O futebol português a não gostar de si próprio?
Imagem: “Futebol”, por Antonio Thomás Koenigkam Oliveira, via Flickr/Creative Commons

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Opinião

O futebol português a não gostar de si próprio?

Causas (e algumas possíveis soluções) para os recentes e tristes acontecimentos que assolaram o "desporto rei" em Portugal.

Goste-se ou não de futebol, ninguém ficou indiferente ao sucedido na madrugada do dia 22 de Abril. Antes de uma partida entre os rivais da Segunda Circular, um "encontro" entre adeptos de ambos os clube ditou a morte, por atropelamento, de um ser humano.

Há quem tenha defendido que é somente um caso de polícia - também o é -, mas não há como desligar o dantesco acontecimento da realidade pura e dura de um desporto que atingiu o seu grau zero. Nem parece de um país que tem alguns dos melhores atletas, técnicos e se tornou Campeão Europeu de selecções bem recentemente…

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A VIOLÊNCIA NÃO É DE HOJE

Infelizmente, a violência entre as claques não é coisa nova. No início dos anos 90, por exemplo, eu e meia dúzia de colegas tivemos uma experiência que jamais esqueceremos. Num jogo da Selecção Nacional – pois, ainda por cima… -, enquanto esperávamos pelo Metro que nos levasse ao Estádio da Luz, fomos atacados por um grupo de arruaceiros que correu ao nosso encontro e começou a pontapear um dos nossos.

Porquê só um, perguntas tu? Ingenuamente, foi o que se atreveu a levar o cachecol de um clube rival. Completamente despropositado, apesar dos muitos avisos do resto dos seus acompanhantes para não o fazer. Quando pensávamos que a tarde não podia piorar – sim, o nosso colega ficou atordoado, mas lá recuperou do susto -, eis que numa das carruagens super-super-lotadas, alguns jovens rufias andavam literalmente em cima dos passageiros a roubar, ou a pedir "gentilmente", os seus pertences.

Como não era época de telemóveis e outros gadgets modernos, os relógios eram os mais apetecíveis. Eu e o pessoal com quem estava – e não só, certamente -, ao ver esses flagrantes delitos, resolvemos sair na paragem seguinte. Não foi nada fácil e lembro-me de caminhar de gatas, entre pernas e mais pernas, para evitar ficar entalado naquela carruagem. Ufa! Que alívio!


Vê também: "Os hooligans russos"


Hoje em dia, mesmo que tenhamos um policiamento e uma melhor vigilância das autoridades, não há como evitar um facto. Há, dentro de certas claques, muita gente que vê nesse ritual de grupo uma forma de exorcizar as suas frustrações, a pobreza de espírito e as carências de várias ordens. Não vou exagerar como o Nuno Rogeiro (comentador da SIC), que comparou o acontecimento de Torremolinos a um ataque do Daesh – algo relembrado num texto de Daniel Oliveira -, mas tenho a certeza que há quem aproveite a fraca personalidade de alguns adeptos, para uma lavagem cerebral, com o objectivo de os levar a praticar actos violentos. Ou seja, em prol da feroz delinquência, estamos a falar de um barril de pólvora, em que "se junta a fome com a vontade de comer".

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Também tenho ouvido que o foguetório semanal entre alguns comentadores televisivos tem ajudado à "festa". Será mesmo? Vamos lá ver uma coisa. Pelo facto de ouvir alguém que apoia o meu clube, a destilar ódio, não vou pensar em agredir outro indivíduo. Já é péssimo os que estão aos berros num recinto desportivo, a chamar "cabrão", "filha da puta", ou a mandar "foder" fulano, beltrano e sicrano, como se estivessem a competir pelo título de "Gordon Ramsey" da malta. Podemos sentir-nos injustiçados no mundo da bola, mas há limites.

