Gregório Duvivier quer ser menos machista depois de A Vida Invisível

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Um mau marido. É esse o novo papel de Gregório Duvivier, 33, no cinema. Em A Vida Invisível, último filme de Karim Aïnouz, o humorista vive Antenor, cônjuge de Eurídice, a protagonista. “O filme começa com o enterro dele, com quem ela passou a vida toda, mas ele está longe de ser um marido ideal”, me conta Duvivier. “Ainda, assim não é exatamente um vilão. O Antenor é um típico marido, parece muito com os nossos avôs, eles ofuscaram muito suas esposas. A história fala dessa invisibilidade.”

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Baseado no livro de estreia da escritora Martha Batalha, o melodrama tropical de Karim — que será exibido na mostra Un Certain Regard, em Cannes –, fala da história de duas irmãs, Guida e Eurídice. Nos anos 1950, as duas enfrentam a difícil missão de tentar uma carreira (Eurídice toca piano) ou ter que se conformar com a vida de uma mãe de família.

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“Não é vida de mulher casada viajar por aí tocando piano”, fala Duvivier sob a ótica do seu personagem. “Eu tentei compreendê-lo para justificar o personagem. Quis entender como esse apagamento do cônjuge se dá por paixão. Do ponto de vista do Antenor, ele não está sendo tóxico, está protegendo a esposa.”

Duvivier lembra que é difícil não fazer o paralelo com o Brasil conservador de 2019. “Me entristece pensar que esse personagem teria votado no Bolsonaro, é um personagem que encarna esse desprezo pela cultura.”

O convite para o papel, me conta o ator, veio diretamente de Karim. A ideia do set era imprimir o real, atividade que parece não muito difícil num Brasil pouco distante de 1950. Para falar sobre a experiência, Duvivier conversou por telefone com a VICE e também falou sobre machismo, privilégios e política. Saca só:

O filme é baseado em um livro que fala muito sobre o machismo. E você é a própria representação do machismo no filme. Me falaram que você teve que se preparar para o papel, como foi isso?

Meu papel é o do marido da Eurídice. Por acaso já conhecia a Júlia Stockler, nos conhecíamos desde os tempos do tablado. O elenco do filme foi bem de teatro. O casting foi muito especial.

De certa maneira. Meu papel é aquele machismo entranhado, acredito que naquela época [anos 1950] ainda nem se chamava aquilo de machismo. O filme fala de casamento e de relacionamento abusivo. Hoje damos esses nomes, mas naquela época não se falava disso. Essa discussão demorou muito para chegar na classe média do Rio de Janeiro.

Algum paralelo com o Brasil atual?

Sempre que a gente fala do passado, estamos falando de hoje em dia. O filme fala muito de hoje, porque vivemos um retrocesso. Vivemos um momento em que há mais que um conservadorismo, de manter como está, mas sim, voltar para uma família que parece não ter deixado muita saudades nessas pessoas oprimidas. O filme fala das pessoas oprimidas e invisibilizadas. Que são nossas avós — são as minhas pelo menos. Uma das coisas que me atraiu muito em fazer esse filme são as minhas avós que, por acaso, se parecem muito com a Eurídice. E elas sempre foram muito prendadas e muito talentosas, mas foram coadjuvantes, não assumiram o protagonismo artístico e criador da vida delas. E não é que elas foram proibidas, o filme não fala de um homem que proíbe a mulher, mas de proibições subjetivas, do conjunto de fatores que faz uma mulher ser invisibilizada. E pra mim foi uma sorte de falar dessas pessoas brilhantes que exerceram todo o seu brilho em prol de uma família e nunca tiveram o holofote em cima delas. A dedicatória do livro é para nossas avós. Nós tivemos avós que cresceram nos anos 1940-50 e especialmente no Brasil, elas cresceram para não ser aquilo que queriam, mas ser aquilo que esperam delas, e foram obrigadas a recalcar muito a suas vontades. O que, como você bem lembrou, é a realidade de muita gente ainda hoje.

Sinceramente: você nunca foi machista na sua vida?

