O vendedor de carros que transformou o sertanejo em pop

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Música

O vendedor de carros que transformou o sertanejo em pop

Darci Rossi ia vender um Chevrolet financiado para Chitãozinho & Xororó. A conversa rendeu e acabou resultando na música “Fio de Cabelo”, que vendeu 1,5 milhão de discos e revolucionou o estilo musical.

Discreto, abstêmio e caseiro, Darci Rossi morreu vítima de complicações causadas por uma pneumonia na última sexta-feira (20) na cidade de Valinhos, no interior de São Paulo, aos 69 anos. Apesar da personalidade tímida e do jeitão humilde, com a caneta nas mãos criava mundos, histórias de amor e cenários em poesias para a música sertaneja. Foi assim que, no ano de 1982, escreveu: E hoje, o que encontrei me deixou mais triste, um pedacinho dela que existe, um fio de cabelo no meu paletó.

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A música Fio de Cabelo foi escrita em 40 minutos, uma parceria que Darci assinou com Marciano (ele mesmo, da extinta dupla João Mineiro & Marciano e, atualmente, Milionário & Marciano). Gravada por Chitãozinho & Xororó, ultrapassou as barreiras até então alcançadas pelo gênero, abrindo as portas para o que viria ser um fenômeno musical de massa — e que se sustenta nesses moldes, com algumas variações, até os dias de hoje.

Marcelo Daniel curou essa playlist no Spotify com os sons que citamos na matéria.

Em um áudio bastante emocionado, enviado pelo WhatsApp, a lenda do sertanejo Marciano afirmou ter perdido um grande amigo, com quem iniciou a carreira, ainda nos anos 1970. "Estou arrasado, chorando o tempo todo", disse o cantor, "foram tantas as músicas que a gente gravou e cantou, nossa história foi maravilhosa."

Sobre o processo de composição de Rossi, o colega elogia sua técnica. "Era extremamente inteligente, tudo o que a gente falava para ele dava certo, ele desenvolvia os temas com a maior clareza, com nitidez", conta.

Na opinião do historiador Gustavo Alonso, autor do livro Cowboys do Asfalto : Música sertaneja e modernização brasileira (Record, 2015) , a canção foi um marco. "['Fio de Cabelo'] iniciou o processo de nacionalização da música sertaneja; até 1982, os sucessos eram regionais e atingiam 'apenas' o público do Centro-Sul do Brasil, com dificuldade considerável de chegar às capitais", explica.

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Em suas redes sociais, a dupla Chitãozinho & Xororó escreveu: "Nossos sentimentos aos familiares desse grande amigo e compositor Darci Rossi. Dentre suas mais de 400 canções gravadas, o nosso grande sucesso "Fio de Cabelo". Para sempre em nossos corações".

A foto que ilustra a postagem da dupla é de uma rara aparição de Rossi na grande mídia, durante o então Programa Livre (SBT), comandado por Serginho Groisman.

Em rara aparição: Darci sai da plateia e acompanha CH & X em sua grande composição. Note que no meio do caminho ele não aguenta o tom alto da voz de Xororó.  

Um homem de família

O compositor nasceu em Guaxupé (MG), mas com um ano de idade viria para São Caetano do Sul (SP), onde cresceu e passou a trabalhar na indústria automotiva, na Chevrolet do Brasil (General Motors).

Teve um início da vida adulta com dificuldades, a mãe faleceu quando ele tinha 18 anos e o rapaz teve de ajudar na criação de alguns dos irmãos — eram em oito, no total. Casou-se com Sônia Maria e teve quatro filhos. Deixou seis netos.

"Em 1981, meu pai foi transferido para a GM de Campinas; em 1985, nos mudamos para Piraju, onde meu pai teve uma concessionária da marca; em 1994, voltamos a Campinas, onde ficamos até 1998, quando viemos para Valinhos", conta a filha Lisandra, sobre as passagens no interior de São Paulo.

Um detalhe interessante na biografia de Darci Rossi é que, mesmo tendo escrito em parceria sucessos como " Fio de Cabelo", " 60 Dias Apaixonado", "Crises de Amor", "Deixei de Ser Cowboy por Ela" e outros tantos hits — a filha afirma que, de fato, entre gravadas e inéditas, se aproxima das 400 letras —, e apesar de receber pelos direitos autorais dessas produções, o compositor teve sempre de trabalhar em outras atividades para garantir o sustento da casa. "Acho que se meu pai fosse compositor fora do Brasil ele seria um trilhardário", comenta a filha, ressaltando que o pai foi funcionário da GM, dono de concessionária, de padaria e só nos últimos dez anos é que estava, de fato, vivendo apenas das suas composições.

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Reprodução/Facebook.

"Ele não saía de casa para nada e quando o fazia e era reconhecido, ficava pasmo com isso", lembra Lisandra.