Tudo o que seja violência – principalmente a física – é indubitavelmente escusado. Ainda me lembro de – e passe o exagero da comparação -, há quase 20 anos, culparem Marilyn Manson de influenciar os dois jovens que aniquilaram 13 pessoas em Columbine e, posteriormente, cometeram suicídio. A resposta do músico na Rolling Stone vale a pena ser lida.

OS TRÊS "VILÕES" QUE DIVIDEM O MONOPÓLIO

A palavra inocência não rima com FC Porto, SL Benfica e Sporting CP. Obviamente, falo dos dirigentes, dos departamentos de comunicação, ou de determinados "papagaios", "ventríloquos" e "moços de recados" que os representam – as instituições serão sempre maiores que qualquer individualidade. A sede de ganhar ou mostrar força perante os adversários, tem levado este trio a acções, declarações, ou posts nas redes sociais, como se fossem adolescentes a medir quem tem a maior pilinha.

A sua relação com as claques reflecte uma enorme promiscuidade. Tanta que, às vezes, ficamos sem saber quem manda em quem. Para o bem e o para o mal, a gente que a integra é vista como um braço armado dos emblemas, que bem tentam desmarcar-se subtilmente de algumas atitudes inqualificáveis, mas não castigam severamente quando o deviam, como aconteceu no caso dos cânticos - uns a citar o Chapacoense, outros a memória de Eusébio, ou o very light no Jamor.

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No caso do Benfica, ainda se está para perceber a razão da não legalização de um famoso grupo de apoiantes. É como alguém ter um menor lá em casa, tratá-lo como filho, mas quando ele faz merda não há documentos que provem quem é o responsável. Estranho, no mínimo… Só se espera que as malfeitorias de certas claques não alastrem a outras congéneres em Portugal.

"Se os nortenhos terão o fantasma do "Apito Dourado" (e respectivas escutas e 'fruta'), a assombrar o presente e futuro, os outros dois tão pouco podem falar".

Depois, há acontecimentos bastante nebulosos na história dos três que dominam todas as atenções no que ao futebol diz respeito. Se os nortenhos terão o fantasma do "Apito Dourado" (e respectivas escutas e "fruta"), a assombrar o presente e futuro, os outros dois tão pouco podem falar. Aliás, nas hostes azuis e brancas, há um sentimento de que acabou a era dos supostos favores dos árbitros e, agora, o "colinho" é feito de outras cores.

Para os que estão do outro lado da barricada, pergunta-se como foi possível a equipa do antigo Estádio das Antas, ter saído praticamente ilesa (com a perda de seis pontos) e o Boavista ter descido de divisão. De resto, não faltam casos e mais casos à volta do eterno comandante portista. Com tanta polémica, ao longo dos anos, é caricato ver a comunicação oficial do FC Porto denominar o actual campeonato de "Liga Salazar".

Os actuais representantes benfiquistas gostam de apregoar que não são iguais aos outros, no que concerne à maledicência ou ao jogo de bastidores – e nem vou entrar nos conteúdos da tão propalada cartilha. Além de encontrarmos uma escuta do actual responsável máximo no "Apito Dourado", o mesmo teve, no mínimo, uma frase infeliz sobre o incidente que vitimou um italiano (e apoiante sportinguista) junto das instalações do Benfica. Ao questionar "O que estavam os adeptos do Sporting a fazer ao pé da Luz às três da manhã?", parece relegar a morte - por ventura o segundo assassinato por parte de um fã encarnado (depois do conhecido incidente numa final da Taça) - para uma insignificância tal, que quase parece estar a falar de um golo mal anulado. Sad, sad, sad… Se nos lembrarmos que tiveram um ex-presidente preso no início deste milénio, não faltam nuvens cinzentas para os lados do clube fundado, entre outros, por Cosme Damião.