Claro, o tempo todo. O machismo atravessa todo o nosso dia a dia, até hoje. A gente fala “falta culhão”, eu mesmo já devo ter dito isso várias vezes. Estamos todos exercendo essa “machidão” essa “macheza” verbalmente e menosprezando a “mocinha” — falando coisas como “parece uma moça”. A gente está o tempo todo exacerbando o moço e desprezando o que é feminino, isso em todos os espectros, da direita e da esquerda. A gente cresceu dentro desse espectro.

Eu não me considero desconstruído, não. Acho que é um processo muito longo e interminável, mas acho que começa na infância.”

Você foi pai recentemente, e eu fico pensando se sua esposa cobra de você funções iguais. Como funciona?

A biologia já é desigual. Não dá pra rachar 50% e ficar grávido 4 meses e meio. Mas dá pra fazer todo o resto — acordar, alimentar, levar no pediatra, na creche, brincar… Mas para mim não é nenhum esforço, a paternidade, pra mim é o maior prazer que eu já tive nessa vida. O pai que não exerce a paternidade está fazendo uma burrice tremenda porque não existe nada mais recompensador na vida do que ver uma pessoa crescendo do seu lado. Eu fiz disso o meu projeto de vida. Isso envolve fazer opções, não saio mais com amigos, escolho muito poucos projetos, por isso só gravei esse filme do Karim ano passado, e eu e a Giovanna [Nader] dividimos mesmo. Ela ficou dois meses gravando e eu não fiz outra coisa se não ficar com a minha filha. O barato é a gente se compensar na ausência do outro. Eu tô tentando.

Você é, digamos, esse cara desconstruidão. Para nós mulheres, superar o machismo também faz parte de uma construção. Qual foi o momento da virada para você?

Eu não me considero desconstruído, não. Acho que é um processo muito longo e interminável, mas acho que começa na infância. Tive uma mãe muito feminista e mais duas irmãs feministas. Desde pequeno nunca me foi tolerado ser machista.

Se você falasse uma bobagem, sua mãe falava “se liga”?

Ou coisas mais grosseiras que um “se liga”, como um “cala a boca, para de falar merda”. Desde pequeno, parece um processo, mas acho que [essa desconstrução] é algo diário. Tem muitas coisas que faço hoje que no futuro vou perceber que é um absurdo. Faz parte de várias desconstruções, como a desconstrução ambiental, como a quantidade absurda que eu consumo sobre plástico. Quais vão ser as próximas desconstruções? A questão de gênero é isso pra mim, uma questão perpétua. Agora isso pra mim tem muito a ver do estar cercado por pessoas que me desconstruam. Quando criança, estive cercado pela minha mãe e minhas irmãs, e hoje, no trabalho, costumo me cercar de pessoas que me desconstroem. A diretora do Greg News é mulher, nossa redação é paritária. Eu obedeço a Alessandra [Orofino, diretora do Greg News], não é só uma questão de ter mulheres que trabalham pra mim, mas mulheres para quem eu trabalho. Isso foi feito no filme também. A única maneira de a gente se desconstruir é colocar mulheres em lugares de poder. Não basta ler sobre o feminismo, mas é preciso ceder lugar. Nenhuma mudança irá acontecer sem que os detentores de privilégios cedam o seu lugar.

Falando em privilégios: você é um cara privilegiado e que pode falar sobre temas que outras pessoas não defenderiam. Sua posição favorável à legalização da maconha no país gerou uma discussão sobre classe social. Você já tomou um enquadro, por exemplo? Como você acha que ajuda no debate sobre drogas no país?

Acho que cabe aos detentores de privilégios escancarar que é um privilegiado. Quando eu posto foto com maconha, não estou ostentando, estou falando que isso é um absurdo. Eu só posso fazer isso [tirar aquela foto] por conta do racismo no Brasil. A minha tentativa é sempre mostrar que existe um puta privilégio e a questão de drogas no brasil é uma questão racial e de classe. Escancarar o privilégio é a melhor forma de combatê-lo, ao invés de fingir que não sou privilegiado. Se todo branco que fuma maconha no Brasil mostrasse o baseado que fuma, acho que a gente legalizava [a droga] muito mais rápido, do que estar preocupado com contratos publicitários e contratos com emissoras de televisão. Tenho a impressão que assim a gente quebraria muitos tabus.

