Na ala de gestantes e mães de um centro socioeducativo brasileiro, todas usam roupas parecidas: camisetas brancas e shorts que vão do lilás ao pink. Tranças, coques e unhas coloridas dividem espaço com a caseira combinação de chinelo e meias, já que o dia está frio e chuvoso. A despeito de crenças ou compaixão, parece insondável para qualquer pessoa imaginar que algumas daquelas meninas que candidamente assistem à televisão com seus bebês no colo ou na barriga cometeram latrocínios, sequestros, tráfico, homicídios ou esquartejamento.
Nem mesmo antigos moradores do bairro desconfiam o que está por trás dos grandes muros beges e portões de ferro que circunscrevem parte de uma rua totalmente residencial. Conhecedor da região, o taxista que leva a equipe da VICE até lá pergunta se o lugar “é uma clínica”. Na verdade, ali funciona um espaço (que preferimos não identificar) direcionado ao abrigo de 163 garotas de 12 a 21 anos que cometeram atos infracionais. Nossa visita é ainda mais específica: iremos conhecer uma subdivisão onde vivem as internas gestantes e mães. Dentro de uma salinha feia e amarelada, a psicóloga Ricarda Maria de Jesus – há 15 anos trabalhando com jovens infratores – explica o funcionamento do lugar, o qual prefere chamar de “Casa das Mães”. Batendo as unhas vermelhas na mesa de madeira, ela destaca que termos como “prisão”, “presa”, “crime” e “pena” não são usados lá dentro. “Elas estão em privação de liberdade, em cumprimento de medidas socioeducativas.” Atualmente, são 15 meninas dentro do programa, sendo seis grávidas e nove já com os bebês.
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Não bastasse a garoa fina e o céu nublado lá fora, o dia será especialmente complicado para umas das internas, prestes a receber uma notícia trágica: a mãe foi brutalmente assassinada no dia anterior. “A menina vai cair. Vai desmoronar. E você tem de estar junto. Tem de segurar”, diz a psicóloga. “Até pra dar uma notícia ruim, a gente tem de ter cuidado, porque ela está amamentando. O bebezinho tem um mês.” As questões familiares pesam na vida das adolescentes. Em vários aspectos.
Foi o irmão mais velho que influenciou Pâmela*, hoje com 15 anos, a ouvir rock. “Dele, peguei mais os clássicos: Led Zeppelin, The Doors, Nazareth, Bad Religion”, conta. Grávida de sete meses, ela fala sobre A República, de Platão, cita seus trechos preferidos de A Divina Comédia (publicação de 400 páginas lida em uma semana), de Dante Alighieri, e conta já ter escolhido o nome do bebê: o mesmo do vocalista de uma banda californiana que mistura hardcore e glam metal. O hardcore, aliás, é uma paixão, assim como a filosofia. “Te faz pensar”, explica. “Muitas pessoas falavam pra Aristóteles e Platão que eles eram sábios. Eles respondiam que não eram, porque não sabiam nada.” Antes de a garota adentrar o quarto onde são feitas as entrevistas, a psicóloga avisa: “Esse caso é pesadíssimo. Vocês vão se apaixonar por ela”.
Há seis meses no centro socioeducativo, Pâmela se diz espírita kardecista – mas adora ler livros budistas. Quando perguntada sobre o motivo que a fez ter de cumprir medidas socioeducativas, ela desconversa com astúcia. “Sempre fui muito observadora. Mas, em algum momento, eu parei de observar. Simplesmente comecei a ignorar o que a minha observância me mostrava.” Filha de uma família grande – são 10 irmãos –, ela destaca que “falta de conselho não foi”. Com a voz baixa e um português impecável, a adolescente arremata: “Foi mérito da minha burrice mesmo. Falta de vigilância”.
Pâmela fala que mudou bastante desde que chegou ao centro socioeducativo. “Quero melhorar. Tenho potencial pra ir sempre pra frente.” Ainda sem data para ser liberada, ela planeja continuar estudando – “não vivo sem estudar”, comenta –, trabalhar e ficar com a família. “Buscando o que, em algum momento, deixei de buscar: ouvir os conselhos dos meus pais”, desabafa.
