigo) ou revoltada (com a arte). Tive o ímpeto de ir até ela perguntar quem era e o que fazia ali, mas, como este texto está mais para standup do que para reportagem, preferi apenas narrar a misteriosa intervenção. O corintiano também passou por mim minutos depois, indiferente a tudo, amassando um papel que, a julgar por suas mandíbulas em contração, embalava algum salgado.

Quando acabo de anotar tudo isso, reconheço socialite que está sempre na TV. Ela desce do carro branco com rosto branco e vestido branco, acompanhada de jovem branca. A celebridade posa para fotos num movimento de pernas bem treinado. Tem a naturalidade de uma ginasta olímpica que cai no chão com o pé virado e precisa armar os dentes para as câmeras. Aí rolaram umas piadas insondáveis entre ela e outra socialite que dava entrevistas para um desses programas de famosos. Falou de risoto (pode ser capiroto, ouço mal), que elas se amavam, e deu um riso meio macabro. Pareceu-me irônico ou apenas falso. Capaz de ser assim a comunicação por ali. Tirei uma selfie com a câmera traseira – em que só se via o breu – e voltei para casa. Tempos melhores virão. Ô. Se virão. E o risoto?

Serviço:
“Exposição de arte brasileira sustentável”
Visitações: de terça a domingo, das 9h às 17h, até 18/12
Local: Memorial da América Latina – Salão de Atos Tiradentes
Entrada: Gratuita
Capacidade: 400 pessoas
Estacionamento: Portões 4/ 8/ 15 (não há valet, ok? Ok.)

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