A única maneira de a gente se desconstruir é colocar mulheres em lugares de poder. Não basta ler sobre o feminismo, mas é preciso ceder lugar. Nenhuma mudança irá acontecer sem que os detentores de privilégios cedam o seu lugar.”

Sobre posição política, em 2017 você disse ao El País que “a nossa esperança de mudança não pode vir do Lula” . Ainda assim, escreveu na Folha que com tanto antilulismo, fica difícil não ser lulista . Hoje, você se considera Lulista?

Eu sou sobretudo anti-antilulista. Os antilulistas criaram a ressurreição do Lula. Eu era contra o PT muito antes de virar modinha. Em 2003 quando eles fizeram a reforma da previdência, eu tinha 17 anos, estava na rua. E era contra o PT de verdade, e continuo sendo por esses motivos. O PT ambientalmente fez um monte de cagada, sou contra a política indígena, Belo Monte foi o PT que fez – e continuarei sendo [contra] pra sempre. Agora, a prisão arbitrária do Lula foi feita pelo atual ministro da Justiça do Bolsonaro. O primeiro colocado das pesquisas [para presidente em 2018] foi preso pelo ministro da Justiça do segundo colocado, que só ganhou porque o primeiro estava preso. Sobretudo por isso vou lá defender o Lula. Não é paixão ou uma devoção ao Lula. Quando eu vejo uma injustiça, é muito difícil ficar calado. Como você mesmo disse, sou detentor de privilégios, e por razões históricas no Brasil faço parte de um grupo que quando fala é ouvido. Mas gostaria muito de não precisar defender o Lula. A esperança, pra mim, continua não vindo dele. A esperança tem que vir de pessoas novas, como da deputada estadual pelo Rio de Janeiro, Renata Souza (PSOL), que denunciou o Wilson Witzel à OEA (Organização dos Estados Americanos) por crime contra a humanidade por atirar nas favelas. Vem da (deputada estadual do PSOL) Mônica Francisco, vem da (deputada federal do PSOL) Talíria Petrone, vem de um monte de gente que está fazendo política de um jeito muito corajoso.

“Eu era contra o PT muito antes de virar modinha.”

A gente tem 33 anos e a eleição de 2018 foi a mais emblemática das nossas vidas até aqui. Pode dizer em quem votou no primeiro turno da última eleição?

Claro: votei no Ciro [Gomes]. Porque eu achava que o Ciro tinha mais chances contra o Bolsonaro e ele tem um poder de comunicação gigante, o que falta à esquerda. Ele é um grande comunicador, ainda que eu discorde de várias coisas da plataforma dele. A própria Kátia Abreu, achei um absurdo ele chamá-la. Tenho discordância quanto à questão ambiental e, apesar disso tudo, acho que ele tem o que mais falta a esquerda hoje: um imenso poder de comunicação e diálogo com os anseios da população. O Haddad é um grande candidato, mas ele é um acadêmico. Nesse UFC que virou a política com a internet, o Haddad entrou para lutar karatê e o outro tá no jiu jitsu e joga ele no chão. A briga no UFC é no chão. E eu achei que o Ciro lutaria melhor — continuo achando que ele é uma boa opção ainda em 2022 e espero que o PT tenha a sensibilidade de voltar a ter contato com a população e talvez uma aliança com o Ciro seja bonita. E acho muito importante a esquerda poder criticar a esquerda. A crítica faz parte da definição da esquerda. A direita tem uma espécie de rigor mortis, todos querem mais ou menos o conservadorismo, para manter as coisas como estão, ou como estava. E a esquerda, como dá perspectivas de futuro — e o futuro são milhares –, tem no seu ethos a discordância. [Por isso acho que a esquerda] pode continuar discordando, mas precisa perceber que hoje todos têm um inimigo em comum, que é o obscurantismo que tem no Bolsonaro sua figura central. Então, vale uma união para lutar contra esse inimigo comum, porque numa eleição pulverizada vai ser difícil votar.