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O Sporting, visto como "anjinho" pelos outros dois - essencialmente por fazer pouca mossa em termos de títulos conquistados -, ultimamente tem mostrado as garras fora dos relvados. Nem sempre da melhor maneira, com provocações despropositadas nos discursos do seu líder, ou através de propostas delirantes. Ainda para mais, não deve ser fácil justificar junto dos sócios o elevado investimento financeiro no actual treinador e ter somente uma Supertaça para apresentar.

Em termos de processos judiciais, em 2016, Pereira Cristovão, antigo dirigente leonino, foi condenado a quatro anos e meio de prisão, com pensa suspensa, por dois crimes de peculato relacionados com a arbitragem. Como podes ver, mesmo os que não vencem nada de relevante procuram, por meios ilícitos, ganhar poder… Num país onde se tenta comprar árbitros com meia dúzia de euros e umas garrafas de vinho, não espanta.

"(…) se alguma vez pensaste que um Vitória de Setúbal ou um Rio Ave podiam fazer o que o Leicester fez em Inglaterra, o melhor é tentares a sorte no Championship Manager".

A principal razão, que alguns apontam, para que a diferença do poder entre o trio habitual e todos os outros esteja longe de diminuir, passa pela venda dos direitos televisivos. A KPMG, multinacional que presta serviços de Audit, Tax e Advisory, diz mesmo que a venda dos direitos de forma individual cria um maior fosso entre os que estão no topo e as segundas e terceiras linhas. Com a ganância em apresentar resultados desportivos a todo o custo (e ter dinheiro para adquirir craques), não se prevê que haja interesse do FC Porto, SL Benfica e Sporting CP, em mudar o rumo de negócio. O segundo tem mesmo a audácia de transmitir no seu canal (a BTV) as partidas em casa, sendo difícil de acreditar na sua total imparcialidade em situações dúbias.

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Portanto, se alguma vez pensaste que um Vitória de Setúbal ou um Rio Ave podiam fazer o que o Leicester fez em Inglaterra, o melhor é tentares a sorte no Championship Manager. E mesmo aí… Qualquer um dos "três grandes", pode afirmar a qualquer hora do dia ser o paladino da verdade, mas, no fundo, quer é chutar as suas polémicas para canto, dividir o monopólio com poucos (os outros dois rivais) e, de preferência, arrecadando troféus que engrandeçam o seu museu. Business as usual.

ESTADO POUCO (OU NADA) INTERVENTIVO

O futebol não é só "rei" no desporto, mas também o é, invariavelmente, na sociedade. Mas nada de confusões. A cultura desportiva em Portugal é semelhante ao prazer que Fiona Apple teria se tivesse que jantar, à luz de velas, com Trump. Nenhum, nicles, zero. A maior parte do público que segue os meandros do futebol, tem é cultura clubística e quer que a sua equipa vença, custe o que custar (mesmo com lances irregulares), desculpando que os outros também são beneficiados. A beleza das tácticas, das jogadas, ou dos golos, são factores secundários. Se a economia portuguesa é considerada lixo, a cultura desportiva anda pelos canos de esgoto.

O que se tem passado nos últimos tempos, no capítulo da escalada de violência, mereceu uma reacção tardia do Estado e das instâncias que estão sob a sua responsabilidade, como a Liga e a Federação. Em comunicado, Isabel Oneto, Secretária de Estado Adjunta e da Administração Interna, refere que o governo analisa "eventuais medidas" para a diminuição dos "fenómenos de violência no desporto". Num artigo de opinião, no jornal A Bola, o presidente da Liga Portuguesa de Futebol, Pedro Proença, tenta pôr "água na fervura". Claramente, não chega.

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Sabendo que o futebol e a política andam de mãos dadas como se fossem amantes - se juntarmos os empreiteiros é o ménage a trois perfeito dos favorecimentos -, a surpresa da resposta morosa é mínima. Aliás, as negociatas de milhões, envolvendo políticos e clubes, confirma esta mistura explosiva, com o Euro 2004 à cabeça.