“Eu estou privada de ir e vir, mas o meu pensamento não está”, frisa Pâmela.
Acostumada a assistir a animes como Pokémon, Yu-Gi-Oh! e Dragon Ball na TV junto com o irmão mais velho, hoje sua rotina se limita às tarefas incumbidas a todas as internas. Inicialmente, enfrentar a clausura foi um “baque”, mas, agora, a jovem usa sua percepção intelectual – um tanto incomum entre as demais – para seguir em frente. “Eu estou privada de ir e vir, mas o meu pensamento não está.”
As internas possuem uma rotina regrada: acordam às 6h30, tomam café e limpam o espaço. Depois, preparam sopinhas e sucos, além de darem banho nos bebês. Almoçam e esperam a hora das aulas, sempre ministradas no refeitório. Antes da janta, assistem a “Malhação”. Comem, tomam banho, veem televisão, lancham e vão dormir.
“Na minha família, ninguém era do crime. Eu que me iludi por causa de amigos, rolezinhos”, diz Samanta.
Cada garota possui um número. Dessa maneira, diferenciam itens pessoais, como roupas e escovas de dente. As 15 internas se dividem em dois quartos praticamente iguais. As que são mães dormem em uma cama de solteiro com o berço ao lado. A vista das janelas, emolduradas por cortinas claras, dá para alguns arbustos do lado de fora. Durante a nossa visita, tudo estava limpo e impecável, da cozinha ao trocador.
Enquanto o bebê de oito meses tenta alcançar com as mãozinhas minúsculas o celular que grava a entrevista, Júlia* explica seu caso. De antemão, avisa: “Meu B.O. é grave”. Tudo teve início quando sua amiga se envolveu com um chefão do tráfico da cidade onde moravam. Das noitadas de funk, regadas a cocaína e lança-perfume sob auspício dos baluartes do rolê, restou só a música em sua vida. “Fiquei acabada, magricela, bem seca. Muita droga mesmo.” Hoje, aos 17 anos e há 10 meses no centro socioeducativo, ela cita a máxima “Diga-me com quem andas e te direi quem és”. Na sequência, admite: “Eu andei com as pessoas erradas”. Dos rolês doidos até o latrocínio (roubo seguido de morte), foi um pulo.
Ela conta que os amigos a desafiavam a participar de um “corre”. Cansada das provocações, topou. Tinha 14 anos. A primeira tentativa não deu certo. A segunda vez acabou com uma vítima. Na época, o caso repercutiu na imprensa – principalmente por causa dos métodos cruéis utilizados no momento do homicídio. Júlia explica que tentou provar sua inocência, mas não conseguiu. Ficou internada provisoriamente por dois meses e foi solta. Nesse meio-tempo, conheceu o pai de seu filho e engravidou. Junto da mãe, passou a montar o enxoval do bebê. Estava feliz. Até ser julgada culpada. “Quando os policiais foram me buscar em casa, foi o fim. Eu tinha tudo pronto, estava só esperando ele nascer. Olhei pra trás e vi tudo aquilo sendo perdido.” À época, ela não sabia que ficar com o bebê até o fim da medida era uma possibilidade viável. Agora, acredita que cumprirá as medidas socioeducativas por mais sete meses.
Os cinco envolvidos no latrocínio foram condenados. Dois eram maiores de idade, e uma menor continua foragida. Júlia acredita que há um julgamento errôneo por parte da sociedade, que costumeiramente credita crimes hediondos a jovens periféricos. “Eram playboyzinhos. Tudo playboyzinho sendo chefão do tráfico.” Enquanto segura o bebê no colo, diz com um sorriso no rosto que ser mãe é a melhor coisa do mundo. “Se ele tosse ou fica doente, me dói. Dói muito. Sou chorona. Fico pensando como deve ter sido pra minha mãe quando fui presa.” Solteira, conta que o pai da criança duvidou que o filho fosse dele quando ela relatou a gravidez. “Minha mãe criou três sozinha. Você acha que hoje eu não posso criar um sozinho?”, indaga enquanto mexe as mãos copiosamente. Júlia ama animais. Quer estudar veterinária e viver fora do Brasil.