Em 2014, quando foi ao programa do Danilo Gentili, você negava ser “a cara da nova esquerda”. Na época, já foi difícil ter essa conversa com ele? Se arrepende de ter ido no programa dele?

Acho que eles mesmos não brincariam mais comigo. O Brasil mudou muito nesses cinco anos, a convivência era mais pacífica, mas eu sou a favor que a gente continue dialogando, ainda que já naquela época existisse uma discordância grande.

Acho que o xingamento é um direito constitucional. A democracia é o único regime em que você tem o direito de ser um imbecil. O Danilo [Gentili] tem o direito de ser um imbecil.”

E depois do tweet do Bolsonaro em apoio ao Gentili , e da defesa parcial do direito de expressão, você ainda daria uma entrevista para o Gentili?

Acho que hoje ele é o principal talk show em termos de audiência no Brasil. Eu iria primeiro no Bial pra divulgar alguma coisa. Mas iria sim [ao Gentili]. Eu defendi o Gentili recentemente para além do corporativismo entre humoristas.

Você acha que é um tiro no pé da esquerda defender a prisão do Gentili?

É muita ingenuidade achar que ao prender gente por liberdade de expressão, vão prender apenas o Danilo. Todo o carnaval do Rio de Janeiro que estava gritando “ei, Bolsonaro, vai tomar no cu!” ia pro camburão imediatamente. Eu sou a favor de que a gente tenha o direito de xingar. Acho que o xingamento é um direito constitucional. A democracia é o único regime em que você tem o direito de ser um imbecil. O Danilo tem o direito de ser um imbecil e de chamar os outros de imbecis. Há maneiras mais eficientes de combater a imbecilidade do que prender alguém. O Gentili está numa posição de defender o governo Bolsonaro, fez campanha, e hoje ele tem a missão ingrata de defender o Bolsonaro. Ao dar uma ordem de prisão para o Gentili, você transforma um porta-voz de um governo desastroso em um mártir da liberdade de expressão.

Você mencionou esse lance do xingamento, e muita gente já te chamou de esquerdopata, abortista, esquerda caviar… Em 2017, a VICE te chamou de esquerdomacho , te incomodou?
Lembro disso não [risos]. Eu adoro a VICE, saibam que não é recíproco. Que pena que eu sou um esquerdomacho. Se eu sou, me desculpem, vou tentar ser menos macho.

Gregório: Mas por que me chamaram de esquerdomacho?
VICE: Era um texto opinativo que alertava para o privilégio e o pouco lugar de fala de alguns interlocutores eleitos como esquerdomachos pela ala feminina da redação da VICE. Mas não se prestava a algo exatamente sério, era mais algo engraçado.

Gregório: Entendi. Por isso mesmo acho besteira se preocupar com crime de expressão. A arena pública tem que permitir isso de ser zuado, ser xingado. Quem se importa com isso, não está pronto para esfera pública. É importante diferenciar a calúnia — e aí tem que processar mesmo. Você pode ser perseguido na rua por conta de uma calúnia, que tem efeitos práticos e danos muito sérios. Mas a injúria, isso de ferir a honra de alguém, por conta de uma palavra que ela achou muito pesada, eu acho subjetivo. A calúnia é objetiva.

Mas, voltando à questão do xingamento: era OK xingar a Dilma de puta, por exemplo?

Essa é uma grande discussão. Será que isso não vira crime de ódio, como racismo, por exemplo? Eu não vou saber dizer o quanto isso é ofensivo porque não sou mulher, como nunca vou saber o que é sentir na pele alguém dizer que eu mereço ser estuprada. Não sei se é OK. No meu caso, com privilégios, é difícil uma pessoa me ofender de verdade como homem branco, hétero, cis.

Gregório, para terminar: você é humorista, poeta, ator, roteirista, e mais recentemente virou apresentador. Me fala uma coisa: você prefere que te achem mais inteligente ou mais engraçado?

Mais engraçado! Eu amo o humor, mas a política acabou sendo inevitável.

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