Em um pequeno quarto num condomínio da Avenida Interlagos, na zona sul da capital paulista, o cheiro adocicado de tinta perfuma o ar. Nas paredes algumas telas a espera de um final, no chão dezenas de latas de spray e diante delas um dos expoentes da pixação de São Paulo se prepara para sua primeira exposição individual. Aos 36 anos, 23 deles dedicados às tintas no muro, GG — conhecido nas ruas pela lendária gangue Susto”s — está há poucos dias de botar seus quadros na parede. Vivências estreia no dia 17 de maio e fica até o 12 de junho na Galeria E, no número 187 da Rua João Moura, em São Paulo.
“Só eu sei as esquinas por que passei.” Ele cita Djavan para falar de sua caminhada, mas coloca Crash Talk, o último disco do School Boy Q, para tocar. Há dias ele dorme pouco e capota ao lado das latas de spray em seu ritual de criação. Mas apesar disso reluta em aceitar o rótulo de artista. “Hoje pra mim é difícil ser chamado de artista. Eu acho que vai ser sempre assim. Eu nunca fiz a arte que os outros falam que é arte. Eu nunca fiz a arte do rótulo deles”, mas ele, mesmo sem concordar, faz sua observação. “Em algum momento você vai ter que aceitar a visão dos outros, mas não se colocar naquela visão.”
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Enquanto fala, aniquila um Marlboro Light diante de uma das telas que estarão expostas. Ela está dividida em dois, tem o fundo vermelho e algumas palavras, metade pretas e metade brancas, escorrem trazendo a pixação a cada letra. O letreiro desenvolvido em duas décadas por GG, que não fala seu nome verdadeiro, é um patrimônio imaterial das ruas de São Paulo e sua exposição trará — em 15 obras, uma delas com um pedaço de parede de quartzo e uma de pastilha jatobá (uma raridade que não é mais fabricada e muito cobiçada pelos pixadores) — a vivência desta caligrafia em palavras como VISCERAL, CAMINHO, PERIGOSO, entre outras que você vai precisar descobrir colando no rolê.
O veterano das ruas não esconde o frio na barriga, mas a ansiedade vem junto com a autoconfiança. “Eu tô apreensivo ainda, mas eu tô fazendo o que é meu”. Ele completa a linha de raciocínio. “Eu tô fazendo tela, eu tô em galeria, mas meu mano, eu não tô contando a história de ninguém, eu tô contando a minha. Eu faço parte desta história e tô contando a minha parte desta história. Tô falando sobre mim.”
Não é a primeira experiência de GG em galerias. Em 2017, com mais três artistas da rua, fez uma exposição sobre caligrafias. Da fase de criação, que também era feita com poucas horas de sono e cochilos ao lado das latas, recorda do lançamento de Damn, do Kendrick Lamar. Das sete telas que fez a que mais gosta é a última. Diferente das outras, em que escreveu o seu já tradicional Susto”s, ele deixou registrado a frase: “As ruas meu mundo”. Ele conta. “Foi a que eu mais gostei. Eu vi que eu comecei a sair da caixa ali.” Ele fala com entusiasmo de vender todos os trabalhos expostos. “De testa vendeu as três grandes e uma pequena. Uma tela eu já paguei de rodada pro meu pessoal.”
O pixador fala sobre os primeiros quadros. ”Nessas aí eu bati de frente com uma sala, uma tela na frente e o material do lado. Eu não sabia, nem fazia ideia, porque eu nunca estudei isso. É muito diferente de bater de frente com um muro. De frente com um muro eu já sabia o que fazer.”
Na exposição de 2017 ele viu uma oportunidade de faturar um faz-me-rir, assim como faz hoje. “Era uma possibilidade de colocar uma grana no bolso e respirar.” Pegou algumas telas de um amigo, que emprestou também o ateliê e uma cama, e fez um corre. Ele conta: “Eu fui atrás de material e comecei a pedir pros camaradas. Todos eles com a maior boa vontade. Três latas de spray aqui, uma tinta ali, cinco latas ali, dez latas ali. Todos os caras que eu conhecia eram da pixação e as cores eram mais ou menos as mesmas. Era preto, vermelho, prata, cromo, azul, branco, alguns tons de cinza mais claros, que alguns caras tinham aleatoriamente”.
GG já foi também metalúrgico, fez reformas de casa, arriscou alguns meses de uma faculdade de gastronomia e até pouco tempo era visto trabalhando na Void do Centro, aquela que fica na rua do Point dos Pixadores. E neste momento, entre as latas de tinta e a piração com que cria sua obra, está subindo um degrau na vida. Ele fala sobre suas obras por aí. “Muitas vezes eu quero entregar o meu trabalho, se possível até instalar. Porque tem um porquê, tem uma história. Quando eu faço um trabalho eu penso onde vai ficar, esteticamente, as cores que eu uso. Qual cor vai funcionar e tem a ver com a minha essência. Eu quero que a pessoa entre dentro dele.”
Ele fala também sobre quem não consegue enxergar beleza, ou a grandeza, de seus quadros. “Se ele não entende, se ele acha que é criminoso aquilo, mano. Não compra, não é obrigado. Se ele tem coisas contra, nem compra. É até melhor, não quero. Eu prefiro ter o meu trabalho na casa de pessoas que entendam aquilo como uma grande história.”
Enquanto derruba a quarta bituca de Marlboro Light no cinzeiro de madeira em pouco mais de uma hora, GG dá o papo. “Minha essência me trouxe até aqui”. Ele ainda faz sua declaração. “A pixação pra mim é amor. Vai muito além de qualquer outra coisa. É um sentimento único.”
Cansado, o pixador que por anos fez rolês madrugadores saindo de Parelheiros, que apanhou de polícia, subiu e desceu prédios e conquistou prestígio e respeito entre quem é do rolê se prepara para mostrar a cara com sua obra, mesmo que ainda não se sinta confortável com o rótulo de artista.
Ele finaliza. “Eu sou um cara muito visceral. Eu sinto, é aquilo e graças a Deus deu certo assim.”
“Vivências”
De 17/05 a 16/06
Galeria E
R. João Moura, 187, Jardim Paulista, São Paulo.