Teve também algumas aventuras fora dos bastidores, ao lançar quatro discos, sendo dois em carreira solo e dois com parceiros. "O fato de ele ser muito caseiro não ajudou muito na divulgação e nem na realização dos shows", diz.

Em 2010, foi reconhecido pelo município de Valinhos com o diploma de Mérito Cultural e Artístico "Adoniran Barbosa", concedido pela câmara de vereadores e que foi acompanhado de um breve documentário sobre sua vida, exibido pela TV Câmara de Valinhos.

Capa de um dos quatro discos que Rossi lançou. Mas ele gostava mesmo é de atuar na composição das letras.

Os fios (de ouro) de cabelo

Darci Rossi era gerente do Banco GM, no final dos anos 1970, quando foi procurado pelos jovens irmãos Chitãozinho & Xororó (não se esqueça que a dupla completou, recentemente, 45 anos de carreira e o Noisey também celebrou a data). Os cantores com nome de passarinho já faziam considerável sucesso, mas o Fusca que os transportava já não estava dando mais conta do recado e eles queriam financiar uma nova caranga — à época, os irmãos moravam em Mauá, também no Grande ABC.

Na conversa para negociar a compra do carro, foram informados que o gerente também era escritor e que fazia belas rimas e versos. Xororó perguntou se ele não poderia colocar letra em uma música. Tempos depois, após algumas trocas de ideias, nascia sua primeira composição ao lado da dupla: "Querida" (1977).

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A amizade já estava firmada. Rossi e esposa são, inclusive, padrinhos de casamento tanto de Xororó, quanto de Chitão. Quando da mudança para a GM em Campinas, no início dos anos 1980, a dupla passou a visitar o compadre e, após simpatizar tanto com a cidade, transferiram-se para Campinas, onde vivem até hoje.

"Todos costumam dizer que existe uma música sertaneja antes e outra depois de 'Fio de Cabelo'", relata Xororó em depoimento ao documentário da TV Câmara de Valinhos. Quando a música foi lançada, em 1982, os irmãos já carregavam um destaque inédito ao gênero musical, pois seu último álbum, Amante Amada (1981) havia alcançado 400 mil cópias vendidas — o que era um feito para a época.

" Fio de Cabelo rompeu todas as barreiras do preconceito, triplicou essa venda para 1,5 milhão de discos (…) Ultrapassou o limite do ouvinte do sertanejo, abriu as portas de rádios FM [até então esses artistas só eram divulgados pelas emissoras AM], televisão em horário nobre e não apenas para nós dois, mas para o estilo musical todo", complementa Chitãozinho, no mesmo vídeo.

O escritor Alonso também reforça as dimensões do sucesso desse álbum. "Até então, poucos artistas haviam vendido um milhão de exemplares de um disco, tendo sido Roberto Carlos o primeiro, em 1977", diz.

Uma música mais brega

"O grande diferencial dos anos 1980 foi a incorporação da estética brega", aponta o historiador fluminense, que lembra que, desde os anos 1950, as composições misturavam guarânias (que, por sinal, é o ritmo de "Fio de Cabelo"), boleros, corridos e rancheiras mexicanas. "A partir de 1969, houve a presença do rock, especialmente devido a atuação de Leo Canhoto & Robertinho", comenta, citando Chitãozinho & Xororó como adeptos dessa mistura, ao lado de ritmos latinos.

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"Na década de 1980, acelerou-se a fusão com outro ritmo de sucesso nacional, o brega, que desde o fim da Jovem Guarda é um sucesso nacional, incorporando a temática radicalizada do amor lacrimoso e da poesia do abandono", conta o autor.

Pronto, agora você já tem o que explicar para aquele seu tio que vem com a camiseta do Scorpions te acusar de ficar ouvindo canções que só falam de traição, adultério, etc.

Para a filha Lisandra, Rossi, aos 40 anos de carreira, tinha consciência que a música teve toda essa importância. "Ele tinha essa noção, mas sempre encarava com muita simplicidade tudo isso", diz.

Se antes da famosa guarânia, os artistas sertanejos estavam restritos às rádios AM, em levantamento feito pelo SpyBat Soundtracker, que engloba 95% das emissoras de rádio do Brasil, as cinco músicas mais tocadas em dezembro de 2016, são dos artistas: Benjamin Neto, Gusttavo Lima, Marília Mendonça, Luan Santana e Naiara Azevedo — todos sertanejos, em sua vertente universitária (das dez mais ouvidas, nove são desse gênero). E esse é um fenômeno que se repete mês após mês no país, e que teve, de alguma forma, a participação do talento e a sensibilidade de Darci Rossi — além, é claro, de o destino (e o uso constante) determinar que o fusquinha de Chitãozinho & Xororó precisasse ser trocado.

Aparição recente de Darci Rossi, cantando a bela "Crises de Amor" durante gravação do DVD 'Marciano in Concert', gravado em 2013 em São Caetano do Sul.