A psicóloga Ricarda afirma que a faculdade desponta pra grande maioria como projeto de vida seguro. Para ela, o nascimento da criança é um fator determinante para os próximos passos a serem tomados pelas garotas. “Quando elas pegam os bebês no colo, você percebe aquela serenidade. Elas já começam a fazer apostas no futuro, projetos de vida.” O relato dado por Júlia, refletindo sobre a relação que teve com a mãe, também é comum. “Elas passam a reconhecer que, quando gostamos, pegamos no pé mesmo.”
Samanta* cumpre medidas socioeducativas há um ano e sete meses e logo poderá ir pra casa. Informa que antes, apesar de estudar, ajudar a família e cuidar da irmã especial, “era uma pessoa ignorante”. Nunca passou necessidade a ponto de precisar roubar, mas acredita ter andado com gente errada. “Na minha família, ninguém era do crime. Eu que me iludi por causa de amigos, rolezinhos”, relata. Participou de um roubo que acabou virando sequestro. “Ainda bem que a polícia pegou a gente. Eu estava com uns caras que eu achava que conhecia, mas não conhecia. Vim presa. Tô pagando o que eu fiz. Fiz porque quis.”
Para ela, a experiência no centro socioeducativo foi boa. “Aprendi muitas coisas. Já mudei minha maneira de pensar. Vou levar pro resto da minha vida”, suspira. Sonha em fazer medicina e sabe que a tarefa não será das mais fáceis. Para isso, tem superado a dificuldade com os números. “Não curtia matemática, mas agora tô aprendendo e tô gostando.”
“Todas aqui já tiveram pelo menos uns dez amores que eram pra sempre”, confessa, entre uma risada e outra, a psicóloga que atende as meninas semanalmente.
Apesar da brutalidade envolvida nos casos dessas garotas, a principal questão em suas vidas é a mesma de adolescentes que nunca cometeram atos infracionais: o amor. “Todas aqui já tiveram pelo menos uns dez amores que eram pra sempre”, confessa, entre uma risada e outra, a psicóloga que atende as meninas semanalmente. “Aqui dentro, vemos como elas vivenciam as decepções amorosas. Ela tá grávida, e o moço fala que não vai assumir o bebê, porque não é dele. A menina fica muito mal. É uma decepção muito grande.”
O fortalecimento do vínculo familiar é outro ponto importante na recuperação das internas. O centro afirma oferecer verba aos familiares para que possam se locomover até o local para visitá-las – o que nem sempre acontece. “Percebemos que existe esse esfacelamento familiar, esse desinteresse. Às vezes, as relações não são tratadas com o afeto e respeito que a gente imagina que deveria ser.” Ricarda aborda a possibilidade de a filha, muitas vezes, ter dado trabalho demais aos familiares. “Observamos famílias que se cansam. Mãe cansa. Pai cansa. Filho cansa. E aqui não é diferente.” Para isso, a psicóloga frisa que a instituição tenta trabalhar a ideia de emancipação da mulher. Um dos motivos para isso é o de prepará-las para a possibilidade de, talvez, terem de criar seus filhos por conta própria, sem apoio de ninguém. “É pra isso que estamos aqui. Pra ajudar a menina nessas dificuldades, pra que ela possa ir embora mais segura – a ponto de tomar conta da vida dela e se afastar do universo infracional.”
Alimentadas do sonho de uma vida melhor, as internas não gostam de falar do passado. Elas querem olhar pra frente, mudar. Pâmela, que gosta tanto de filosofia e carrega um bebê com nome de vocalista de hardcore na barriga, parece confiante: “O mundo é grande, o planeta é grande. Vou buscar melhorar, me redimir dos meus erros. Demonstrar que a chance e a confiança que estão dando pra mim agora não é em vão”.
*Os nomes das entrevistadas foram trocados para preservar suas identidades.
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