O caso da equipa do Canelas, em que as equipas adversárias já tinham expresso o receio em defrontá-la, é um exemplo flagrante da inoperância das entidades que deviam ter marcado uma posição forte, em vez de ir atrás dos prejuízos. Quando a joelhada de um dos seus jogadores a um árbitro apareceu em tudo que é noticiário, chocou muitos telespectadores, menos os que já tinham alertado para "esse" perigo em campo.

A juntar a outras agressões dos árbitros (até em competições entre menores), às patifarias de determidadas claques e ao atropelamento fatal de um adepto, há um "caldo entornado" que exige medidas extremas. Infelizmente, houve sempre por parte dos sucessivos governos, o medo de tocar em poderes instalados e de perder influência junto de instituições que mexem com os neurónios e os gostos (e desgostos) de milhares de pessoas.

O Estado, em vez de prevenir, vai a reboque dos acontecimentos e é também culpado por futuras tragédias que assolem este desporto. O secretário de Estado da Juventude e Desporto, João Paulo Rebelo, recusa a existência de uma "generalização da violência no desporto", mas é evidente que algo tem de ser feito e mudado, nomeadamente na modalidade que centra maior audiência.

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"O futebol é a coisa mais importante dentre as coisas menos importantes da vida" - Arrigo Sachi

Além do vídeo-árbitro, já confirmado para a próxima época, deixo aqui outras ideias para um futebol mais limpo e transparente:

  • Multas mínimas de 20 mil euros quando as claques prevariquem (cânticos estúpidos, incluídos);
  • Casos como o do Canelas, deviam merecer a irradiação do clube de todas as competições por dois ou mais anos;
  • Ser conhecida a lista de adeptos pertencentes às claques, sendo que os cadastrados deveriam ter a aprovação dos agentes da autoridade, para saber se o indivíduo está apto para conviver em ambientes desportivos;
  • Proibir a entrada de prevacaridores e seus cúmplices nos Estádios - com apresentação dos mesmos num posto da PSP durante os jogos das equipas que apoiam;
  • Nos jogos de maior risco, as claques deviam estar, pelo menos, duas horas antes do início da partida, dentro do recinto desportivo, para evitar distúrbios de última hora;
  • Os atletas deviam ser imediatamente punidos no encontro a seguir (com ou sem recurso às imagens televisivas) e não deixar correr o processo disciplinar durante semanas a fio;
  • Os clubes só podem oferecer aos árbitros e aos observadores as suas t-shirts oficiais, águas e pequenos lanches e nada mais;
  • Os relatórios dos árbitros deviam ser públicos na semana imediata à jornada;
  • Impossibilitar um clube de fazer a transmissão televisiva dos seus próprios games, para que não haja risco de isenção;
  • Os "Jogos da Mala", em que uma equipa, alegadamente, paga a outra para vencer uma partida que envolve um seu rival directo na classificação, deviam ser legais;
  • A Federação Portuguesa não deve ter nenhuma claque com elementos pertencentes às "maiores" instituições. No máximo, devia premiar jovens desportistas ou estudantes espalhados por este país fora com bilhetes para integrarem uma especial falange de apoio à Selecção (cá e nos jogos fora).

O actual clima de crispação entre as três "virgens ofendidas" - FCP, SLB e SCP - também nada ajuda a conversas de apaziguamento e, logo, ao aparecimento de soluções credíveis. Se não houver uma anuência sincera entre estes emblemas, a mudança na violência verbal (para começar) será inevitavelmente árdua de atingir.

Por uma vez só, todos deviam dar importância, ao mesmo tempo, à seguinte frase de Arrigo Sachi, antigo seleccionador italiano: "O futebol é a coisa mais importante dentre as coisas menos importantes da vida". Elucidativa e um mote para que cenas de violência - como as que podes ver abaixo, encenadas para um video do músico português Julian Mar Paulson - não sejam comuns.