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'Garotas' Dá a Jovens Negras um Merecido Espaço em Tela

“Tive sete encontros-relâmpagos com jornalistas e, até agora, não transei com nenhum”, diz Céline Sciamma, dando de ombros enquanto sopra fumaça pela janela.

A diretora e roteirista francesa está aqui para falar sobre seu novo filme, Garotas, a história de Vic (interpretada pela atriz estreante Karidja Touré), uma jovem negra que vive nos banlieues de Paris. Vic é uma adolescente passando por um relacionamento abusivo com o irmão mais velho enquanto navega pelos ritos para se juntar a uma gangue: primeiro, uma com três outras garotas; depois, uma gangue mais masculina para a qual ela se torna traficante. Vic luta para aceitar qual exatamente é sua identidade, e essa muda dramaticamente de infantil para sexualizada (e às vezes perdida) durante os três atos do filme.

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Com a ajuda do “mentor” Xavier Beauvois, os filmes de Sciamma alcançam uma estética distinta: composições limpas, blocos de cores e ângulos abertos. Quase toda tomada parece uma fotografia. Apesar de seus filmes poderem ser comparados ao trabalho de Xavier Dolan ou Lucía Puenzo na aparência ou no tema, eles são únicos enquanto obras queer, evitando o ridículo e sendo despretensiosos.

Garotas é o terceiro longa de Sciamma, sua terceira história de amadurecimento e seu terceiro filme passado nos subúrbios. Isso é proposital: ela considera Garotas o último filme de uma trilogia. O tema de suas películas, frisa a diretora, é “a busca por identidade, o jogo ao redor de se experimentar várias identidades diferentes e” – obviamente – “as consequências disso”.

Sua primeira obra foi Lírios d’água, de 2007, a história de duas garotas de 15 anos que se sentem mutuamente atraídas depois de elas se encontrarem num time de nado sincronizado. As bregas fantasias de natação, os filtros de luz coloridos e a trilha sonora do produtor francês de electro Para One dão ao filme um ar de anos 80, tudo sem se submeter ao sentimentalismo barato. Sciamma me conta que esse é o trabalho do qual ela se sente mais próxima em termos de enredo, apesar de nunca ter se envolvido com nado sincronizado.

Seu segundo filme foi Tomboy (2011), que apresenta a história de Laure, 10 anos, que, depois de se mudar para um novo bairro, decide se reinventar como menino. Numa tentativa de convencer as outras crianças de que ela é “Mikäel”, Laure faz um pênis falso de massinha para colocar na sua sunga de natação. A história se desenrola através de momentos inocentes, mas que desconstroem poderosamente os códigos binários de gênero.

Com Garotas, Sciamma coloca a busca por identidade sexual e de gênero dentro do contexto maior da identidade racial de Vic. “Pensei assim: ‘Se vou fazer isso pela última vez, quero que isso seja mais contemporâneo, mais político’.”, ela me explica. “Então, decidi partir para essa história de amadurecimento clássica: uma garota querendo viver sua vida, tendo de lidar com a sociedade, o lugar onde vive, sua família… muito Jane Austen, mas eu queria um rosto jovem e uma personagem negra como minha heroína romântica do século 21.”

Essa decisão visava a dar presença na tela para rostos pouco representados. “Percebi a falta de representação de mulheres – de mulheres negras – e pensei ‘OK, quero filmar essas garotas’. Assim, decidi ir adiante”, conta Sciamma. “Eu podia ter equilibrado as coisas – é o que eu geralmente faço. Mas decidi usar um elenco ‘totalmente negro’, porque achei que esse equilíbrio, que deveria nos dar uma boa consciência, não nos dá nada na verdade.”

Garotas não é sobre uma cultura jovem negra francesa em particular – apesar de essa obra remeter a O Ódio (que, coincidentemente, está fazendo 20 anos). Não, Vic e sua gangue de garotas negras poderiam estar em qualquer lugar: elas brigam e arrancam os apliques de cabelo umas das outras, enchem a cara de vodca e Coca-Cola, alugam quartos de hotéis baratos, tiram selfies no metrô e cantam músicas da Rihanna. “Não me deparei com a história de Garotas“, diz Sciamma, “porque não há uma história com a qual se deparar. Essa é uma história eterna, mas com uma personagem nova”.

Durante o filme, a identidade de gênero de Vic gradualmente se adapta ao seu meio ambiente: subestimada na casa de sua família senegalense, bem garota com seu grupo de amigas heterossexuais, masculina e durona quando começa a trabalhar para o chefão local. Pergunto a Sciamma se ela optou por mudanças sutis intencionalmente para refletir as sutilezas da realidade. “É sobre ambiguidade”, ela me responde. “As mudanças de gênero de Vic passam por uma atuação que ela está fazendo. Ela está experimentando identidade como fantasias. É como uma super-heroína: ela vê que tipo de poder cada fantasia dá.”

Sciamma continua: “Na verdade, isso são identidades que a sociedade criou para ela. Não é algo que ela inventou. Ela só está experimentando isso. Não é como em Tomboy, em que isso é inerente. Mikäel está projetando sua fantasia no mundo, enquanto Vic está endossando as fantasias que existem no mundo, as experimentando. É mais como uma atuação. Nesse sentido, o filme é meio queer. Mas não é realmente sobre se expressar uma liberdade”.

O único momento de liberdade, segundo Sciamma, vem no final do filme, que demora um pouco para chegar dado o enredo sinuoso. Isso é um reflexo da natureza “do contra” de Sciamma: “Claro, eu não queria deixar Vic no momento que era esperado! Isso teria deixado todo mundo feliz. Eu queria ir até a idade adulta”.

Na última tomada, somos deixados com muitas perguntas enquanto vemos Vic com “as tranças da infância, a maquiagem de uma garota jovem e as roupas de um garoto”, sem saber o que fazer depois. Nesse momento, diz Sciamma, Vic é tudo e, ao mesmo tempo, verte as identidades estilizadas que estava experimentando. “Ela vai se tornar uma adulta. Isso não é mais um jogo.” Sciamma admite que parte do público vai ficar pessimista; outro, ela espera, otimista.

Mas e quanto a Sciamma? O que vem agora para ela? “Quero tentar outro gênero agora. Mais e mais, estou tentando mostrar que os filmes não devem ser da maneira que se espera estilisticamente”, ela reflete. “Pode ser terror, pode ser qualquer coisa – só quero fazer algo completamente diferente.”

Ela me conta que as três histórias dizem um pouco sobre quem ela era quando as estava filmando, mas – como Vic – ela fica feliz em passar para a próxima coisa. E, por enquanto, pelo menos, isso é o nono encontro-relâmpago.

@MillyAbraham

Tradução: Marina Schnoor